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Hermenêutica constitucional para proteção dos animais

2 UMA CRÍTICA AO PARADIGMA DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL FUNDADO SOBRE O

3.1 Seres sencientes como pessoas

3.1.2 Hermenêutica constitucional para proteção dos animais

Com base nesses pressupostos, acredita-se que hoje, em razão da produção consistente da zooética e da ciência, é necessário e possível transformar, interpretativamente, a “frieza” da literalidade do texto normativo brasileiro que visa apenas proteger os animais contra crueldade no sentido posto pelo princípio do

tratamento humanitário, i.e., a realização de práticas que causem dor ou sofrimento desnecessariamente, em normas mais adequadas e abrangentes, as quais levam em consideração a pessoalidade animal e a obrigação moral que deve haver para com eles de não transformá-los em meros instrumentos, o que não quer dizer outra coisa senão escravização. Desde a década de 1970, há conhecimento bioético substancial sobre o assunto sendo desenvolvido e não se podem desconsiderar todas as mudanças vivenciadas na forma de reconhecer e proteger os animais, as quais são muito diferentes das noções que vigoraram até o século XIX. Portanto, para que um país abandone a reprodução de um anacronismo presente nas letras mortas de um texto literal, ele deve lançar mão de um processo de adequação entre o que está escrito e as novas noções acerca do tema, nesse caso, o tema da experimentação animal.

O ponto de partida para se oferecer respeito aos direitos fundamentais é o texto hierarquicamente superior dentro de um ordenamento jurídico; no caso do Brasil, trata-se da Constituição da República Federativa do Brasil. O texto normativo de maior poder para um país possibilita manter a influência dos direitos fundamentais sobre todos os poderes, possibilita destacar o valor moral desses direitos e também possibilita interpretá-los no sentido de sua máxima concretização. Com base nesse entendimento, no caso da proteção aos direitos morais dos animais na experimentação, o ponto de partida para fazê-los válidos e bem interpretados deve ser compreender o que a Constituição Federal determina sobre o assunto de uma maneira axiológica e principiológica. No caso dos animais e do seu uso experimental, portanto, isso passa por entender o que se quer proteger com a adoção do princípio da não crueldade. Somente a partir desse princípio é possível interpretar todo o restante do arcabouço jurídico brasileiro sobre esses sujeitos e sobre essa temática.

Quando se estuda o caso da proteção dos animais no Brasil, como já apresentado, o que se percebe é que o princípio da não crueldade é eleito como ponto de partida para a proteção dos animais. Por essa razão, ele está colocado no texto hierarquicamente superior do sistema jurídico desse país. Tal princípio inspira- se no conhecido princípio moral do tratamento humanitário. Sendo assim, ele visa proteger a capacidade de senciência dos animais condenando todas as práticas

danosas a esses seres quando elas não forem úteis e justificáveis. Para esse princípio, assim, não há um erro moral intrínseco em produzir danos aos animais. O erro moral existe quando os danos gerados forem gratuitos ou sem propósitos. Naturalmente, segundo essa interpretação ortodoxa do princípio constitucional que irradia proteção aos animais nos demais escalões do sistema jurídico, os animais não têm valor intrínseco ou inerente. Na verdade, eles possuem sempre, em alguma medida, um valor instrumental. Sua senciência é importante parâmetro para a condenação de ações danosas quando tais ações não oferecerem contrapartida para a satisfação de interesses humanos.

Não obstante, com base nas razões apresentadas no capítulo precedente, há um grave problema nessa versão tradicional de interpretação do princípio da não crueldade. Os animais sencientes não podem ser protegidos apenas em relação a outros seres ou, em outras palavras, instrumentalmente. Isso porque, como argumentado, os animais sencientes são também autoconscientes e isso significa que devem ser considerados moral e juridicamente como pessoas. Na medida em que os sujeitos que são considerados pessoas possuem um valor inerente não gradual, comparável e prescindível, todas as normas protetivas de tais sujeitos devem prezar por tal valor, o valor de fim e não de meio. Todas as pessoas precisam ser reconhecidas como fins em si mesmas, sem quaisquer cálculos de utilidade, o que quer dizer, em outras palavras, o impedimento absoluto de transformar pessoas em escravos, i.e., meios para a obtenção de benefícios que não lhes são diretamente próprios. Isso só pode ser apresentado, constitucionalmente, por um princípio protetor do valor da dignidade pessoal.

