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2 UMA CRÍTICA AO PARADIGMA DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL FUNDADO SOBRE O

2.4 Objeções à pessoalidade animal

Após a publicação do livro Introdução aos direitos animais: seu filho ou o cachorro?, Francione recebeu importantes comentários e críticas, tanto em relação ao posicionamento que ele tem sobre os autores clássicos no contexto da discussão acerca da condição animal atualmente e do que seriam garantias importantes para

os mesmos, quanto em relação aos seus próprios argumentos e do que ele mesmo acredita que seja correto a ser feito pelos humanos para com os animais. Um importante revisor de seu livro e autor de críticas foi o professor Cass R. Sunstein (1954)60. Sunstein julga como problema central a importância que Francione dá à

senciência como característica que deve implicar a posse de direitos básicos e ao problema sério que ele entende existir no status de propriedade dos animais.

Para tanto, ele formula três principais objeções. Primeira, Sunstein defende que os animais gozarem de um status de propriedade não impossibilita que eles tenham ou venham a ter algum tipo de tratamento melhor ou reconhecimento de valor moral. Para ele, esse status de propriedade, na verdade, protege os animais em alguns sentidos. Segunda, ele é muito cético à posição que extrai uma teoria dos direitos animais da mera característica da senciência. A teorias que se baseiam no reconhecimento da senciência dos seres, para ele, são teorias consequencialistas. Assim, para desenvolver uma deontologia ou uma teoria dos direitos, é preciso pautar-se na agência moral dos seres a serem protegidos. Ele julga, então, haver uma incompatibilidade entre usar o critério da senciência e desenvolver teses de direitos como proteção. Por fim, ele alega que, mesmo que a teoria de Francione seja válida e os animais tenham ou possam ter direitos, esses direitos podem ser desprezados em caso de haver benefícios prováveis e significativos, como ocorre no caso dos direitos humanos, em que há limitações consequenciais.

Todas as questões citadas na primeira e segunda objeções parecem já ter sido esclarecidas ao longo do texto. A terceira parece difícil que seja considerada uma objeção propriamente dita, já que é uma afirmação acerca do que ocorre no contexto dos direitos humanos e uma possibilidade do que ocorreria no caso de direitos animais, o que não invalida as asserções feitas por Francione. Não obstante, afigura-se importante uma síntese do pensamento de Francione a partir dessas críticas e um comentário a respeito do terceiro apontamento de Sunstein.

Assim como ocorre com Bentham e Singer, Sunstein, como consequencialista, não identifica problema no uso de animais, ainda que esse uso não possa ser considerado necessário estritamente. Segundo sua perspectiva, como a dos outros

60 Cass R. Sunstein é um estudioso e professor da área do direito, nascido nos Estados Unidos da

autores mencionados, o uso reprovável dos animais pelos humanos só ocorre quando os animais são submetidos a tratamentos que tornam suas vidas indignas de serem vividas. Tanto o prazer quanto o entretenimento e a conveniência são boas justificativas para a utilização dos animais pelos humanos. O problema está meramente no fato de esses usos poderem ser gerador de dor e sofrimento. Essa perspectiva, evidentemente, traz em si a compreensão que ele tem de que os animais não têm interesse na quantidade de suas vidas, mas apenas na qualidade das mesmas. Como consequência, os animais não são prejudicados ao serem propriedade de alguém. Para ele, os animais não têm interesses relativos à própria vida (existência continuada) ou relativos a não serem propriedade de alguém. Seu único interesse é não ser vítima de dano. Nesse sentido, ele crê que os animais podem ser propriedade e, ainda assim, serem igualmente considerados em seus interesses e serem reconhecidos em seu valor intrínseco. Possíveis problemas gerados pelo status de propriedade dos animais, afirma Sunstein, são contingentes e não necessários.

