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walkie-talkie: autoria, autonomia

Lição 6 A Missa dos 500 anos: autoria e escrita

A missa que celebrou os “500 anos de Evangelização do Brasil”, re- zada pelo cardeal Ângelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, na

Terra Indígena de Coroa Vermelha, em 26 de abril de 2000, tinha um lugar reservado para os Pataxó de ouvintes/figurantes, possivelmente devido à repercussão dos acontecimentos em torno da repressão policial à marcha indígena. Essa posição discursiva estava alegoricamente des- velada inclusive na disposição espacial dos assentos a eles destinados: na periferia do altar, que ocupava o centro do espaço reservado à realização da missa, e nos últimos lugares reservados aos presentes, conforme pode ser conferido na foto. O estabelecimento dessa posição discursiva para os índios (e negros) não deixa de remeter à imagem da primeira missa no Brasil há 500 anos – que reconhecemos a partir da leitura de Caminha (CUNHA, 2000): em volta da cruz, que dominava o espaço, o celebrante português compartilhava o altar com os navegantes portugueses, sob o olhar dos habitantes nativos, que, quase confundidos com a paisagem, compunham perifericamente a cena. Essa descrição inspirou a pintura em tela intitulada A primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles, da qual temos notícia através de inúmeras reproduções, principalmente em livros didáticos.

O discurso de Matalawê Pataxó na Missa dos 500 Anos, conforme seu próprio relato, faz parte de uma sequência que, em conjunto com outros representantes pataxós, realizou em celebrações de anos anterio- res, alusivas à primeira missa em Coroa Vermelha. Ele chegou a afirmar, inclusive, que o texto do discurso lido na missa do ano de 1999 tinha algo em comum com o que ele leu na missa de 26 de abril de 2000.

A instituição do lugar de silêncio na Missa dos 500 Anos para os Pataxó – e, simbolicamente, para todos os povos indígenas do Brasil –, talvez por um esforço de fidelidade ao cenário da missa inaugural de 500 anos atrás, desconsiderou, assim, a prática dos Pataxó no exercício da palavra, quando reencenavam a primeira missa, nos anos anterio- res. Contudo, na Missa dos 500 Anos, o discurso de Matalawê Pataxó foi traçado como um contraponto, um outro marco, certamente inaugural, quando, ao invés de permitirem ao sacerdote regrar o uso da palavra no evento da missa, os pataxós, simbolicamente, colocaram-se no centro do altar, tomaram sob seu controle o ritual, fizeram o sacerdote e os seus convidados, entre perplexos e constrangidos, ouvi-los:

Hoje é um dia que poderia ser um dia de alegria para todos nós. Vocês estão dentro da nossa casa. Estão dentro daquilo que é o coração do nosso povo, que é a terra, onde todos vocês estão pisando. Isso é nossa terra.

Onde vocês estão pisando vocês têm que ter respeito porque essa terra pertence a nós. Vocês, quando chegaram aqui, essa terra já era nossa. O que vocês fazem com a gente?

Nossos povos têm muitas histórias para contar. Nossos povos nativos e donos dessas terras, que vivem em harmonia com a natureza: Tupi, Xavante, Tapuia, Kaiapó, Pataxó e tantos outros.

Séculos depois, estudos comprovam a teoria, contada pelos anciões, de geração em geração dos povos, as verdades sábias, que vocês não souberam respeitar e que hoje não querem respeitar.

São mais de 40 mil anos em que germinaram mais de 990 povos com culturas, com línguas diferentes, mas apenas em 500 anos esses 990 povos foram reduzidos a menos de 220. Mais de 6 milhões de índios foram reduzidos a apenas 350 mil.

Quinhentos anos de sofrimento, de massacre, de exclusão, de precon- ceito, de exploração, de extermínio de nossos parentes, aculturamen- to, estupro de nossas mulheres, devastação de nossas terras, de nossas matas, que nos tomaram com a invasão.

Hoje querem afirmar a qualquer custo a mentira, a mentira do desco- brimento. Cravando em nossa terra uma cruz de metal, levando o nos- so monumento, que seria a resistência dos povos indígenas. Símbolo da nossa resistência e do nosso povo.

Impediram a nossa marcha com um pelotão de choque, tiros e bombas de gás. Com o nosso sangue comemoraram mais uma vez o descobri- mento.

