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2 UMA CRÍTICA AO PARADIGMA DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL FUNDADO SOBRE O

2.1 Animais como propriedade

Gary Lawrence Francione (1954) é um jurista estadunidense que leciona em Rutgers, The State University of New Jersey, e tem um posicionamento bastante peculiar acerca do tema da moralidade em relação aos animais, o que inclui, consequentemente, o modo como os seres humanos devem tratá-los em geral. Pode-se dizer que Francione possui uma abordagem abolicionista dos direitos animais, i.e., ele propõe que todos os animais sencientes39 (humanos ou não)

devam ser inseridos na comunidade moral, posto que esse critério da senciência é o único critério fundamental e não arbitrário para que se deva ter obrigação moral para com determinado ser individualmente. Mas distintamente dos demais autores que compartilham dessa linha de raciocínio, ele crê que mais do que classificar os seres como sencientes e conferi-los proteções, quem é senciente precisa ser considerado pessoa e ter dois direitos básicos relacionados a tal condição: o direito de não ser meio para benefício de outrem e o direito de ter um valor inerente igual.

Nesse diapasão, Francione percebe um sério problema no clássico e difundido princípio do tratamento humanitário. Segundo seu entendimento, o quadro elaborado pelo princípio do tratamento humanitário possui internamente uma inconsistência capaz de gerar respostas morais ruins ou, no mínimo, imprecisas. Na 39 Na concepção de Francione, há seres que respondem a estímulos apenas por reações nervosas

nociceptivas, i.e., ações reflexivas em reação a danos a tecidos sem que exista uma percepção subjetiva, uma percepção do self de quem está tendo a reação. A senciência, entretanto, diferentemente da capacidade de reagir reflexamente a um estímulo, é a capacidade de consciência da dor (ou do prazer), a capacidade de perceber-se como sujeito individual que está sentindo a dor, a capacidade de ter experiências subjetivas da dor e do sofrimento. Nos seres sencientes existe um “eu” que tem experiências subjetivas, não há apenas a percepção genérica das experiências. Cf. FRANCIONE, 2013, p. 44/55.

verdade, a formulação desse princípio advém de um preconceito social em relação aos animais (o especismo40), e o seu resultado é a consolidação de dois tipos de

“esquizofrenia moral”41: primeiro a que afirma uma necessidade de proteção dos

animais ao mesmo tempo em que se aceitam vários tipos de usos danosos dos mesmos, segundo a que afirma que alguns animais são mais importantes do que outros, posto que alguns feitos para uso e outros para serem cuidados. Para esse autor, um princípio que visa atribuir direitos a quem tem o status moral de propriedade é irrealizável em sua essência, posição para a qual ele apresenta justificativas.

A razão de Francione afirmar que o princípio do tratamento humanitário é inconsistente, já que especista e gerador da esquizofrenia moral, está no fato de ele ser um princípio que visa conferir proteção por direitos a seres que continuam com o mesmo status moral de antes, o de mera coisa ou recurso utilizável. Desse modo, o princípio moral mencionado é um paradoxo, na medida em que busca ter uma consistência interna e, na verdade, esconde contradições em virtude de avaliações superficiais ou mal intencionadas. Visando deixar a ideia norteadora de Francione mais elucidada ainda, pode-se dizer que o que mais incomoda teoricamente o autor no princípio do tratamento humanitário é que ele não altera em nenhum grau o status moral dos animais (que é o de propriedade dos humanos) e, ao mesmo tempo, visa protegê-los em suas necessidades de seres sencientes. Isso gera 40 Francione não utiliza integralmente tal definição de Ryder. Para o primeiro, ocorre especismo

quando os seres humanos utilizam o mero pertencimento à espécie humana para justificar a atribuição do status de propriedade aos animais, “objetificando-os”, portanto. Francione, assim, apresenta em sua definição o paradigma legal sobre o qual o preconceito de espécie se estabelece, segundo o qual a diferença de espécie acaba justificando o status moral animal como recurso econômico utilizável. Nas palavras literais de Francione em uma de suas passagens sobre o assunto: “Usar a espécie para justificar a condição de propriedade dos animais é especismo” (FRANCIONE, 2013, p. 32-33).

