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I. O contexto histórico.

I.4. O período Espanhol.

I.4.1. Scarlatti em Espanha (1729-1757).

A experiência espanhola serviu a Scarlatti para a maturação das transformações estilísticas já começadas em Portugal (Kirkpatrick, 1984, p. 91). Em Espanha, com Filipe V e mais tarde com Fernando VI, a música italiana tinha tido um desenvolvimento notável, tal como em Portugal. A cultura musical espanhola tinha-se aberto à ópera italiana, trazida para a corte por Farinelli. Muitos músicos italianos (cantores de ópera e instrumentistas) estabeleceram-se em Espanha. Todavia, a Espanha do século XVIII era uma nação que tinha a tendência para se fechar em posições bastantes tradicionalistas: as classes populares estavam extremamente atrasadas, sob a autoridade de um clero rígido e conservador. Só a aristocracia mantinha uma relação de intercâmbio com a cultura europeia.

Retomando o percurso histórico do compositor, após uma viagem de oito dias, a corte chegou finalmente a Sevilha, no dia 3 de Fevereiro de 1729. A corte espanhola irá considerar o Alcazar como a sua residência principal, ao longo de quatro anos (Kirkpatrick, 1984, p. 92). Só em 1746 é que Fernando VI e D. Maria Bárbara se transferiram definitivamente para Madrid.

Domenico ocupou-se também da formação musical do Príncipe Fernando, que não tinha, contudo, as mesmas capacidades e sensibilidade para a música de D. Maria Bárbara. A corte espanhola viajava muito para Granada, Cádis e para outras cidades junto à costa. Nestas excursões participavam os Príncipes e provavelmente também Scarlatti. “Só quando a corte se estabeleceu em Sevilha, de 1730 a 1733, é que Domenico alcançou alguma estabilidade. Foi no ano de 1729 que nasceu o seu primeiro filho, Juan António, e, dois anos depois, o segundo” (Kirkpatrick, 1984, p. 93, tradução livre).

Em Espanha, ao serviço da Princesa das Astúrias, Domenico permaneceu sob os auspícios do monarca português, recebendo uma tença anual de 400 000 reis (Sousa Viterbo, 1907, p. 459).

A personalidade do Rei influenciou as vivências da corte espanhola. Pessoa culta e educada, foi-se tornando apático, vindo mais tarde a sofrer de várias crises de depressão. Como a saúde mental do Rei piorava, a Rainha, graças à sua diplomacia e inteligência, tomava conta de todas as tarefas e decisões da corte. O casal manteve sempre uma relação de amor e de respeito recíprocos ao longo de toda a vida.

Porém, a música era principal consolação e distração de D. Maria Bárbara. A Gaceta de Madrid (nº 21, 19 de Maio de 1729) refere muitas das festas de corte organizadas por ela, no seu apartamento. Com toda a probabilidade, Scarlatti participava nestes eventos (Kirkpatrick, 1984, p. 97).

No dia 16 de Maio de 1733, a corte partiu de Sevilha para o norte de Espanha, chegando, em Junho do mesmo ano, a Aranjuez, antiga residência de campo de Carlos V e Filipe II, situada entre Madrid e Toledo. Aí se instalavam, até 1746, apenas durante a época da primavera.

A tranquilidade destes anos foi interrompida pela chegada de duas personagens que ofereceram novos impulsos à vida da corte: o arquiteto Filipe Juvarra e o famoso cantor Carlo Broschi, conhecido com o nome artístico de Farinelli. O primeiro foi contratado para projetar a reconstrução do antigo Palácio Real, o Alcazar, destruído em 1734, o segundo chegou com o papel de renovar, em Espanha, o amor pelo melodrama italiano.

