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CÁP 1 OS SÍTIOS DE MEMÓRIA EM CONTEXTO

FFigura 13. Mulher sendo contornada durante o Siluetazo em 1983 Créditos: Eduardo Gil.

1.8. Os anos 2000 e a estatização da memória

Se, nos anos 90, o discurso do Estado tinha sido o da reconciliação; a partir dos anos 2000, no âmbito dos movimentos descritos, começaram a nascer projetos de memória que articulavam organismos de DDHH, vizinhos, o governo nacional e/ou os governos provinciais (CATELA, 2014).

Em Buenos Aires, essas iniciativas começaram quando Aníbal Ibarra assumiu como chefe de governo da cidade. Logo no começo de seu mandato, ele criou a Dirección General de Derechos Humanos (DGDH), dependente da Jefatura de Gabinete. Esta ficou a cargo de Gabriela Alegre, também coordenadora da Comisión pró Monumento (responsável pelo PDM). O principal objetivo da Dirección foi a “promoção da memória”78. A partir dela, o governo foi implementando diversos programas educativos e

77 Por exemplo, outras Madres passaram a usar os famosos pañuelos; e marcas que apontavam para a morte de pessoas em plena democracia passaram a conviver com os desenhos dos pañuelos no chão Plaza de Mayo (CATELA, 2014).

78 Nisso teve como função, por exemplo, aplicar a Lei no 355 que declarava o 24 de março, aniversário do golpe de Estado, como dia da memória em homenagem aos desaparecidos, incluindo-o no calendário escolar.

culturais destinados a “construir a memória do terrorismo de Estado”, assumindo-a como um “direito”, um “dever cívico” e como um “legado intergeracional” (GUGLIELMUCCI, 2011, p. 164).

Como mencionado, nesse momento, no âmbito do governo de CABA se, por um lado, estava sendo discutida a possibilidade de construir um museu da memória na Ex ESMA; por outro, os organismos de DDHH, agrupações de vizinhos, familiares e sobreviventes reclamavam a refuncionalização de alguns dos Ex CCDTyEs (especialmente o Ex Olimpo e o Ex Atlético) como museus ou sítios de memória.

Conforme aprofundaremos na sequência, a primeira iniciativa no sentido de refuncionalizar um centro clandentino se deu em relação ao Ex Club Atlético, destruído para a construção do viaduto 25 de Mayo no final dos anos 70. Frente às extensas reclamações das organizações, em 2002, Aníbal Ibarra e o secretário de Obras e Serviços Públicos, Abel Fatala, impulsionaram uma escavação arqueológica no local, junto a um grupo de arqueólogos, antropólogos e arquitetos.

Dando um marco institucional ao trabalho em desenvolvimento, em 2003, o Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires (GCABA) elaborou o Decreto no 219/03 que criou o “Programa para la recuperación de la memoria del CCD Club Atlético”79. Nele estipulou-se a conformação de uma Comisión de Trabajo y Consendo (CTyC), para desenhar os aspectos gerais do programa, bem como uma Unidad Ejecutora (UE), para coordenar e avaliar a execução do projeto. Enquanto a CTyC ficou composta por organizações de DDHH, organizações de bairro, familiares, sobreviventes do Ex CCDTyE e representantes da Dirección General de Derechos Humanos (DGDH); a UE ficou conformada por quatro representantes da CTyC e funcionários do GCABA (GUGLIELMUCCI, 2011).

Paralelamente, grupos de vizinhos, organizados em comisiones barriales por la memoria, concomitantemente ao desenvolvimento de suas próprias investigações e intervenções (como as Baldozas por la Memoria), solicitavam apoio infraestrutural da DGDH (por exemplo, panfletos e materiais

79 Disponível em: <

mhttp://www.ciudadyderechos.org.ar/derechosbasicos_a.php?id=7&id2=105&id3=292 &idanexo=456 >. Acesso em: 20 de jan. de 2019.

divulgativos) para realizar atividades comemorativas pontuais (GUGLIELMUCCI, 2011).

