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walkie-talkie: autoria, autonomia

Lição 5 A reserva da Jaqueira: uma outra escola

Kitoki-ré pataxó olha no passado, se espelha no presente, para o preparo do seu futuro e de seu povo.

Sirimã Pataxó A Reserva Pataxó da Jaqueira, com seus 827 hectares, represen- ta mais da metade dos 1492 hectares da Gleba B da Terra Indígena de Coroa Vermelha. Possui ainda raras espécies da flora e fauna tropicais, como madeiras de lei, árvores frutíferas e plantas medicinais. Porém, a Jaqueira é mais do que um pedaço de Mata Atlântica, frequentemen- te ameaçada por ocupações de índios e não-índios no seu entorno, que se tornou um dos pólos turísticos mais movimentados do país. Para os membros do grupo da Jaqueira, composto, na época, em sua maior par- te de jovens de idade entre 14 e 25 anos, além de crianças e alguns anci- ãos, a Jaqueira tem diversos significados:

- Eu gosto da Jaqueira. Na Jaqueira é bom a dança... tomar banho no rio e brincar com os pequenos.83

- Na Jaqueira a gente se diverte... fica o dia todo procurando mais conhecimento com a natureza... andando nas trilhas... vendo os animais... contando nossas histórias.84

83 informação concedida por Jocimar / siratã Pataxó. 84 informação concedida por tinguí Pataxó.

- Pra mim a Jaqueira significa tudo... principalmente a vida dos meus filhos... as minhas crianças... é uma escola em que os meus filhos estão aprendendo bastante... tudo que eu não tive oportuni- dade de aprender... hoje eles estão aprendendo e tenho certeza que mais tarde eles vão saber mais do que eu e passar alguma coisa que eu não aprendi.85

- Desenvolvemos um trabalho de educação ambiental. Lá dentro nós estamos conseguindo colocar em prática as coisas dos costu- mes indígenas... Que fique claro o seguinte: a gente não está com aquele espaço especificamente para o turista. A gente tem consci- ência que aquele trabalho lá vai ser referencial para a aldeia... que a aldeia possa estar utilizando isso aí no dia-a-dia... os costumes da cultura indígena.86

- No início... tinha mais mulher do que homem. A gente traba- lha igual aos homens. A gente trabalhou ali bonitinho. Era facão... enxada... cavador... As mãos cheias de calo... Às vezes era na mão mesmo... Muitas vezes a comida era um ovo... farinha de puba e água.87

- Então... um dos objetivos foi fazer da Reserva da Jaqueira um re- ferencial para as outras aldeias. Isso aí nós já temos um resultado. No Monte Pascoal... não sei se já está sendo colocado em prática... mas a idéia é fazer a mesma coisa que na Jaqueira... [...]88

Nesses poucos anos de atividade – os Pataxó retomaram a área em outubro de 199789 –, o grupo da Jaqueira não só preparou o terreno para

o trabalho a ser realizado, abrindo trilhas e capacitando os próprios jo- vens pataxós como guias, mas ampliou esse trabalho também para a es- cola indígena e outras escolas da região, recebendo alunos e professores, além de turistas e visitantes diversos. Os meninos e meninas que vão

85 informação concedida por Jandaia Pataxó. 86 informação concedida por Karkaju Pataxó. 87 informação concedida por nayara Pataxó. 88 informação concedida por nitinawã Pataxó. 89 Para mais informações, ver Parte 1.

para a Reserva da Jaqueira, com ou sem os pais, já são convidados pe- las professoras para ensinar os colegas a cantar e dançar. A maioria das pessoas que trabalham na Reserva da Jaqueira desenvolve um trabalho de educação ambiental e valorização da cultura e língua Pataxó, tendo como referência principalmente os conhecimentos adquiridos com os pataxós mais velhos. Para isso, investe-se na pesquisa dessa memória para prover o conhecimento que buscam na tradição oral.

