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escola indígena Pataxó de coroa Vermelha: a retomada

do território escolar

Como docente do Curso de Formação para o Magistério Indígena na Bahia e pesquisadora na área, visando acompanhar e assessorar o traba- lho dos professores Pataxó de Coroa Vermelha matriculados no curso, tive a oportunidade de participar da Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha no primeiro ano em que estava sob a direção de uma profes- sora Pataxó.

Até o final do ano de 1999, a escola – cuja direção estivera, a partir de 1996, nas mãos de uma diretora não-índia indicada pelo prefeito de Santa Cruz Cabrália – funcionava num barracão próximo às antigas ins- talações do comércio indígena. Em 2000, com a mudança da escola para o Conjunto Cultural Pataxó, o grupo de professores indígenas se organi- zou para assumir a direção da escola.

A disputa pela direção é um capítulo importante da implantação da Escola Pataxó de Coroa Vermelha. Nas reuniões com os professores, no decorrer de 1999, na antiga sede, havia sempre, contra a diretora não- índia, queixas de algumas professoras indígenas, e principalmente da responsável pela parte administrativa da escola. Como Pataxó e aluna do Curso de Formação, essa secretária da escola manifestou-se em de- fesa da educação indígena diferenciada conduzida por professores in- dígenas, em diversos fóruns. Inclusive, numa entrevista a um jornal de grande circulação de Salvador, entre outros assuntos tratados, fez algu- mas denúncias contra a administração da Secretaria de Educação Muni- cipal de Santa Cruz Cabrália e a direção da própria escola. Essa matéria

repercutiu localmente, e o então secretário de Educação exigiu que a se- cretária indígena se retratasse. Com sua recusa à retratação, o grupo de professores saiu fortalecido e se desencadeou o processo de conquista da direção da escola das mãos da diretora não-índia.

Quando estive em Coroa Vermelha em janeiro de 2000, a antiga sede da escola já estava desmanchada. Mesmo em férias, a diretora não- índia continuava afirmando que não entregaria a escola para os índios, muito menos quando estivessem instalados na nova sede, no Conjunto Cultural Pataxó, previsto para ser inaugurado em março. No entanto, um movimento interno e silencioso desencadeou-se, entre professo- res e pais, para pressionar as lideranças a indicar uma direção indígena. Contribuiu favoravelmente para o processo de articulação da gestão in- dígena da escola a aprovação da Resolução nº 03 do Ministério da Edu- cação e Cultura, de outubro de 1999, que define diretrizes para as escolas indígenas. Trazida à discussão no Curso de Formação, antes da sua pu- blicação oficial, a resolução era do conhecimento dos Pataxó, que a uti- lizaram em seu favor no processo de discussão da gestão da escola.

Além disso, o apoio de alguns assessores que, na época, transita- vam no local, em virtude dos preparativos para as comemorações dos 500 anos, e a própria conjuntura política criaram um clima favorável à nomeação de uma diretoria indígena para a Escola Pataxó de Coroa Ver- melha. Com efeito, a circulação de discursos de afirmação étnica e auto- determinação dos povos indígenas, na contramão do discurso oficial das comemorações, favoreceu as ações afirmativas, tais como a discussão do Estatuto das Sociedades Indígenas, as diversas investidas pela regulari- zação da situação das terras indígenas e a necessidade de rediscussão da história da colonização. Essas ações deram maior amplitude à discussão de um currículo e gestão escolar indígenas em consonância com a luta dessas sociedades.

Assim, o movimento em direção a uma maior autonomia político- pedagógica da escola indígena, desenvolvido principalmente pelo grupo de professores indígenas locais, beneficia-se das discussões em pauta, numa época especialmente conturbada em Coroa Vermelha. A gestão da escola indígena e a implantação do seu projeto político-pedagógico

estabelecem-se, porém, num complicado jogo de forças políticas. De um lado, há a tensão entre o poder municipal local e as outras esferas do governo federal e estadual, como o MEC e a Secretaria de Educação, na disputa pelo controle da escola indígena; e, internamente, a comunida- de escolar indígena e as lideranças estabelecidas revelam dissensões na interlocução com o poder local. No âmbito dos próprios segmentos que compõem a comunidade escolar, as diversas concepções e expectativas em relação à escola, seja entre os pais e alunos, seja entre os próprios professores e funcionários, cada um com suas demandas específicas, trazem certas questões que frequentemente vêm à tona nos espaços de discussão, conforme ficará visível em alguns momentos, neste capítulo.

A Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha, como parte inte- grante do Conjunto Cultural Pataxó de Coroa Vermelha, implantado pelo Ministério da Cultura, começou a funcionar em 3 de abril de 2000. O Conjunto Cultural fica na Gleba A, nos limites da Maturembá (terras retomadas recentemente), e possui, além da escola, o Centro de Saúde, as Oficinas de Fitoterapia e Horta Medicinal e o Centro Cultural Pataxó. O conjunto escolar, nesse ano, é composto de seis salas de aula, que são instalações isoladas, em estilo xinguano, uma cozinha ampla com des- pensa, instalações sanitárias independentes, secretaria, sala para labo- ratório de informática e área para convivência, mas não tem uma área apropriada nem equipamentos de lazer para as crianças.