Para responder às demandas, ativistas de DDHH, funcionários e legisladores do GCABA – especialmente Gabriela Alegre – começaram a trabalhar na criação de um instituto dedicado a promover a memória sobre o terrorismo de Estado. Como fruto disso, foi redigido o projeto de lei para criar o Instituo Espacio para la Memoria (IEM). A Lei no 961/0280, a ele correspondente, foi aprovada em dezembro de 2003 e formou o IEM como um ente autônomo em suas decisões, e autárquico economicamente, composto por representantes de organismos de DDHH e agentes do GCABA. O objetivo central do instituto era “o resguardo e transmissão da memória dos anos 70 e início dos 80 até a recuperação do Estado de Direito81” (BUENOS AIRES, Art. 2, traduzido pela autora). Dentre suas principais funções estavam a promoção de projetos educativos, de debates públicos sobre a memória no âmbito de Buenos Aires, e a coordenação dos processos de institucionalização dos Ex CCDTyEs da cidade (Art. 3). No ano seguinte, por meio do Decreto no 835/03, o IEM foi realocado na mais alta hierarquia no tema dos direitos humanos no nível da cidade.

Os movimentos que aconteciam na capital foram visibilizados e ecoaram para outras regiões do país quando Néstor Kirschner assumiu a presidência do país em 2003. Com a tarefa de retomar a institucionalidade abalada pela crise de 2001 – cujo o principal mote era “que saiam todos!” – em seus discursos ele se posicionava como um chefe de Estado comprometido em reparar os erros do passado ditatorial e sistematicamente referia-se a seu pertencimento identitário aos grupos peronistas de esquerda (CATELA, 2014).

Néstor inaugurou um largo processo de estatização da memória (CATELA, 2014), continuado por sua sucessora Cristina Kirchner: o Estado passou a apresentar-se como um interlocutor central para as reivindicações dos organismos de direitos humanos. Isso significou a criação

80 Disponível em: <

http://www2.cedom.gob.ar/es/legislacion/normas/leyes/ley961.html >. Acessado em: 20 jan. 2019.

81 “el resguardo y transmissión de la memoria de los 70 e inicio de los 80 hasta la recuperación del Estado de Derecho”.

de uma série de programas públicos voltados à transmissão da memória, aos julgamentos dos culpados, e relativos à investigação sobre os paradeiros dos desaparecidos. Em associação com organismos de DDHH, desenvolveram- se uma série de instituições de caráter misto, compostas por agentes estatais, membros dos grupos de DDHH, especialistas e intelectuais, que pretendiam responder institucionalmente às demandas e reconhecer os esforços dos organismos de DDHH, representando, principalmente, as vítimas do terrorismo de Estado.

Desse modo, enquanto os anos 80 foram caracterizados por iniciativas de investigação, da busca por “rastros de horror” (corpos desaparecidos e valas comuns), reivindicações por justiça e castigo aos culpados (CATELA, 2014); os anos 90 pela produção de micromemórias (SCHINDEL, 2006) ou “pequenos memoriais e marcas locais” (CATELA, 2014) na cidade, que representavam os desaparecidos, iluminavam os lugares de cativeiro e reivindicavam justiça aos culpados; com a entrada de Néstor Kirchner, começaram a ser criados “memoriais monumentais”: arquivos, centros culturais, memoriais e sítios de memória nos Ex CCDTyEs (CATELA, 2014).

Como afirma Catela (2014, pp. 32-33), o processo de estatização da memória, ao assumir que as políticas relacionadas ao tema não devem focar na reconciliação, demonstrou uma clara ambição fundacional. Pela primeira vez, as memórias dos familiares, desaparecidos e companheiros, disputaram com o Estado a memória dominante. Embora, note-se, que as memórias oficiais não deixem de conviver com outras que possuem menos espaço na esfera pública (como a dos camponeses e trabalhadores) ou que são diferidas (por exemplo, das vítimas dos conflitos que envolveram as guerrilhas armadas), gradualmente as memórias da ditadura (ou uma face delas), por décadas subalternas, foram alcançando espaços de poder e sendo reposicionadas como memórias oficiais.

Nesse sentido, houveram pelo menos cinco ações que caracterizam esse processo de estatização da memória (CATELA, 2014): (1) a declaração de um feriado nacional no dia 24 de março; (2) a incorporação dessa data no calendário escolar e a construção de materiais pedagógicos para escolas primárias e secundárias dedicados à transmissão de conhecimento sobre a

ditadura militar; (3) a reescritura do prólogo do Nunca Más; (4) a transformação de Ex CCDTyE em lugares de memória; (5) e a criação do Archivo Nacional de la Memoria no âmbito da Secretaria de Derechos Humanos de la Nación (SDHN), que articulou e centralizou os documentos relacionados ao terrorismo de Estado de todo país.