Figura15 – reserva da Jaqueira (entrada)

Além das suas atividades internas na Reserva da Jaqueira, esse gru- po desempenha um papel de representação da sua comunidade, des- pontando como lideranças, pela função que exercem no contato com segmentos externos, ou pelo trabalho com a comunidade indígena. Tais responsabilidades exigem aporte de informações e conhecimen- tos, principalmente das suas próprias tradições culturais. Nesse senti- do, alguns membros da Reserva da Jaqueira propuseram um projeto de pesquisa para investigação e estudo da língua e cultura Pataxó, enten- dendo que assim teriam mais segurança para realizar seu trabalho. Em

Matalawê Pataxó é mais evidente o desejo de fortalecer a organização comunitária em torno da explicitação de um projeto político para o povo Pataxó, inclusive tendo já desenhado um esboço, que inclui maior co- nhecimento dos fluxos culturais e políticos contemporâneos e pesquisa em fontes históricas.

Acredito que haja outros significados para as práticas culturais em torno da conservação e defesa da Mata da Jaqueira e da valorização da história e tradições dos Pataxó. Quando se empenham num trabalho efetivo de convencimento dos seus parentes para um projeto coletivo, que faz parte desse projeto maior de autossustentação econômica e po- lítica, é possível admitir um revés da própria diáspora Pataxó: um de- sejo e uma necessidade de religarem-se, mesmo que através de certos símbolos ou alegorias, o que chamam de raízes. Assim, na Reserva da Jaqueira, reencontram-se os próprios jovens que realizam esse trabalho – e mesmo outros índios hoje estabelecidos em distintas aldeias Pata- xó –, através da organização comunitária, no exercício e descoberta de

um outro modo de viver, em que se refazem dos embates lá de baixo

(como se referem à parte urbanizada da aldeia): longe da agitação, pais, filhos e avós podem conviver no espaço circunscrito da reserva90 e socia-

lizar valores e crenças na construção de uma utopia localizada, de outro modo de vida. A Reserva da Jaqueira funciona, assim,como um local onde esse grupo assume até mesmo uma identidade específica dentro da comunidade (o pessoal da Jaqueira), ao construir um mundo próprio, em que procuram os mais velhos para conhecer a língua que já não se fala cotidianamente nos outros espaços da aldeia, as histórias que estão na memória e que já não são contadas à noite, por causa da escola notur- na, da igreja ou da televisão, a vida de abundância em recursos naturais, distante do consumo urbano, e vão descobrindo sentidos para as suas vidas no presente, a partir dos seus vínculos com o passado.

90 ainda não havia nenhum morador permanente nessa área da reserva na época da pesquisa, embora o pro- jeto aprovado pelo Ministério do Meio ambiente previsse a construção de kijemes para o pernoite de turistas, e também para abrigar um número restrito de residentes pataxós. a rotina do trabalho começa às seis da manhã, quando se encontram na casa da mãe de uma das líderes da Jaqueira, e termina ao final da tarde. o transporte, quando há recursos, é feito por carro alugado de alguns pataxós, ou a pé, ou de bicicleta.

Figura 16 – Kijeme: reserva da Jaqueira

Mas se essa concepção de passado remete a um passado historicamente constrangido por forças dissuasórias, que, não obstante, continua vivo no presente, no sentido de uma fusão de horizontes, o futuro se expressa não em preocupações globais, remotas, na perspectiva genérica dos discursos ambientalistas, mas localmente, em preocupações com o crescimento de- mográfico de sua população e com a necessidade de autossustentação e legi- timação na luta pela terra. Nesse sentido, “a busca da cultura e da natureza” pode contribuir para fortalecê-los como guardiãos do seu território:

- Foi... como o nosso parente falou... através da Jaqueira que a gen- te ocupou lá o Parque (de Monte Pascoal)... porque se a Jaqueira não tivesse esse trabalho de preservar... eles não iam para lá. Aí eles ocuparam aquilo... e passado um pouco de tempo... nós fomos lá... com uma proposta boa de preservação... onde pudesse também se criar um espaço para mostrar um pouco da cultura indígena. O que também aconteceu com Coroa Vermelha. Nós... não... Mas pessoas chegam aqui e perguntam: onde está a aldeia? Acham estranho... onde é aldeia? Mas lá dentro do mato nós temos um lugar de refe- rência a ela. É a Jaqueira. Onde você possa conhecer toda a histó-

ria... toda a explicação dada pelo próprio índio. Muitos falam que aquela terra não dá para ser preservada. [...] Claro que mais tarde nós vamos precisar de mais terra. Mas se nós fôssemos botar roça lá... já não tinha mais nada daquela beleza. Com o tempo nós vamos precisar mais terra. Se nós mantivermos aquela área verde... nós temos mais força para ganhar mais terra... ou então ganhar aquelas terras do nosso vizinho aqui do lado [...]91