Com tudo isso não vão impedir a nossa resistência. Cada vez somos mais numerosos. Já somos quase seis mil organizações indígenas em todo o Brasil. Resultado dessa organização: a Marcha e a Conferên- cia Indígena 2000, que reuniu mais de 150 povos. Teremos resultado a médio e longo prazo.

A terra para nós é sagrada. Nela está a memória de nossos ancestrais dizendo que clama por justiça. Por isso exigimos a demarcação de nos- sos territórios indígenas, o respeito às nossas culturas e às nossas di-

ferenças, condições para sustentação, educação, saúde e punição aos responsáveis. Pelas agressões aos povos indígenas.

Estamos de luto. Até quando? Vocês não se envergonham dessa me- mória que está na nossa alma e no nosso coração? Nós vamos recontá- la por justiça, terra e liberdade.92

Se a repercussão do discurso produzido na missa superou todas as expectativas daqueles que apostaram na sua realização, o discurso foi, no entanto, pensado e elaborado em pequenos detalhes, conforme ve- remos no texto a seguir, tendo como base algumas de minhas notas de campo, escritas retrospectivamente:

- O domingo seguinte [ao da marcha] foi de chuva forte, e todos ama- nhecemos doentes. De modo que só no dia 24 voltei à pesquisa. Ainda havia mais um lance naquela história, antes de dar asas ao meu dese- jo de sair, pelo menos por uns dias. Ainda tínhamos a Missa dos 500 Anos. Me lembrava de uma reunião no ano passado, na Jaqueira. O tema era a participação dos Pataxó na celebração da Missa dos 500 Anos. Era uma reunião de lideranças Pataxó de Coroa Vermelha e ou- tras aldeias Pataxó, inclusive representantes da aldeia Pataxó Hã-Hã- Hãe de Caramuru. Na época, havia um grupo contrário à participação dos Pataxó na missa. Mas alguns pataxós, entre os quais Matalawê, consideravam essa possibilidade. No entanto, Matalawê já expressava as suas desconfianças em relação ao discurso oficial para as comemo- rações. Por isso, puxou a discussão: como nós vamos nos posicionar em relação à Igreja? Lembro que houve várias opiniões e a discussão não foi fechada.

Em relação à religiosidade, no espaço das pessoas com quem convivi diretamente na aldeia de Coroa Vermelha, encontra-se uma diversi- dade grande: há, só vim a saber muito depois, formas de religiosidade vinculadas às tradições africanas; há os grupos ligados às igrejas cató- licas e evangélicas; os rituais do awê, realizados na Jaqueira, vetados à participação de não-índios; há a reza que congrega boa parte da co- munidade na capelinha de Santo Antônio, sob a responsabilidade da família do pajé Itambé e da sua mãe, em junho; a festa dos bichos, que dura todo o mês de dezembro até o “dia de reis”, além das comemora- ções de São Cosme e São Damião, em setembro. No conjunto dos mais de dois mil habitantes da aldeia de Coroa Vermelha, as expressões reli-

92 discurso de Jerry adriani de Jesus, Matalawê Pataxó, 24 anos, na missa celebrada em Coroa Vermelha, no dia 26 de abril de 2000. disponível em: <www.cimi.org.br>. acesso em: 15 dez. 2001.

giosas cotidianas, como frequência à igreja e rituais religiosos explíci- tos, são pouco visíveis. É relativamente pequeno o número dos que são vistos aos domingos nas igrejas locais. A celebração no dia 26, alusiva à 1amissa realizada pelos portugueses no Brasil, além do aspecto religio-

so, significa um “acontecimento” que mobiliza a maioria das pessoas na aldeia, sendo incluída até no calendário escolar. Quando observei, certa vez: – Mas, e as crianças evangélicas? A diretora indígena me assegurou: – Não tem problema: a celebração da primeira missa é um acontecimento histórico. Todos vão lá. Para a missa daquele ano, po- rém, havia uma disposição contrária, uma certa apreensão, quase ne- nhum comentário. Talvez por causa da retirada da cruz de madeira ou do clima que restou do desfecho da Marcha Indígena, a indignação se traduzia em indiferença ou mesmo em atitude explícita de silêncio e rejeição ao ato.