Com relação à refuncionalização dos Ex CCDTyEs em lugares de memória, onde focamos nossa análise, os atores entrevistados marcam como ponto fundante a “entrega” da Ex ESMA às organizações de direitos humanos.

No dia 24 de março de 2004, em um grande evento público no local, Néstor Kirshner e Aníbal Ibarra assinaram um documento pelo qual a cidade cedeu gratuitamente o conjunto de edifícios da Ex ESMA para a construção de um “Espacio por la Memoria y Promoción de los Derechos Humanos”, pedindo perdão publicamente pelos crimes cometidos pelo Estado. Para realizar o processo de refuncionalização da Ex ESMA, criou-se na ocasião a comissão bipartida. Composta por membros do governo e organismos de direitos humanos, ela ficou encarregada de coordenar a desapropriação das escolas da marinha e refuncionalizar cada um dos edifícios.

Figura 24. Ato de “entrega” da Ex ESMA às organizações de DDHH no aniversário do golpe em 24 de março de 2004. Fonte: Museo de Sítio ESMA (2013).

O processo demorou três anos e implicou no esvaziamento de cada um dos edifícios e nas suas ocupações por organizações de DDHH82 e instituições estatais. No âmbito da cidade, por agora, vale ressaltar que, com exceção do Ex Atlético, cuja as escavações vinham sendo encaminhadas desde 2002, isso impulsionou a refuncionalização dos outros três Ex CCTyEs menores (Ex Olimpo, Ex Orletti e Ex Virrey Cevallos) em lugares de memória. Na escala do país, diversos organismos de DDHH e autoridades locais de outras províncias e municípios passaram a enxergar o Estado como um interlocutor e a solicitar auxílio à Secretaria de Derechos Humanos de la Nación (SDHN) para a construção de outros lugares de memória no país. Além disso, intensificou-se e tornou-se mais visível uma mudança no modo de apreciação de alguns dos cinco Ex CCDTyEs por parte dos atores da sociedade civil envolvidos na luta. Eles deixaram de ser encarados como espaços de denúncia, de escrache, e passaram a ser pensados como espaços de conquista, que deviam ser recuperados de um “outro”, para a construção da memória da sociedade argentina como um todo (GUGLIELMUCCI, 2019).

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Na cidade, outro momento chave foi o incêndio da discoteca República de Cromagon, no dia 30 de dezembro de 2004, que levou à morte 194 pessoas. O evento implicou no impeachment de Ibarra em 2006, quem foi acusado como responsável pela tragédia, por permitir o funcionamento do lugar sem a infraestrutura necessária para ser uma discoteca83.

Assumiu, então, o vice, Jorge Telerman. Com a mudança de governo na cidade, Gabriela Alegre foi afastada do cargo de subsecretária de DDHH de GCABA. No lugar dela assumiu María José Guembe, advogada do Centro de Estudos Legales y Sociales (CELS). No entanto, distintos organismos de DDHH procuraram Telerman solicitando a permanência de Alegre no cargo, para dar continuidade aos programas destinados a preservar e

82 Voltaremos a isso no próximo capitulo, na sessão sobre a Ex ESMA.

83 CARMO, Maria. Prefeito de Buenos Aires perde cargo por incêndio. BBC, Brasilia, 8 de março de 2006. Disponível em: <

https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2006/03/060307_incendioimpeac hmentprefeitomarcia.shtml > Acessado em: 20 jan. 2019.

promover a memória sobre o terrorismo de Estado (GUGLIELMUCCI, 2011). Atendendo aos pedidos, o então chefe de governo criou a Unidad Ejecutora de Protectos sobre Sitios de Memoria (UEPSM), dependente da Jefatura do Gobierno. A unidade ficou responsável pela implementação dos “programas de recuperação da memória histórica” do Ex Atlético e Ex Olimpo; bem como pela desapropriação dos edifícios do Ex Cevallos e Ex Orletti, até então ocupados por particulares (GUGLIELMUCCI, 2011). Gabriela Alegre tornou-se a coordenadora.