Nas práticas discursivas do grupo da Jaqueira, fica muito evidente que a consciência da necessidade de proteção das florestas e da cultura, se está vinculada à visão de um passado ancestral,torna-se, principalmen- te, uma questão que diz respeito à sua própria sobrevivência/resistência como sociedade indígena, no conjunto de interesses que perpassam hoje as questões políticas e ambientais que os atingem diretamente. A defesa da Mata Atlântica, que faz parte do seu patrimônio, é uma questão de sustentabilidade da própria sociedade indígena, como eles identificam.

Se está claro que essas práticas discursivas legitimadoras da con- servação da natureza estão diretamente imbricadas com a afirmação da identidade étnica que os legitima como habitantes tradicionais dessa re- gião, trata-se então de descobrir e reconstruir referências próprias que promovam o fortalecimento étnico e garantam os bens que são funda- mentais para a própria vida – que, nesse caso, não se descola da cultura: o alimento, a água, as matas, os valores transmitidos por seus pais e avós, como uma diferença que os garante como senhores do seu próprio desti- no, como construtores/elaboradoresda sua própria cultura. Assim, esse grupo, por sua capacidade de articulação e interlocução com diversos seg- mentos de fora da comunidade, tem apresentado projetos e demonstrado competência para realizá-los, trazendo elementos para se repensarem as práticas usuais de geração de renda dentro da comunidade, como o arte- sanato com madeiras de lei e a caça predatória, em busca de um projeto maior que preveja alternativas sustentáveis para toda a sociedade Pataxó.

No entanto, internamente, eles ainda encontram dificuldades para se articular com outras lideranças e segmentos da comunidade, que li- dam de modos diversos com os recursos ambientais disponíveis.

Como uma experiência ainda recente, há certo recorte entre a es- cola e a Reserva da Jaqueira. No ano de 1999, quando tentavam orga- nizar, no grupo de pesquisa e documentação, a pesquisa da língua e da cultura Pataxó, havia queixas em relação ao isolamento da escola. No entanto, durante o primeiro ano de implantação da gestão indígena da escola, na sua nova sede, dois membros do grupo da Jaqueira, Matalawê Pataxó e Nayara Pataxó, passam a integrar o quadro da escola indígena como professores de cultura indígena. Além disso, adultos e crianças que estão na Reserva da Jaqueira frequentam também a escola indígena. Gradativamente, vão construindo certas formas de cooperação entre a Reserva da Jaqueira e a escola.

Durante o período que antecedeu os acontecimentos de abril, hou- ve um intenso fluxo de visitantes e reuniões no espaço da Reserva da Jaqueira, já que este se tornou, junto com a escola, um lugar privilegia- do para encontros de lideranças e visitantes, onde se travavam os deba- tes em torno de questões políticas, entre outras. No entanto, diversos membros do grupo que conduz o trabalho da Reserva da Jaqueira man- tiveram, em todos os acontecimentos, uma postura crítica em relação a muitas das posições assumidas pelas lideranças estabelecidas da aldeia, ainda que estivessem ligados por laços de parentesco a essas lideranças. Assim, as práticas que constituem o cotidiano do grupo na Reserva da Jaqueira – as reuniões para contar histórias, para refletir sobre o traba- lho, para se conhecer mais, as organizações para a dança, a composição das músicas, o trabalho coletivo de conservação e exploração econômica do local – amadureceram as condições para que o grupo pudesse refletir e tomar as decisões que resultaram no discurso da Missa dos 500 Anos, sob a condução de Matalawê Pataxó.

Lição 6 – A Missa dos 500 anos: