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SEGUNDA PARTE

IV. A interpretação Pianística – a execução no piano moderno.

IV.3. Alguns aspetos técnicos para a execução 1 Introdução.

IV.3.3.2. Fraseado e articulação: a Ligadura.

Na música instrumental do século XVIII, era frequente um tipo de fraseado mais curto, acentuando o tempo forte e ficando ligeiramente mais tempo sobre a nota que se pretende acentuar. As edições didáticas, como por exemplo a de Longo, escolheram um fraseado muito comprido para indicar a extensão da frase. Estas ligaduras de frase que incluíam períodos inteiros foram erroneamente entendidas como “tocar ligado ao longo de toda a frase”, “tocar de forma igual e sem acento”: acabou-se assim, na execução no piano moderno, por anular o micro fraseado e as pequenas articulações no interior da mesma frase, como o ligado a dois, a três, o separado diferente do staccato, a articulação dos intervalos, etc. Sabemos que as várias gradações de ligado e os vários tipos de staccato que um cravista bem conhece, se devem adaptar ao tipo de instrumento de tecla e ao tipo de acústica, como meios para valorizar o conteúdo melódico, harmónico e rítmico da obra musical.

Cada fraseado nasce ou do sentido da vocalidade (nas frases vocais, melódicas, cantabile, como por exemplo a sonata K.158), ou no sentido instrumental (frases com sucessão de harmonias, frases tipicamente instrumentais ou frases que sugerem os gestos da dança). Se cantarmos cada nota duma linha melódica de uma sonata, reparamos que cada intervalo tem uma “cor” própria que contribui para a peculiaridade da frase em que se encontra. Enquanto tocamos, reparamos também que as frases estão separadas uma da outra e que é natural inspirar e manter a respiração, para só expirar na conclusão da frase, como faria um cantor. Estas considerações sobre o fraseado não podem ser ignoradas na execução no piano moderno.

Outro aspeto que merece ser aprofundado é o tipo de fraseado quando encontramos uma frase repetida sucessivamente, ou seja, a reiteração da frase. Nem sempre o efeito de eco, típico da música barroca, ou seja o contraste de uma frase executada forte e a sua repetição piano, é a solução mais adequada na execução no piano moderno: em contextos em que a frase tem que ser pensada como única, este efeito pode bloquear a fluidez da mesma. A escolha do tipo de fraseado mais adequado pode nascer da inflexão da harmonia no âmbito da frase,

com os seus acordes dissonantes e consonantes, o correto equilíbrio entre as tensões e resoluções internas da frase, os seus impulsos rítmicos, o sentido da tonalidade e das modulações.

As figuras 51 e 52, nos compassos de 1 a 8 da sonata K.43, mostram duas possibilidades de interpretar as mesmas frases repetidas duas vezes.

Figura 51. Sonata K.43 cc. 1-8.

Na figura 51, as frases repetidas são executadas com o efeito de eco típico da música barroca, ou seja o contraste de uma frase executada forte e a sua repetição piano, mantendo o mesmo fraseado entre as duas frases. Para criar blocos contrastantes de sonoridade e variedade na repetição, poder-se-á usar o pedal de uma corda (de esquerda) na repetição da mesma frase (onde aparece a indicação piano).

Figura 52. Sonata K.43 cc. 1-8.

A figura 52 mostra outra possibilidade de execução: a primeira frase (desde o compasso 2, último tempo, até ao compasso 3, terceiro tempo) é legato, enquanto a sua reiteração (do compasso 3, último tempo, até ao compasso 4, terceiro tempo) é staccato; entre as duas frases mantém-se a mesma dinâmica

forte. A mesma modalidade de execução acontece entre os compassos 4-8.

Acentuando as dissonâncias que caem de maneira irregular, cria-se um esquema rítmico irregular que proporciona cor e variedade à frase. As dissonâncias podem ser postas em relevo efetuando uma pequena suspensão, um breve silêncio antes do acorde dissonante: esta praxis interpretativa, típica dos organistas ou cravistas, pode ser “adotada” com sucesso no piano moderno, nalgumas passagens das sonatas de Scarlatti, onde, para além dos efeitos acima elencados, poder-se-á também tocar staccato ou separado entre os acordes (Kirkpatrick, 1984, pp. 305, 307, 313, tradução livre).

Nos manuscritos de Scarlatti, raramente encontramos indicações de fraseado, geralmente colocadas em cima de passagens rápidas de escalas.