Na manhã de 25 de abril, encontro Matalawê na companhia de duas representantes da CNBB, que vinham convidá-lo para planejar a mis- sa, certamente pelas ligações de Matalawê com a paróquia local. Fico sabendo que foram proibidas as manifestações na missa, mas havia um espaço reservado, no ofertório, para a presença de alguns represen- tantes negros da Pastoral de Ilhéus e alguns índios Pataxó de Coroa Vermelha. No jornal noticia-se que uma menina Pataxó de aproxima- damente treze anos tinha sido escolhida para ler uma breve interven- ção na missa, mas seu avô proibira a sua presença no altar. Norteado pela etiqueta que caracteriza os Pataxó, Matalawê convidou as vi- sitantes para uma reunião reservada com o grupo da Jaqueira, para que pudessem discutir melhor a proposta, e me convidou também a participar. Na Jaqueira, o grupo composto basicamente pelas lideran- ças femininas e mais dois representantes masculinos, no início, ma- nifesta-se duramente contra qualquer tipo de participação na missa. Ficamos sabendo que estava sendo esperada a presença do vice-pre- sidente da República em Coroa Vermelha – especulava-se até sobre a possibilidade de o próprio presidente vir. Também se dava como certa a participação do ministro Greca e algumas outras autoridades, além da cobertura da imprensa nacional e internacional. Sabíamos que al- gumas lideranças da comunidade Pataxó participariam da recepção aos participantes da missa simbólica. Segundo fontes da imprensa, o representante da CNBB inclusive queria um tom mais crítico para a celebração, mas estava na contingência de acatar as ordens do Vatica- no, que proibira qualquer conotação “política” na missa. Havia a pos- sibilidade de solicitação, por parte das lideranças, para que o grupo da Jaqueira participasse da missa, já que ao grupo era atribuído o papel de recepção aos visitantes. Ao final da reunião, Matalawê negocia com as

representantes da CNBB uma proposta de participação na missa desde que houvesse a possibilidade de falar, o que foi relutantemente consi- derado pelas representantes da CNBB. Estas ficaram de consultar seus superiores, com a ressalva de que se houvesse essa possibilidade de fa- lar, seria apenas no pequeno espaço destinado às preces comunitárias. Depois, a reunião ganhou um tom mais animado no sentido de deta- lhar como seria essa participação. Alguém, não lembro quem, propôs que fossem todos cobertos com um pano preto, significando luto por tudo que aconteceu. Nesse ponto, houve uma acalorada discussão: al- guns a favor de rasgar o pano com que se cobririam ao entrar; outros insistiam em manter o pano cobrindo o grupo para reforçar o pro- testo pelos recentes acontecimentos. Eu apoiei essa última posição. As representantes da CNBB sugerem que, depois de rasgado o pano, joguem-se algumas rosas brancas em sinal de confraternização e paz, o que foi rejeitado pela maioria, inclusive, lembro bem, com uma in- terrogação indignada de uma das jovens do grupo da Jaqueira: Paz, que paz? Foi a guerra! O pessoal da CNBB combinou então que traria o pano preto, em quantidade suficiente para cobrir o grupo, em torno de quinze pessoas, já que não havia condições de se obter o tecido de um dia para o outro, ali em Coroa Vermelha. Enquanto isso, interna- mente, o grupo já começou a pensar nos preparativos para uma noite na Jaqueira, onde coletivamente se faria um ritual de preparação do grupo e do documento para o discurso do dia seguinte.

Ao retornar, no início da tarde do dia 25, à Jaqueira, vejo Matalawê, num silencioso recolhimento, totalmente concentrado na tarefa de pintar o seu corpo com tinta de jenipapo. Com esmero e precisão, co- bre cada traço com diversas camadas de tinta. Como que precedendo às palavras, aqueles traços já significavam em si mesmos. Ali estava uma preparação que lembrava os rituais ancestrais de pinturas para a guerra, que tanto se interessaram um ano antes em pesquisar com os mais velhos. A escrita mesmo, no papel, coletivamente, só viria a se concretizar bem mais tarde, durante aquela madrugada, depois do ritual em volta da fogueira, depois das falas dos presentes: jovens e alguns mais velhos do grupo da Jaqueira, universitários convidados e alguns parentes de outras etnias que ainda estavam por ali. Depois do caium, da dança, da conversa, passamos, já de madrugada, à finaliza- ção da escrita do texto, conduzidos por Matalawê, que já tinha escrito uma boa parte dele.93