Essa noção é claramente aplicada ao caso humano. Há um princípio constitucional que materializa o maior valor dos sujeitos humanos e se irradia para todo o sistema jurídico como critério de validade para todos os princípios e regras. Esse é o princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana é fundamento dos princípios fundamentais individuais e do próprio Estado e decorre da consideração da pessoalidade. À medida que os interesses individuais se alargam, a dignidade da pessoa humana fundamenta e legitima diversos direitos protetivos, como os direitos civis, sociais e políticos. Mas para que ele possa ser fundamento de tantos outros direitos fundamentais individuais, esse princípio

encerra em si uma proteção superior a todas as outras, qual seja a proteção de a pessoa humana não poder nunca, em nenhuma hipótese, ser escravizada ou se tornar meramente um meio para beneficiar terceiros, o que significa a total vedação de se atribuir um valor meramente instrumental às pessoas humanas. O entendimento para isso é o de que de nada adiantaria haver proteções de outros interesses pelo instrumento dos direitos fundamentais se a pessoa humana pudesse ser escravizada, pois essa é uma condição que inviabiliza o reconhecimento e proteção de todos os outros interesses.

TÍTULO I

Dos Princípios Fundamentais

Art. 1.º A Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III – a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, 1988).

Analisando esses fatos e valores, e comparando o princípio constitucional básico para a proteção dos animais e o princípio constitucional básico para a proteção dos seres humanos, nota-se a adoção de um duplo padrão. Os animais são reconhecidos e protegidos segundo um valor instrumental (princípio da não crueldade), e os humanos são reconhecidos e protegidos segundo um valor de fim (princípio da dignidade da pessoa humana). Isso poderia ser aceitável se diferenças essenciais justificassem essa discrepância na forma de tratá-los. Mas isso não ocorre. Não há diferenças moralmente relevantes para tratar um grupo distintamente do outro naquilo que é apenas relativo à capacidade da senciência (vida, integridade física e liberdade) e não de outras competências. A razão disso é que o sistema jurídico brasileiro adota um duplo padrão baseado no critério arbitrário da espécie. Humanos são considerados pessoas e animais, embora reconhecidamente sencientes, são considerados propriedade com valor instrumental.

Para superar a falibilidade do duplo padrão empregado, busca-se apresentar uma nova possiblidade normativa. Todos os seres sencientes precisam ser reconhecidos como pessoas. Todas as pessoas, por sua vez, precisam ser consideradas como fins em si mesmas. Isso quer dizer que todas as pessoas precisam ser reconhecidas em seu valor inerente e não no valor instrumental, i.e., dignidade e não preço. Todas as pessoas têm uma dignidade que precisa ser

respeitada. Assim, não faz sentido considerar os humanos em sua dignidade e não, da mesma forma, os animais que são pessoas. Toda a estrutura de princípios e regras regulamentadora da proteção de pessoas precisa estar fundada no valor da dignidade pessoal, tanto para a espécie humana quanto para as outras espécies que têm pessoas como membros.

Nosso ordenamento realmente tem como um de seus principais fundamentos a “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III da Constituição Federal), princípio esse que se espraia por todo o sistema de modo a orientar a interpretação das demais normas constitucionais. Todavia, o vértice de dignidade humana não é um caminho de mão única excludente da possibilidade de valoração e consideração de outras realidades que merecem, ainda que em menor extensão, a titularidade de determinados direitos subjetivos fundamentais (LOURENÇO, 2008, p. 484).

Como bem disse Francione, o avanço histórico de consideração dos animais por meio do princípio do tratamento humanitário foi fundamental e a partir da consideração dos mesmos como sencientes surgiu e desenvolveu-se uma noção de que os seres humanos teriam para com tais seres responsabilidades e deveres diretos. Não obstante, a consideração desses seres como propriedade ou recurso impede sobremaneira o reconhecimento dos e respeito pelos seus interesses. Dessa forma, a única maneira vislumbrada por esse autor, para que os interesses animais possam ser verdadeiramente levados em consideração, é o reconhecimento dos animais enquanto pessoas. Para ele, somente dessa maneira o princípio da igual consideração dos interesses pode ser efetivado.

Reconhecemos que o universo moral se limita a apenas dois tipos de seres: pessoas e coisas. As “quase pessoas” (ou “algo mais do que coisas”) necessariamente correrão o risco de ser tratadas como coisas porque o princípio da igual consideração não pode se aplicar a elas.