O símbolo da ligadura de fraseado pode assumir vários sentidos, conforme o contexto em que se encontra. Nos manuscritos objecto desta tese, encontramos este símbolo que se pode assim classificar:

Ligadura de expressão, que junta uma série de notas consecutivas como escalas ascendentes ou descendentes. O Dicionário de Música, de T. Borba e F. Lopes Graça (1996 e 1999), na definição de ligadura, escreve: “Sinal gráfico curvilíneo que indica dever um grupo de notas ou frases executar-se de um só fôlego... arcada ou articulação”. Efetivamente é o espírito certo para interpretar esse tipo de articulação.

Figura 53. Sonata K.9, cc. 20-24.

Figura 54. Sonata K.10, cc. 22-32.

O símbolo do ligado colocado sobre as tercinas assume o mesmo valor que atualmente. No entanto, encontramos também ligaduras que podem ser consideradas de “articulação”, quanto envolvem só pequenos grupos de três, quatro e, mais raramente, cinco ou seis notas.

Figura 55. Sonata K.16, cc. 16-24.

Figura 56 Sonata K.14, cc. 6-8.

No Manuscrito F.C.R. 194.1 de Portugal, encontramos também uma ligadura que junta a última nota da primeira parte à segunda parte, embora não possa assumir uma função de ligadura de valor porque as notas não são da mesma altura. Pode tratar-se de um erro do copista, poderá significar uma prolongação indefinida do som ou pode ter apenas um valor estético, de caligrafia. Na opinião de Emilia Fadini, trata-se de um sinal com um significado anólogo ao dos atuais sinais de ritornello (1º e 2º) e não deve ser interpretado como ligadura.

As ligaduras de fraseado aparecem em algumas das Sonatas do Manuscrito F.C. R. 194.1 da Biblioteca Nacional de Portugal, muito escasso de indicações gráficas de ligadura. (Figuras 58 e 59)

Figura 58. Sonata K.101, cc. 111-117.

Figura 59. Sonata K.124, cc. 10-13.

IV.3.3.3. Suspensão (Fermata).

Outro dos efeitos de Scarlatti é a pausa repentina, no meio da sonata e no final da frase, sobre a qual é colocada uma suspensão; este efeito de reticência é interrompido pela continuação da frase numa tonalidade afastada: a sonata K.426 é o exemplo mais evidente deste efeito (Figura 60). Como podemos observar no compasso 13, a frase termina em sol menor, seguida, no compasso 14, por uma pausa sobre a qual é colocada uma suspensão; no compasso 15, a frase começa diretamente em lá bemol maior.

Figura 60. Sonata K.426, cc. 1-50.

Por vezes encontra-se a suspensão sobre uma nota no fim da frase, mas sem a pausa, com a suspensão a seguir; a frase seguinte continua numa

tonalidade afastada. A figura 61 da sonata K.124 mostra que a frase termina em ré maior, no compasso 81, tendo a suspensão na última nota do compasso; no compasso 82, a frase começa com o iv grau de dó menor.

Figura 61. Sonata K.124, cc. 81-82.

Acerca desta concatenação harmónica entre duas tonalidades afastadas, Giorgio Pestelli afirma que “Scarlatti, nesta passagem, demostra a capacidade de se elevar acima da pura extravagância, alcançando os mais profundos significados expressivos”. (Pestelli, 1967, p. 166, tradução livre).

As suspensões encontradas nos manuscritos portugueses podem ser classificadas com dois sentidos diferentes. O primeiro, que se refere ao prolongamento ad libitum, quando se encontra por cima de uma nota ou de um acorde ou também de uma pausa, é o significado que atualmente damos a este ornamento. Mas, por vezes, encontramo-lo nas barras duplas dos finais de cada sonata. Neste caso, tem um sentido meramente decorativo e não assume nenhum sentido musical.

Na Sonata K.161 (Figura 62), podemos notar uma suspensão quer no meio da primeira parte, quer no meio da segunda. Neste caso, o intérprete terá a liberdade de improvisar uma cadência ou simplesmente interromper o discurso musical.

Noutros manuscritos que não pertencem ao material aqui analisado, podemos encontrar também suspensões colocadas em cima de pausas, mas só num dos dois pentagramas. Neste caso, pode-se subentender uma espécie de

rubato ou de livre rallentando da parte superior ou inferior que se está a

movimentar (Fadini, 1985, p.193).

IV.3.3.4. Dedilhação.

As únicas indicações de Scarlatti acerca da dedilhação são limitadas às sugestões para distribuir o texto entre a mão direita (D) e esquerda (M), ou para alternar os dedos entre os trilos e as notas repetidas; “com um dedo” ou “mutando i dedi” são as únicas indicações encontradas nas fontes manuscritas de entre todas as sonatas em questão (Figura 63, sonata K.96). Na execução das sonatas no piano moderno, podemos obviamente usar todos os dedos, embora um fraseado curto exigido nalgumas passagens exclua, por vezes, o uso frequente do polegar. A dedilhação depende do tipo de fraseado que se quer dar. De seguida encontraremos exemplos práticos que irão explicar ao pormenor esta afirmação. Antes disso, iremos introduzir uma breve descrição das dedilhações usadas antes de Scarlatti.