Figura 19 – nayara e nitinawã na Missa dos 500 anos

De fato, a retomada coletiva do texto já iniciado por Matalawê se fez na sequência de um ritual que incluía o caium, a dança e a conversa em volta da fogueira, em que os presentes, na maioria pataxós, mas também alguns parentes de outras etnias e alguns não-índios avaliavam os recentes acontecimentos, cada um colocando a sua indignação ou reflexão. A con- versa foi gravada, passando-se o gravador de mão em mão. Depois, quan- do a maioria dormia em diversos colchonetes, esteiras e redes no interior do kijeme principal da Reserva, já de madrugada, alguns trechos da gra- vação recente foram novamente ouvidos, e foi alinhavado coletivamente um esquema com os pontos principais para concluir a escrita do texto a ser lido na missa. Já era quase manhã quando foi passado a limpo o manus- crito final, depois de rejeitadas algumas versões anteriores. Esse processo foi conduzido por Matalawê e Nitinawã, com a colaboração de outros que ainda ficaram acordados com o objetivo de contribuir para a escrita.94

Como não havia garantia de que poderiam falar nem nas preces co- munitárias, a escrita fazia parte do plano de dar visibilidade ao discurso na missa, para fora do espaço/tempo da sua realização, com a distribui- ção do texto escrito aos jornalistas que cobriam o evento. Assim, a es-

crita se impôs pelas condições de recepção – a audiência a que se dirigia e o próprio evento –, mas principalmente pela instituição do silêncio local (ORLANDI, 1990), com a proibição pela CNBB das intervenções dos indígenas na missa.

No entanto, a ordem do discurso é reinterpretada pelos Pataxó. Para começar, a própria escrita é reinterpretada: ela se faz no corpo, um texto a ser inscrito na pele para depois ser traduzido com palavras na fala e no papel. A prática escriturística veio recoberta de panos e traços sobre os corpos, de gestos que falavam por si mesmos. Foi também um consenso explícito, entre os Pataxó presentes à preparação do texto da missa, que este seria precedido pela palavra falada. Nesse ponto, Matalawê Pataxó e muitos outros fizeram questão de pontuar que aquela escrita, que fariam naquela noite, teria que ser precedida, na hora da missa, por uma fala do grupo, porque entendiam que a oralidade era também uma forma de marcar a ancestralidade e a diferença da cultura indígena.

Mas não se tratava apenas disso. No plano inicial do texto escrito, já delineado por Matalawê, uma parte introdutória, segundo ele mesmo justificou, deveria ser falada para poder “[...] revelar melhor a emoção, com o nosso sentimento, por tudo que aconteceu aqui”. E essa emoção, que só poderia ser traduzida na fala, foi potencializada quando, no início da manhã de 26 de abril, o grupo ficou sabendo que, mesmo com toda a preparação, não seria mais permitida a fala dos Pataxó na missa, cuja participação deveria se dar em silêncio, no espaço destinado ao ofertó- rio, levando oferendas ao altar. Assim, essa emoção se traduziu não só nas palavras introdutórias ao discurso lido, mas principalmente no próprio gesto dos pataxós de retomar a palavra e o seu território, ao enfrentar e afastar os seguranças oficiais, que impediram violentamente o seu acesso, ocupar o lugar central no palco da missa, falar e ler. Ao agir assim, deslo- caram a posição a eles destinada pelos brancos, desconsiderando a ordem de participar apenas no momento determinado pelo poder dominante.

Sobre a ratificação da legitimidade instituída da escrita, constitui- se o contradiscurso, com outros elementos: a emoção, os gestos que impossibilitaram a reação dos seguranças contratados para o evento, o rigor na indumentária, as pinturas corporais, a fala de improviso, antes

da leitura, no centro do altar, além do pano preto, que cobriu o grupo durante toda a missa, não tendo sido rasgado, como queria uma das frei- ras presentes à reunião na Jaqueira, no dia 25 de abril.

E mais ainda, constituiu uma condição para o gesto de autoria/ autonomia a própria história do grupo da Jaqueira, uma vez que a re- tomada e a implantação da dinâmica cultural da reserva já eram em si mesmas um gesto de autoria/autonomia. Interessante é que, exatamen- te por pertencerem a um grupo que conduzia o trabalho de manutenção da reserva, de etnoturismo, de pesquisa e documentação da língua e da cultura Pataxó, eles se fazem interlocutores legítimos e por isso são con- vocados para participar da missa. Mas, paradoxalmente, é justamen- te essa história do grupo que os impossibilita de serem interlocutores passivos, cumpridores de ordem, e os faz operar numa lógica própria, contrariando supostas determinações das suas lideranças, as ordens do Vaticano e dos governantes de plantão.

Parte 3

Mais uma lição,