Ratificando o conteúdo anteriormente apresentado, Francione justamente afirma a impossibilidade de se conferir aos animais igual consideração de interesses em circunstâncias nas quais eles são tomados como propriedade porque, para ele, senciência leva à busca tanto por qualidade quanto por quantidade de vida. Isso ocorre em virtude do que ele explicou em relação ao bem-estar experiencial. Esse bem-estar dá condição ao ser senciente de experimentar o momento com consciência de que quem está desfrutando da realidade é o próprio ser e isso se liga intimamente com o interesse que esse ser desenvolve de ter a sua existência prolongada. Nesse sentido, para o animal, a morte é de fato um dano e ele se preocupa em não sofrê-la. Em seguida, Francione postula, baseado na ciência mais atual, que a capacidade da senciência não é um fim em si mesmo. Ela surgiu no processo evolutivo para que seres complexos pudessem preservar as suas próprias vidas. Portanto, a senciência tem muita importância, uma vez que relacionada à preservação da vida.

Finalmente, Francione pauta-se na noção de que senciência significa, em algum sentido, autoconsciência, posto que há uma existência mental contínua do ser senciente. E, como já mencionado, ele fundamenta tais afirmações em estudos

científicos. Outra importante reflexão que Francione tem acerca dessa temática e que foi utilizada para apresentar as discordâncias que ele tem com o modo de pensar de Singer é a de que não existe uma boa justificativa para considerar mais importante os seres que mais se aproximam do modelo humano paradigmático de autoconsciência representacional. Essa exigência típica da teoria das mentes similares pressupõe uma superioridade humana que é difícil de sustentar. Por que a mente humana complexa e o modo de pensar por representação deve implicar um tratamento melhor? Essas características não deveriam ser importantes apenas em alguns segmentos e aspectos que não o da consideração moral? Não faz sentido haver uma relação entre a falta ou a posse de certa característica de um modo diferente e o necessário tratamento dos animais como meros recursos. Essa forma de pensar e esse comportamento apenas geram um tipo de elitismo moral, o que produz ataques a interesses fundamentais de um grupo.

Para além do que foi dito, e uma parte considerada muito importante para a completa compreensão do modo de pensar de Francione, tem-se a crítica severa que ele faz ao status de propriedade que os animais têm e que os impossibilita de serem receptores de proteção moral adequada. O que é considerado secundário para Sunstein, é tomado como essencial para Francione. Para o segundo, a única forma possível de levar os interesses animais a sério é a troca de status moral dos mesmos. Eles precisam deixar de ser considerados propriedade e necessitam passar a ser pessoas. Francione (2008, p. 162) explica o porquê.

[…] These problems are greatly exacerbated by the property status of animals, which acts as a blinder that effectively blocks even our perception of their interests as similar to ours because any limitation on property owners is understood to represent significant human “suffering”. And even in those instances in which human and animal interests are recognized as similar, animals will lose in any balancing of interests because the property status of animals is always a good reason not to accord similar treatment unless to do so would benefit property owners. The interests of slaves will never be viewed as similar to the interests of slave owners. The interests of animals that are property will never be viewed as similar to those of human property owners.

Além disso, parece ser apressado ou limitado dizer, como o faz Sunstein, que a condição de propriedade não só não é impedimento para a igual consideração de interesses como gera benefícios aos animais. Isso porque pode até ser correto dizer

que um número expressivo de animais de companhia não é considerado coisa por seus donos, mas o mesmo não é, de forma alguma, verdadeiro quando se direciona a uma quantidade indeterminada de outros animais utilizados em outros ramos. Quando ele faz esse tipo de comentário desconsidera todas as exceções criadas tanto no comércio quanto na legislação e jurisprudência acerca das prerrogativas dos proprietários em relação a ou em detrimento de suas propriedades, as quais foram mencionadas, exemplificadas e explicadas por Francione em sua obra revisada pelo professor Sunstein. Fica clara, quando se estudam essas exceções, a dificuldade que é afirmar que o status de propriedade dos animais os beneficia, porque mesmo nos casos em que algumas pessoas oferecem consideração aos interesses dos animais, isso ocorre de um modo contingente e não necessário, obrigatório, coercitivo, é mais uma decisão e comportamento “a critério do dono”.