Semelhantemente, não podemos considerar os animais “quase pessoas” ou “algo mais do que coisas”. Ou eles são pessoas, seres aos quais o princípio da igual consideração se aplica e para com os quais temos obrigações morais diretas, ou eles são coisas, seres aos quais o princípio da igual consideração não se aplica e para com os quais não temos nenhuma obrigação moral direta (FRANCIONE, 2013, p. 181-182).68

68 Embora já mencionado, julga-se oportuno reforçar a noção de que considerar os animais como

pessoas não significa o mesmo que os considerar iguais aos humanos e não significa a atribuição irrefletida aos animais de todos os direitos que os seres humanos possuem. Dizer que alguém é pessoa significa dizer que o princípio da igual consideração se aplica aos interesses desse ser e

Em outro contexto, Singer já havia aduzido a noção de que o conceito de pessoa não pode ser confundido com o de ser humano, porque pode haver pessoas de outras espécies. Isso é válido não apenas no contexto moral, mas também no contexto jurídico, pois a noção de pessoa até mesmo para o direito está descolada de um referencial de espécie ou mesmo factual. Para o direito, a noção de pessoa é uma elaboração jurídica que permite em momentos históricos diferentes a inclusão de sujeitos diferentes na categoria pessoal. O maior exemplo disso é que nem mesmo os seres humanos foram sempre considerados pessoas. Negou-se em muitas circunstâncias históricas a pessoalidade e a importância moral e jurídica a escravos, mulheres, crianças, etc., assim como se transformou tais realidades exclusivas abrangendo na categoria de pessoas tais seres. O mesmo é possível em relação aos animais. Hoje, nega-se a pessoalidade aos animais bem como sua proteção moral e jurídica segundo esse parâmetro. Mas, não há impedimentos para a transformação dessa situação e a devida inclusão de tais seres nessa categoria protetiva. A realidade jurídica do que é considerado pessoa pode ser transformada.

NIKLAS LUHMAN afirma que não mais devemos perquirir acerca de propriedades ontológicas, tais como alma, mente, capacidade reflexiva, para que uma entidade possa ser qualificada como um agente social ou legal. Os agentes individuais e coletivos são criados por atribuição social. […] A personificação de não-humanos [sic] funciona como uma verdadeira estratégia de como lidar com as incertezas a respeito da identidade do alter, que abre espaço para a assunção de sua auto-referencialidade. Para LUHMAN pessoas seriam estruturas comunicativas, um nome para um locus no qual um

que nunca se pode reduzir tal ser à condição exclusiva de recurso. Portanto, os danos que são evitados com essa definição são apenas os danos decorrentes da consideração de tais seres como propriedade. Dessa forma, o que se pretende com a mudança de status no caso dos animais é evitar que os humanos nunca possam ser usados exclusivamente como meios para benefícios alheios ao mesmo tempo em que os animais sempre podem ser usados ou sacrificados para benefícios de humanos e animais. Considerar os animais sencientes como pessoas representa almejar que todas as normas relacionadas aos direitos fundamentais dos seres humanos concernentes à vida, integridade física e liberdade, enquanto categorias basilares e de interesse universal de todos os seres capazes de sentir prazer e dor, devem ser aplicadas também aos animais. Isso não quer dizer que aquilo que compõe a dignidade da pessoa humana, mas não digam respeito a sua característica básica definidora de sua pessoalidade, a senciência, devam também ser atribuídas a tais seres. Para um ser humano, direitos civis, sociais e políticos são fundamentais para o exercício pleno de sua dignidade humana, mas para os animais não faz absolutamente nenhuma diferença que ele não possa se licenciar para dirigir ou para votar. Entretanto, os direitos fundamentais humanos garantidores da integridade de sua vida, de seu corpo e de sua liberdade são de suma valia para os animais, posto que eles também são pessoas. Então, em virtude de haver uma correspondência entre a pessoalidade humana e animal, entende- se que os direitos básicos impeditivos de não se tornarem escravos ou meros meios para outros fins é tão importante a um grupo quanto o é para o outro.

sistema social cria uma máscara que, internamente, refere-se a processos humanos e não-humanos [sic] considerados relevantes (LUHMAN, 1995 apud LOURENÇO, 2008, p. 486).