Scarlatti e Juvarra já se tinham encontrado anteriormente, tendo tido, ao longo das carreiras profissionais, os mesmos mecenas: o Cardeal Ottoboni, Maria Casimira de Polónia, o Marquês de Fontes, D. João V e Filipe V de Espanha. Farinelli tomou o lugar de Scarlatti, tornando-se Diretor do Teatro Reale e adquirindo um grande prestígio na corte. Charles Burney, no seu livro sobre a vida musical de França e da Itália nesta época, refere que Farinelli tinha ido a Espanha, e graças à sua voz milagrosa, tinha curado o rei Filipe V de uma espécie de loucura, utilizando os mesmos métodos sobrenaturais para conservar a vida de Fernando VI, quase como se se tratasse de um milagre, o que o tornou omnipotente na corte (Burney, 1771, pp. 204-206). Farinelli estabeleceu um bom relacionamento com todos os membros da família real e também com o Príncipe e a Princesa das Astúrias. É provável que esta situação ofuscasse o prestígio e a

fama de Scarlatti, que foi relegado para segundo plano na Corte (Kirkpatrick, 1984, p. 105). Apesar disso, a sua fama foi-se difundindo lentamente por toda a Europa, sobretudo em Londres8, onde o seu amigo Roseingrave mantinha vivo o seu

nome. No ano 1738, transferiu-se com a sua família para a Calle de San Martin, afastando-se ainda mais da corte. Nesta altura nasceram outros três filhos.

A partir da chegada de Farinelli a Madrid, no ano de 1737, a ópera italiana recebeu um grande impulso e, a partir do ano seguinte, muitas destas óperas foram representadas no teatro real, com os melhores cantores da época e com libretos do famoso poeta e libretista Metastasio. Farinelli organizava e dirigia cuidadosamente todas estas representações, tornando-se mais tarde produtor.

A ópera de Madrid tornou-se famosa em toda a Europa, ao longo do reinado de Filipe V e Fernando VI.

Parece improvável que Scarlatti tenha beneficiado do apoio da Rainha Isabella Farnese, a qual olhava com hostilidade Fernando e Maria Bárbara e os dependentes deles, dando honras e preferências a Farinelli. (...) É possível que D. Maria Bárbara, não tendo influências na corte espanhola, tenha interposto uma boa palavra ao seu pai a favor do seu mestre (Kirkpatrick, 1984, p. 107, tradução livre).

No dia 8 de Março de 1738, no Convento dos Capuchos de Santo António, D. João V agraciou Scarlatti com a condecoração de Cavaleiro da Ordem de Santiago. Após a sua nomeação e como sinal de gratidão, Scarlatti dedicou a D. João V uma coletânea de peças para cravo, os Essercizi per gravicembalo di Don

Domenico Scarlatti Cavaliero di S. Giacomo e maestro de Serenissimi Prencipe e Prencipessa delle Asturie. Os Essercizi foram publicados em Londres, no dia 3 de

Fevereiro de 1738.

A coletânea, que marcou o início da verdadeira carreira do compositor, caracteriza-se como um unicum em relação à produção dos compositores contemporâneos: não é estranha às características dominantes do estilo italiano, é contudo original nos seus traços fundamentais.

No dia 6 de Maio, faleceu Maria Catalina Gentili, mulher de Scarlatti, que tinha sido uma grande colaboradora e aliada, sobretudo no começo da sua

carreira. Fechando-se ainda mais na sua solidão criativa, continuou a compor peças novas e originais para instrumentos de tecla. Entre 1740 e 1742, Domenico casou-se com Anastasia Maxardi Ximenes9, para tentar encontrar tranquilidade e estabilidade na sua vida sentimental, tal como o tinha conseguido com o seu primeiro casamento. Entretanto, a notoriedade dos seus trabalhos difundia-se por toda a Europa: em Amesterdão foram publicados os Essercizi e outras edições saíram em Paris e Londres. Podemos supor que Scarlatti vivia um período feliz da sua vida não só profissional mas também familiar, com o nascimento de outros dois filhos.

No dia 9 de Julho de 1746, faleceu o Rei Filipe V e, no mesmo dia, subiu ao trono o seu filho. Fernando VI e Maria Barbara não trouxeram nenhuma melhoria à vida na corte, continuaram a divertir-se com a música e com a caça, como sempre tinham feito anteriormente. Com a subida destes ao trono, Farinelli assumiu por completo a direção das óperas da Corte, contratando os melhores cantores de toda a Europa para as suas representações. Assim, chegou rapidamente ao topo da notoriedade, adquirindo uma enorme influência na corte (Kirkpatrick, 1984, p. 118).

