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500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular

Um ano depois das primeiras iniciativas em torno da criação da comissão oficial, algumas pessoas e entidades começaram a articular o movimento que mais tarde viria a se chamar Brasil: 500 Anos de Resis-

tência Indígena, Negra e Popular, cuja inspiração encontra-se nos mo-

vimentos de contestação desencadeados por ocasião das comemorações dos 500 anos da colonização espanhola da América.

Em 1995, houve um encontro em São Paulo, especificamente de entidades do Movimento Negro nas Américas, tendo, como pauta, a discussão do papel do negro nos 500 anos do Brasil, e dando início à articulação de instituições ligadas à questão indígena, principalmente o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em Salvador, as reuniões co- meçaram em dezembro de 1998, quando foi elaborado o manifesto ofi- cial, embora o lançamento da campanha só tenha acontecido em 19 de agosto de 1999.

O documento oficial estabelece as linhas de ação do movimento

Brasil: 500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular, ou Brasil: outros 500, como ficou popularmente conhecido. A leitura da história

da colonização no Brasil exposta no manifesto começa por explicitar o lugar de onde se fala no movimento: “um lugar bem definido – dos que sofreram e lutaram contra a espoliação colonial e exploração de classe, dos condenados da terra, das periferias das cidades e da história oficial”. E, como objetivo precípuo, em seus próprios termos, pretende expor a divergência clara e transparente em relação à concepção oficial das co-

19 Fontes utilizadas: documento oficial de lançamento do movimento Brasil: 500 anos de resistência indígena, negra e popular (dez. 1998); “Quinhentos anos de exclusão: Por uma democracia multirracial no Brasil”, pronunciamento do deputado federal luiz alberto, do Movimento negro Unificado (MnU) e Pt-Ba, em 13 de maio de 1998; entrevistas a integrantes do movimento e outras matérias veiculadas pela imprensa local e nacional, obtidas através da rede de monitoramento da anai.

memorações, explicitando a noção de conflito – “conflito entre povos, entre classes, entre ideologias, entre concepções de vida, de mundo, do humano” – como “central na história do Brasil”.

Nesse mesmo manifesto histórico, elenca-se, entre as linhas de ação do movimento Brasil: 500 Anos (...), a instauração de um processo de reflexão e articulação do movimento com as lutas sociais já existentes em âmbito local, regional e nacional, com a expectativa de projetá-lo no circuito internacional, tanto na América Latina como na Europa, parti- cularmente em Portugal. Além disso, já estão previstas diversas ações no extremo-sul da Bahia – marcha conjunta, ato ecumênico e ato cultural –, para estimular a sociedade brasileira a refletir sobre o significado desses 500 anos de história, do ponto de vista indígena, negro e popular.

Contudo, na realização do projeto do Brasil 500 Anos (...), ou Bra-

sil: outros 500, emergiram disputas que dificultaram uma maior articu-

lação e organização dos diversos segmentos com trajetórias e interesses específicos, e que foram se acirrando por causa da não-convergência interna quanto ao papel e às tarefas do próprio movimento. Enquan- to alguns defendiam uma atuação centrada na realização dos eventos, outros entendiam que o movimento deveria discutir estrategicamente questões no eixo de revisão histórica, do papel dos excluídos, e carac- terizar a permanência do colonialismo enquanto sistema de dominação, que não mudou com a independência do país.

Na avaliação do jornalista e indigenista Eduardo Almeida, que teve uma participação significativa no interior do movimento Brasil: outros

500:

- Um dos objetivos específicos seria produzir um documento subs- tancioso. O manifesto que resultou, no entanto, ficou muito aquém das expectativas. O documento era falho em caracterizar o colo- nialismo e fazer a ponte com o presente. Enfim, na prática, em- bora aprovada em reuniões, não houve interesse objetivo de levar adiante essa posição de trabalhar mais intensamente em cima da intelectualidade, artistas, formadores de opinião, lideranças dos movimentos sociais [...].20

A dificuldade de articulação se refletiu no segundo encontro, tam- bém realizado em Salvador, entre julho e agosto de 1999, assim como no seguinte, em Brasília, organizado junto com o Grito dos Excluídos, em setembro do mesmo ano. A articulação do movimento Brasil: outros

500 com o movimento estudantil, de um modo geral, mas especialmen-

te na Bahia, também se revelou frágil.21 Mais tarde, o Cimi e algumas

organizações indígenas se voltaram para a preparação do que viria a ser a Marcha e Conferência Indígenas. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) seguiu por uma deriva própria, que culminou no acordo en- tre lideranças partidárias e o governo para a retirada dos seus militantes da cidade de Porto Seguro no dia 17 de abril de 2000, conforme será me- lhor discutido adiante. Assim, o posterior confinamento das comitivas do MST em Eunápolis, pela ação da Polícia Militar do Estado da Bahia, já no dia 21 de abril, e a organização indígena em torno da Marcha e da Conferência Indígenas fizeram com que o próprio termo Brasil: outros

500 passasse a ser usado na imprensa principalmente para fazer refe-

rência aos segmentos do Movimento Negro, dos estudantes, sindica- listas e representantes do movimento anarcopunk que se reuniram em Coroa Vermelha, em área não-indígena, no acampamento referido por

Quilombo.