41 Esquizofrenia moral é um termo apresentado por Francione para que ele consiga definir o

comportamento estranhável dos seres humanos em relação aos animais. Para ele, quando as pessoas afirmam se importarem com os animais simultaneamente ao fato de usá-los das mais diversas e cruéis formas, elas expressam um comportamento mórbido que ele toma como análogo à esquizofrenia. No universo médico, a esquizofrenia é caracterizada, grosso modo, como uma doença que altera os códigos de referência das pessoas e, portanto, interfere no raciocínio lógico, na distinção clara que devem ter entre realidade e imaginação e nas suas respostas emocionais. Assim, em virtude de os humanos, quando se trata das relações estabelecidas com os animais, afirmarem um princípio de proteção, raciocinarem apenas de forma pragmática e agirem por oportunismo, Francione julgou ser adequado comparar tal situação à uma esquizofrenia, que por ser referente à moralidade prática, ele denominou de “esquizofrenia moral”. Esse padrão de comportamento provém do princípio que ele considera falacioso, o princípio do tratamento humanitário.

consequências decisivas na forma de as sociedades ocidentais pensarem a moralidade em relação aos animais. Primeiro, surge a noção de que os animais precisam ser protegidos porque são sencientes, muito embora em um suposto conflito de interesses com os humanos, eles devam ser protegidos conforme sua condição moral de propriedade e os humanos como pessoas, o que repercute grandemente nos instrumentos morais e legais utilizados na consideração e proteção de um grupo e de outro. Isso faz com que interesses humanos fúteis ou pequenos, por serem interesses de pessoas protegidas por direitos, sejam mais amparados do que significativos interesses de animais, por serem interesses de propriedade (primeiro tipo de esquizofrenia moral). Segundo, surge a ideia de que existem dois tipos de animais, aqueles feitos para usar (na alimentação, vestuário, entretenimento, experimentação, etc.) e aqueles feitos para serem cuidados e resguardados, conforme a variação de sua forma de propriedade e não segundo a sua natureza senciente (segundo tipo de esquizofrenia moral).

Como se buscou demonstrar no primeiro capítulo da pesquisa, o princípio do tratamento humanitário tem origem nas teses do teórico Jeremy Bentham, o qual afirmou a relevância da capacidade senciente para a necessária consideração moral. Para Bentham, e que foi incorporado no princípio do tratamento humanitário, a partir do momento em que se tem conhecimento acerca da senciência dos animais, tem-se a obrigação moral de levar os interesses desses seres em consideração, pois se reconhece que eles não são coisas, objetos inanimados, autômatos, ou qualquer outra noção semelhante. Não obstante, para Francione, mesmo bem intencionado e buscando dar valor à característica relevante da senciência como critério de proteção dos animais, o princípio não faz menção de alteração do status moral dos mesmos. O princípio reconhece que os animais sentem e que, portanto, devem ser protegidos moral e juridicamente, mas não desafia o status de propriedade dos humanos que os animais experimentam. Para Francione, então, não se pode dizer que o princípio do tratamento humanitário é muito expressivo na proteção que confere aos animais, pois, mesmo os reconhecendo sencientes, não oferece uma alternativa à visão de que os animais são recursos dos homens. E isso, se for feita uma análise mais profunda e comparativa com as visões anteriores ao princípio estudado, não muda muito a ideia

que se tinha nos séculos XVII e XVIII dos animais vistos como coisas.

Essa é a razão central da crítica: não faz sentido afirmar que os interesses dos animais são levados a sério por serem sencientes e continuar tratando-os como meros recursos de outros seres. Esse sistema moral híbrido é paradoxal e impossível de se sustentar. A razão disso é que sempre que houver um conflito de interesses entre pessoas e animais, em virtude dos animais terem uma condição moral de recurso das pessoas, eles sempre terão os seus interesses comparados com os interesses das pessoas de uma forma dessemelhante, mais precisamente, inferiorizada. Afirmar que os animais são seres capazes de sentir e, portanto, que precisam ser protegidos e, num possível conflito com humanos, esses seres serem tomados como recursos e, assim, com proteção menor e contingente, parece, sob o olhar de Francione, proteger desprotegendo ou tentar equilibrar desequilibrando, contradições em termos.