Figura 63. Sonata K.96, cc. 32-39.

C.P.E. Bach, no seu Método, afirma que

cada frase admite quase uma só dedilhação, diferente de uma frase para outra frase e que a maneira de tocar está estreitamente ligada ao uso correto dos dedos. Uma boa dedilhação parte da observação de toda a frase. Portanto, o uso correto do polegar é mais importante que todos os outros dedos, sendo a chave para qualquer dedilhação. Afirma que este dedo não deve nunca tocar uma tecla preta, e geralmente é usado, numa escala que se estende pelo menos por duas oitavas, uma vez após o segundo e terceiro dedo e uma vez após o segundo, terceiro e quarto dedo. Todas as escalas permitem as maiores variedades de dedilhações como também permitem a passagem dos dedos acima e abaixo.

compridos e dos dedos curtos e do uso mais apropriado quer nas escalas, quer nas passagens por grau ou por salto. Afirma também que o seu pai, Johann Sebastian, elaborou um sistema de dedilhação mais completo em relação aos anteriores, que alarga o uso do polegar nas tonalidades mais difíceis. (C.P.E. Bach, 1973, pp. 31-49).

Michel de Saint-Lambert introduz o capítulo da dedilhação afirmando: “No ato de tocar o cravo, nada é mais livre que a posição dos dedos. Cada executante procura só o conforto e a graciosidade. Mas, nalgumas ocasiões, todos os intérpretes usam os dedos da mesma maneira porque é mais fácil; isto tem gerado uma espécie de regra...” (Saint-Lambert, Paris, pp. 10, 40, 75 como citado in C.P.E. Bach, 1973, p.170, tradução livre).

Portanto, podemos deduzir que os velhos sistemas de dedilhação, como também o usado por Alessandro Scarlatti (que observamos na primeira Toccata, totalmente dedilhada) se basearam numa desigualdade dos dedos.

Não podemos saber, todavia, se Domenico Scarlatti conservou a velha dedilhação nalgumas passagens ou nalgumas das suas primeiras sonatas compostas para instrumentos de tecla. Com toda a probabilidade, como atualmente se executa no piano moderno, as notas repetidas da K.435 (Figura 64), tal como os trilos no interior dos acordes da sonata K.116 e a K.54, requerem, para além de um grau de agilidade e independência elevados, também o uso “pleno”, completo e igual de cada dedo das mãos.

Figura 64. Sonata K.435, cc. 19-25.

Vários aspetos técnicos que podemos encontrar nas sonatas, tais como as rotações do pulso, grandes saltos, arpejos, escalas, passagens de oitava e cruzamentos de ambas as mãos, requerem o movimento completo do braço (que conduz as mãos) como também um uso de cada dedo de forma igual. É o próprio Scarlatti a indicar os cruzamentos das mãos, mesmo quando é possível executar a passagem sem necessidade de realizar tal habilidade técnica, como é o caso da sonata K.29, mostrada na figura 65.

Figura 65. Sonata K.29, cc. 10-15.

A mão esquerda na sonata K.54 tem oitavas nas quais é preciso desenvolver habilidade técnica para ambas as mãos: tudo isto nos indica que é possível, aliás necessário, usar a técnica pianística usada nos nossos dias.

IV.3.3.5. Cruzamento das mãos.

A este propósito, aprofunda-se o aspeto técnico dos cruzamentos das mãos, partindo da consideração de C.P.E Bach no seu Método. Este afirma que

Esta técnica abre o caminho para novas possibilidades que enriquecem as prestações do instrumento. Porém, aconselha o uso apenas quando for necessário e for impossível executar uma passagem de outra forma. Parece que esta técnica foi introduzida pela primeira vez por Pietro Giuseppe Sandoni, cravista famoso na primeira metade do século XVIII. (C. P. E. Bach, 1973, pp. 67,172, tradução livre)

Domenico Scarlatti fez um uso abundante nas suas sonatas do cruzamento de mãos45 (Figura 68) mesmo quando uma passagem era passível de ser

executada naturalmente e sem necessidade de encavalgar uma mão sobre a outra, como mostra o exemplo da sonata K.112 (Figura 67).

Figura 66, Sonata K.29, cc. 7-9.

Figura 67. Sonata K.112, cc. 11-23.