Por sua vez, seguindo a linha do Proyecto de Recuperación do Ex CCDTyE Club Atlético, foram criadas, em cada um dos sítios que vinham sendo expropriados, as Mesas de Trabajo y Consenso (MTyC), equivalentes à Comisión de Trabajo y Consenso (CTyC) do projeto do Ex Atlético. Estas foram previstas pelas distintas leis de patrimonialização e/ou desapropriação de cada um dos quatro sítios menores.

Integradas por representantes de distintos organismos de direitos humanos, agentes governamentais, grupos de vizinhos, afetados diretos e familiares, normalmente vinculados ao processo de reivindicação dos lugares, as Mesas ficaram encarregadas por decidir, por meio da modalidade do consenso, o que fazer em cada um dos sítios, no âmbito das atividades, reconfigurações espaciais e preservação. Ademais, através das leis de desapropriação e patrimonialização, também ficou expresso a ordem de “não inovar” em função do caráter de prova jurídica desses lugares.

Como meio de esclarecer ao leitor essas idas e vindas, retomemos de forma sucinta essas reconfigurações institucionais. Em um primeiro momento, portanto, a coordenação geral Espacios para la Memoria Ex Club Atlético, Ex Olimpo e Ex ESMA estiveram a cargo da subsecretaria de Derechos Humanos do Gobierno de la Ciudad (GCABA). Posteriormente, eles, e os outros recuperados na sequência, Ex Automottores Orletti e Ex Virrey Cevallos, passaram em um primeiro momento para a jurisdição da Unidad Ejecutora sobre Proyectos de Sítios de Memória (UESPM). No entanto, logo após, ainda em 2006, Guembe realocou os programas que estavam sob

responsabilidade da UESPM ao Instituto Espacio por la Memoria (IEM), que passou para a coordenação geral dos sítios de CABA até 201484.

No ano seguinte, em decorrência dos pedidos de sinalização e/ou implantação de lugares de memória por parte de autoridades e organizações de DDHH, desenrolados a partir da refuncionalização da Ex ESMA, foi criada a Red Federal de Sítios de Memória (REFESIM). Esta foi efetivada pela Resolução no 14/07 do Ministerio de Justicia y Derechos Humanos e criada dentro do Archivo Nacional de la Memoria (ANM), por sua vez, dentro da Secretaria de Derechos Humanos de la Nación (SDHN). A REFESIM foi a primeira iniciativa estatal de articular os sítios em rede desde o Poder Executivo (PE) como um ente desconcentrado, com funções de gestão, administração, salvaguarda, conservação, digitalização, informação, interpretação e investigação das informações do ANM ou que poderiam vir a formar parte do arquivo (Art. 2).

Conforme aprofundaremos no terceiro capítulo, de modo geral a atuação da rede se deu em três frentes centrais: a articulação dos arquivos, que as organizações de DDHH e os poderes locais e provinciais vinham formando de maneira independente; a elaboração de encontros nacionais e internacionais entre lugares de memória para fomentar a troca de experiências; e a sinalização de lugares utilizados para repressão em todo. Dado que os sítios de CABA estavam, todavia, sob responsabilidade do IEM nesse momento, em seus primeiros anos de existência a REFESIM atuava, principalmente, nas outras cidades e províncias.

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Enquanto, desde 2008, o edifício que funcionara como centro da ação repressiva da Ex ESMA, o Ex Casino de Oficiales, havia sido declarado Monumento Histórico Nacional pelo Decreto no 1333/2008, os outros sítios da capital foram assim declarados em 2014 pelo Decreto no 1762/2014.

Nesse ano uma série de conflitos políticos levaram ao desmanche do IEM85. Os cinco sítios de CABA passaram à nação e ficaram sob a

84 Essas mudanças institucionais são exploradas por Ana Guglielmucci (2011) no terceiro capítulo de sua tese de doutorado.

responsabilidade da Direccion Nacional de Sítios de Memoria (DNSM). Criada também em 2014 na Secretaria de Derechos Humanos da Nação (SDHN) em função do desmanche do IEM, além da coordenação dos cinco sítios, ela tomou as responsabilidades da REFESIM, na medida em que esta tornou- se uma coordenação da DNSM. Em 2016, com Mauricio Macri enquanto chefe de Estado, embora a DNSM seja mantida, ela foi rebaixada novamente ao ANM, bem como os sítios de memória de CABA, com exceção da Ex ESMA.