Entretanto, o nosso compositor continuava com a composição das sonatas para a sua aluna real. Scarlatti, doente e cada vez mais frequentemente obrigado a ficar em casa, redigiu, no ano de 1749, o seu testamento, deixando a sua herança aos seus filhos, e à sua mulher a tarefa de educar os seus quatro filhos mais novos. Na leitura do testamento sobressai uma grande espiritualidade, juntamente com a preocupação de salvar a alma, mostrando ser uma pessoa generosa com o próximo.

No ano 1752, Scarlatti começou a transcrever as suas sonatas destinadas a Maria Bárbara, testemunho de um imenso respeito e devoção. Este trabalho monumental, que durou acerca de cinco anos, inclui 13 volumes, cada um contendo 30 sonatas (com a exceção do volume 10, que contém 34 sonatas). Os manuscritos autógrafos desapareceram.

9 Apêndice II, documento de batismo de Maria Barbara, Domingo, e António Scarlatti, como citado

No ano de 1752, a saúde do maestro piorou, obrigando-o a ficar muitas vezes em casa, longe da sua aluna. Na mesma altura, as dificuldades económicas acrescentaram-se a outros problemas: aparentemente teria dívidas de jogo e trabalhou nesta transcrição dos 13 volumes de sonatas para agradecer a Maria Barbara, que lhe teria pago as dívidas e que sustentou a família do compositor mesmo após a sua morte (Burney, 1796, pp. 205-206). Tudo isto mostra que Scarlatti foi, acima de tudo, um homem com seus defeitos e paixões, além do grande génio que todos conhecemos.

No ano 1752, Scarlatti transcreveu para orquestra os dois hinos Eroici

panegirici, que tinham sido compostos pelo compositor holandês Pierre du Hotz

para o Duque de Alba (Ballesteros, 1919-1941, Vol. VI, p. 562). Trabalhou intensamente no projeto, elaborando-o com elegância e encontrando efeitos inovadores e originais.

Scarlatti passou os últimos anos da sua vida com grande religiosidade, encontrando ainda forças para copiar nos livros da capela real, em 1754, uma Missa a cappella para quatro vozes.

Foi nesta altura que conheceu o padre António Soler, que terá sido seu aluno, dado que algumas das composições deste último refletem o estilo de Scarlatti, sobretudo no estilo contrapontístico.10 Soler publicou, em 1762, o tratado

Llave de la modulacion, que constitui uma tentativa de introduzir conceitos

inovadores numa tradição teórica ainda presa aos tratados do século XVI.

Scarlatti era famoso em toda Europa, mas sobretudo em França e na Inglaterra, onde eram frequentemente solicitadas as suas composições11.

Não temos provas de que Domenico tenha conhecido Sebastián de Albero (1722-1756), organista e compositor espanhol. Nomeado, em 1746, primeiro organista da Capela Real de Fernando VI de Espanha, compôs numerosas obras para instrumento de tecla. Sabemos que um volume de sonatas de Scarlatti, que agora se encontra na British Library, parece ter sido copiado expressamente por Sebastian de Albero.

10 Para aprofundamento sobre Soler, ver cap. VI.4.2, p. 261.

Charles Burney, no seu livro (Burney, 1771, p. 221), afirma ter conhecido o Sr. Laugier. Este último tinha sido amigo de Scarlatti e tinha composto para ele, no ano 1756, cerca de 42 sonatas, dedicando-lhas. No mesmo ano, Scarlatti compôs uma Pastorale di Natale (Sonata K.513) e a sua última ópera, o Salve Regina para soprano e cordas, que se encontra na Biblioteca do Liceu Musical de Bolonha.

Scarlatti faleceu em Madrid, no dia 23 de Julho 1756, na casa da Calle de

Leganitos, junto a Paróquia de San Martin. Foi sepultado secretamente no

Convento de San Norberto, destruído no ano 1848. A partir desta data perdeu-se qualquer notícia acerca do lugar exato da sua sepultura.

A Rainha faleceu em 1758, deixando os seus melhores instrumentos de tecla e todas as sonatas de Scarlatti a Farinelli. O Rei faleceu no ano seguinte. Sucedeu-lhe o Rei Carlos III, que não tinha qualquer sensibilidade para a música. Pouco anos depois, Farinelli deixou definitivamente Espanha e transferiu-se para Bolonha.

CAPÍTULO II

CONTEXTUALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DAS TRÊS COLEÇÕES PARA

II. Contextualização e caracterização das três coleções para