No documento de avaliação do movimento Brasil: outros 500 (FONSECA, 2001), as principais dificuldades apontadas foram: a) a ine- xistência de apoio financeiro dos partidos e organizações de oposição para a implementação do movimento como um todo, principalmente diante da pouca autonomia econômica dos movimentos negro e indíge- na, para maior organização do Quilombo e divulgação da marcha; b) as divergências no interior dos movimentos negro e indígena.

A veiculação dos eventos e ações, que se desencadeou a partir de 1996 (CUNHA, 1999), esteve também à mercê do complicado jogo de in- teresses políticos que regulam a ocupação dos espaços na mídia. A título de exemplo, podemos lembrar a manifestação pública do movimento

21 estava prevista a articulação com o movimento estudantil em nível local e nacional, através das suas repre- sentações, em todo o processo da organização do movimento Brasil: outros 500.

Brasil: outros 500, ocorrida em Salvador, no dia 19 de abril de 199922,

com a participação de mais de três mil pessoas, e no dia 22 de abril do mesmo ano, em Porto Seguro, no sul da Bahia. Prevista para ocorrer pa- ralelamente ao evento oficial que tradicionalmente comemora a data de 22 de abril, em Porto Seguro, a manifestação preparada pela comitiva que saíra de Salvador sofreu uma série de contratempos23, mas termi-

nou acontecendo, conduzida sobretudo pelos índios Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó do Extremo-Sul, com assessoria do Cimi, os quais, com faixas de protesto, em nome do movimento Brasil: outros 500, enfrentaram os policiais e protestaram durante a solenidade oficial, fazendo com que autoridades estaduais e federais e seus assessores saíssem às pressas do local. Curiosamente, só a Folha de São Paulo veiculou, numa pequena nota, notícia sobre o ocorrido em Porto Seguro, em 1999.24

De todo modo, foram vários os fatos políticos que se tornaram no- tícias e imagens na mídia.25 Apesar das fragilidades e dificuldades en-

frentadas na articulação das diversas frentes no território nacional, os movimentos sociais organizados conseguiram produzir um contradis-

22 a manifestação do movimento Brasil: outros 500, realizada em salvador-Ba, em 19 de abril de 1999, foi a maior realizada em todo o período pré-abril/2000, intencionalmente no dia do Índio. Participaram dela, além de membros do movimento e das entidades a ele ligadas, sobretudo entidades do Movimento negro e Mst, integrantes da sociedade indígena tuxá e membros de quilombos, trazidos pelo movimento especial- mente para a manifestação.

23 o ônibus fretado pelo movimento Brasil: outros 500, que saíra de salvador com destino a Porto seguro para a manifestação do dia 22 de abril de 1999, sofreu durante a viagem uma série de intercorrências, como o caso dos miguelitos espalhados na estrada, com um saldo de quatro pneus furados, e a blitz policial de ma- drugada, que fez com que a comitiva não chegasse a tempo em Porto seguro, o que foi interpretado como um ato de repressão, acionado provavelmente pelos serviços secretos da PM e órgãos federais, até porque, na passeata do dia 19, em salvador, foi anunciada do carro de som a organização da comitiva, além do local de saída do ônibus e outras informações. inclusive, ocorreram fatos estranhos na reserva de assentos no ônibus que ajudam a reforçar essa suspeita. sobre esses acontecimentos, a imprensa nada publicou, apesar de o movimento ter encaminhado um release a todos os jornais.

24 de acordo com informações fornecidaspela assessoria de imprensa do movimento, que acompanhava de perto as ações naquela época.

25 Cunha (1999, p. 5) destaca, do ponto de vista da questão indígena, num inventário que a própria autora con- sidera incompleto: “o dilema pela demarcação de terras em vários pontos do território nacional; a esteriliza- ção de mulheres Pataxó, no sul da Bahia; a montagem de peças teatrais por 13 índios potiguares da aldeia do Galego, Paraíba; o protesto de um grupo de 400 caincangues em iraí, rio Grande do sul, contra os cortes no orçamento da Funai; a atuação de índios da amazônia em uma montagem teatral que retoma O Guarani – unindo alencar e Carlos Gomes –, intitulada Tupi Tu És, em são Paulo; a ocupação do sítio histórico de Monte Pascoal; o comércio ilegal de madeiras, câmbio entre o santuário ecológico (que se pretende que as áreas indígenas preservem) e a comida necessária à sobrevivência; a gravação de um Cd por índios guaranis, do litoral norte de são Paulo; o pedido de rapidez na demarcação das terras e apuração do assassinato do seu líder, dirigido ao supremo tribunal Federal por 40 índios xucurus, de Pernambuco; além das manchetes mais drásticas, sobre, por exemplo, os ataques de garimpeiros ou o alcoolismo e o suicídio coletivos, que amea- çam e destroem grupos indígenas com a mesma eficácia dos antigos bandeirantes e capitães-do-mato.”

curso que atravessou as fronteiras do país. Entre os principais resultados e desdobramentos, ainda de acordo com o Relatório de Atividades do

Movimento Brasil Outros 500 (FONSECA, 2001, p. 10-15), destacam-

se o “desnudamento do apartheid e o contraponto às comemorações oficiais – o fiasco dos 500 anos de Brasil”. Além disso, coloca-se como relevante a presença negra e popular nos acontecimentos, chamando atenção para o fato de que a primeira batalha se configurou através da ação repressiva da polícia sobre o Quilombo.