Outro problema que Sunstein observa estar presente na teoria de Francione é a impossibilidade de se desenvolver uma teoria de direitos a partir da característica da senciência, que é compatível apenas com teses consequencialistas. Para o professor que faz a objeção, para que seja possível falar em direitos protetivos de alguém é preciso que esse ser seja um agente moral, capaz de um comportamento moral recíproco em relação à proteção dedicada a si.61 Para ele, então, a

capacidade de sofrer não goza ou não deve gozar de centralidade numa teoria de direitos. Nesse aspecto, parece que os dois estudiosos do direito não discordam, pois Francione não desconhece a intrínseca relação que há entre direitos e agência moral. No entanto, quando ele liga senciência a direitos morais, ele o faz de uma maneira específica, para não dizer restrita, apenas em relação aos direitos básicos, dos quais o mais importante é o direito moral de não ser tratado exclusivamente como meio de fins alheios. A agência moral é importante para alguns direitos, mas não para os direitos básicos. Para esses, basta tão somente a capacidade de senciência para que eles devam ser atribuídos.

O último comentário feito por Sunstein à Francione e que não parece, propriamente, uma objeção diz respeito à constatação de que é impossível que os animais deixem ou possam deixar de ser explorados, ainda que seja atribuído a eles

61 Proeminentes exemplos dessa forma deontológica de pensar são teóricos como Immanuel Kant e

valor inerente e consideração moral. Para tanto, ele usa o caso dos humanos, os quais podem ser considerados como meios ainda que tenham valor inerente e sejam protegidos por direitos.

A questão fundamental é que Francione não discorda dessa visão. Realmente, ele admite que os próprios direitos fundamentais dos seres humanos são direitos que por questões empíricas podem ser relativizados e, portanto, desconsiderados em certas circunstâncias de verdadeira necessidade. Entretanto, poder ser considerado meio em alguma circunstância particular é muito diferente de ser considerado exclusivamente como meio ou recurso em qualquer circunstância. Ser exclusivamente um meio significa ser uma mercadoria, um produto, o qual não tem um valor em si mesmo, mas um valor numa relação, um valor extrínseco, um valor econômico. Pessoas têm valor em si, mercadorias ou produtos têm preço. Isso muda muito o tratamento destinado a cada um. Por isso a afirmação na qual Francione insiste: o direito de não ser tratado como um produto é um direito básico e uma condição mínima para ser membro da comunidade moral. E ele já havia mencionado no livro Introdução aos direitos animais: seu filho ou o cachorro? o trecho seguinte para esclarecer esse posicionamento, bem como repetiu o trecho em resposta à Sunstein na obra Animals as persons: essays on the abolition of animal exploitation.

Há um “sinal vermelho” que restringe esse processo de atribuição de valor e limita nosso uso e tratamento dos humanos. Podemos valorar nossa encanadora como um meio para o fim de consertar nossa torneira, e está correto pagar mais a uma boa encanadora do que a um encanador menos competente. Mas se deixamos de valorar a encanadora como encanadora e, além disso, não gostamos dela ou não lhe atribuímos valor de nenhum outro modo, não podemos tratá- la exclusivamente como uma mercadoria; não podemos escravizá-la num campo de trabalhos forçados; não podemos comê-la, usá-la em experimentos, ou transformá-la num par de sapatos (FRANCIONE, 2013, p. 169; FRANCIONE, 2008, p. 167).

Com essas palavras parece que Francione gostaria de deixar claro que “our use of animals for food, clothing, entertainment, experiments, and the like goes qualitatively beyond the use the exploitation that most of us regard as permissible where humans are concerned” (FRANCIONE, 2008, p. 167). Assim, parece que a comparação de Sunstein não se mostra muito criteriosa a ponto de se formular

como objeção.