As salas de aula têm a forma de hexágono, com teto e janelas baixas. O desenho das janelas, cujos vidros são recortados por tiras de madeira, lembra os desenhos com que as crianças Pataxóilustram os seus escritos. Na verdade, o projeto do Centro Cultural foi resultado de uma discussão coletiva e já incorpora a visão que os Pataxó têm da escola, apresentan- do certas semelhanças com a arquitetura da escola dos Pataxó de Minas Gerais.

É significativo observar que a escola indígena de Coroa Vermelha experimentou, em cinco anos, um aumento de mais de 100% no índice de matrículas. De 200 alunos matriculados, em 1996, quando, segun- do relato da professora Alzira Ferreira, começou a funcionar, passa para 545 alunos, em 2001. Esse crescimento acompanha o crescimento de-

mográfico da aldeia de Coroa Vermelha, mas é também, de acordo com a opinião dos próprios Pataxó, um indicador do prestígio que vai adqui- rindo a escola indígena no seio da comunidade, já que os Pataxó de Co- roa Vermelha, a princípio, têm a opção de matricular os filhos na escola não-indígena local.

O quadro de professores, se observado pelo lado das simetrias, apresenta-se composto por jovens – entre 20 e 30 anos –, quase todos com segundo grau completo, a maioria em cursos de magistério não- indígena, fazendo paralelamente o Curso para o Magistério Indígena. Em 2002, um dos professores, Matalawê Pataxó, foi aprovado no exame de seleção e começou a cursar a Formação Universitária para Professores Indígenas na Universidade do Mato Grosso.

Dos onze professores e professoras da escola indígena, em 2000, oito eram Pataxó, incluindo uma professora de Barra Velha, que veio para Coroa Vermelha concluir os estudos de nível médio. Além disso, há duas professoras Fulni-ô, e uma professora não-índia. Desse total, três são do sexo masculino e apenas um não tem o nível médio completo.

Por ser a escola um elemento relativamente recente nas aldeias Pa- taxó, com cerca de uma década de existência, quando os professores fa- lam da sua vida, destacam sempre a sua peregrinação, que começa com a luta para estudar. Ao retomarem, nos relatos, a sua história de vida, algumas professoras Pataxó terminam revelando a história da escolari- zação na aldeia, marcada por muitas dificuldades, conforme depoimen- tos abaixo:

- Estudar mesmo só com nove anos, porque não tinha professor [...] Meu pai era interessado em que eu estudasse [...] Nem era es- cola... era uma casa... de Seu Joel. Oito estudantes na 4a série. Só

mulheres... Depois fui estudar em Cabrália. [...].97

- Eu tinha doze anos... já tinha terminado a quarta série. Aí eu vim com ela. Fiz a quinta série lá em Eunápolis. Fui passar férias em Bar- ra Velha e meus pais não deixaram mais eu voltar. Fiquei mais um ano em Barra Velha. No outro ano... eles deixaram eu vir de novo.

No começo do ano… fui para Barra Velha e eles pegaram e não dei- xaram eu voltar de novo. Mas eu falei... não... vou ter que arrumar um jeito de continuar estudando... E consegui... Comecei a estudar até hoje. Morei em Porto três anos. Morei mais dois em Cabrália. Eu estava em Porto Seguro vivendo uma época muito sofrida. Estudava à tarde... e trabalhava de manhã e de noite. Aí eu comecei a morar com minha colega... pagar aluguel.98

- Eu tenho 16 anos que moro aqui. Antes eu morava no Arraial da Ajuda. Depois fui para Brasília... depois vim de novo para cá. Só meu pai está vivo. Minha mãe é descendente de negra. Meu pai é índio. Da quinta à oitava série fiz em Brasília e o segundo grau fiz aqui em Porto Seguro.99

Num documento enviado a representantes do Ministério da Educa- ção e Cultura, assim se manifestaram os professores indígenas:

[...] é um desejo nosso – dos educadores, movimento de estudantes, lideranças e comunidade indígena – que a escola indígena ganhe au- tonomia, e tenha meios necessários para ser um lugar estimulante e prazeroso, com uma educação realmente diferenciada, para que nos- sas crianças indígenas não precisem frequentar escolas do município, nos períodos iniciais, preservando nossos laços culturais. É necessário também ampliar a escola indígena para abrigar as turmas que estão concluindo a primeira etapa do ensino fundamental, oferecendo da quinta à oitava séries na nossa escola, retardando a entrada dos nossos alunos nas escolas não-indígenas.100