Destaca-se que a ideia desenvolvida nesse momento não é uma proposta para ser aplicada pelos tribunais no controle de constitucionalidade difuso, em que os juízes têm prerrogativa de interpretar o texto constitucional abertamente com base na eleição dos melhores valores. Entender que os juízes, por uma questão de justiça, teriam de passar a considerar o princípio da não crueldade, claramente a expressão do princípio do tratamento humanitário, como o princípio abolicionista da igual consideração de interesses, segundo o qual os animais devem ser considerados pessoas e, portanto, com direitos básicos à não escravização, seria a implementação de uma enorme instabilidade jurídica no país. O mesmo ocorreria se a esses agentes fosse dada a função de desconsiderar o princípio da não crueldade e o de reconhecer um princípio de dignidade pessoal para basear os direitos fundamentais dos animais.

[…] a atividade do intérprete não é absoluta. Inadmite-se que ele, ao mudar o sentido da norma constitucional, possa vir a mudar o texto. Assim, embora, em princípio, a interpretação constitucional caracterize um processo informal de mudança do sentido da Constituição, essa atividade encontra limites no programa da norma constitucional, insuscetível de alteração, pois se devem preservar os princípios estruturais (políticos e jurídicos) da Constituição. […] Mencione-se, ainda, como limites da interpretação constitucional, a impossibilidade da interpretação autêntica feita pelo legislador ordinário, e a inadmissão de normas constitucionais inconstitucionais como decorrência do princípio da unidade da Constituição (CARVALHO, 2006, p. 315).

O que se pretende demonstrar, nesse momento, é que a escolha do princípio da não crueldade enquanto princípio do tratamento humanitário para o escalão hierárquico supremo brasileiro, em 1988, é uma postura anacrônica de consideração dos animais. Em plena segunda metade do século XX, o Brasil já poderia ter lançado mão de uma consideração acerca dos animais mais compatível com a noção de pessoalidade que possuem e que implica direitos básicos a não serem submetidos a práticas como meros meios para beneficiarem outrem. Nesse sentido, o que se propõe, então, é uma nova consideração do texto constitucional e infraconstitucional no Brasil, para que o princípio constitucional de proteção das outras espécies seja

mais preciso no reconhecimento e proteção da personalidade animal e que os textos normativos infraconstitucionais que tratam da matéria da experimentação possam reconhecê-los em sua pessoalidade e direitos concernentes à condição de sujeitos, ao contrário da atual noção da qual gozam, que é baseada em um princípio que os instrumentaliza e conduz à noção de que, em contexto experimental, tais seres são cobaias.

No caso dos animais utilizados em experimentação, não se pode permitir que o direito positivo brasileiro atual seja uma mera replicação conservadora de uma noção dos animais como coisas que devem ser protegidas por meio de normas regulamentadoras da propriedade. Não se pode permitir ainda uma percepção dos animais como seres sencientes que devem ser protegidos por normas baseadas no princípio do tratamento humanitário. Ambas as formas de compreender e resguardar os valores dos animais são inadequadas porque desconsideram a importância dos animais por eles mesmos, sem qualquer vinculação com benefícios que possam ser extraídos de seu uso. De acordo com a mais razoável percepção dos animais e dos seus interesses, a legislação do país deve compreender os animais em sua pessoalidade, protegendo valores essenciais relacionados à vida, integridade física e liberdade desses seres. Qualquer produção legislativa e interpretativa do texto normativo brasileiro que não leve em conta apenas a característica da senciência para considerar os animais como pessoas e não proteja a personalidade animal por meio de direitos fundamentais está fadada a reproduzir os dois modelos de pensamento sobre os animais anteriores: animais como coisas ou animais como seres sencientes sem pessoalidade. Isso é errado e empobrece o direito enquanto conformador social.

A partir do paradigma teórico-filosófico dos animais como pessoas que devem ter seus valores essenciais da vida, integridade física e liberdade protegidos por direitos morais e legais, o que se pretende nesse capítulo é produzir uma conformação possível entre essas noções filosóficas e o texto normativo brasileiro sobre o tema da experimentação. Para tanto, julga-se que o princípio constitucional da não crueldade precisa ser entendido de uma maneira mais ampla ou mesmo ser substituído por um princípio valorizador da dignidade pessoal. Na verdade, o princípio fundador da proteção dos animais na Constituição Federal precisa oferecer

uma base impeditiva de escravização, i.e., tal princípio deve representar a completa vedação de os animais serem considerados meramente meios para benefícios humanos ou de outros animais.