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CÁP 1 OS SÍTIOS DE MEMÓRIA EM CONTEXTO

FFigura 13. Mulher sendo contornada durante o Siluetazo em 1983 Créditos: Eduardo Gil.

1.6. Verdade e justiça: o reconhecimento dos CCDTyEs

No contexto das ações descritas na sessão anterior, Alfonsín iniciou o processo de transição argentino com “a tarefa sem precedentes de assegurar a legitimidade e o futuro das políticas emergentes, buscando maneiras de comemorar e avaliar os erros do passado” (HUYSSEN, 2014, pp. 16-17). Mesmo com a situação delicada do país, o clima era de grande efervescência e esperança, com um governo que buscava reforçar as vantagens da democracia e reavivar o orgulho nacional (HUYSSEN, 2014). Alfonsín apostou em uma política cultural que retomou para o uso público lugares icônicos da cidade, como a Casa Rosada, o Congreso e a Avenida de Mayo. Lá passaram a acontecer shows e eventos ao ar livre, comemorando a mudança política e oferecendo aos habitantes de Buenos Aires uma nova vivência da cidade.

Desde sua campanha eleitoral, o presidente também prometia revogar a lei de auto-anistia aprovada pelos militares. No entanto, ressaltava que para julgar as violações de direitos humanos era preciso distinguir categorias entre os culpados: “os que criaram a repressão e emitiram as ordens correspondentes; aqueles que atuaram além das ordens, movidos por

crueldade, perversidade e cobiça e aqueles que as seguiram estritamente58 (CRENZEL apud ALFONSÍN, 2013, p. 4, traduzido por mim).

Assim, poucos dias depois de assumir, revogou tal lei; bem como declarou, por meio dos Decretos Nacionais no 157/83 e no 158/83, a perseguição às três primeiras Juntas Militares e a sete líderes das guerrilhas de esquerda. Esta última ação deu origem ao que ficou conhecido popularmente como “teoria dos dois demônios” porque atribuía a violência a dois grupos específicos da sociedade e justificava (pois não compreendia a ilegalidade da repressão estatal), o terrorismo de Estado como uma reação às ações dos grupos guerrilheiros de esquerda (CRENZEL, 2013), equiparando os crimes de tais grupos.

Além disso, Alfonsín também propôs o julgamento dos militares em cortes de primeira instância, com a possibilidade de eles recorrerem ao júri popular e sob o princípio de obediência para todos, com exceção dos militares de alto cargo. Porém, os organismos de DDHH enfatizavam a necessidade do julgamento frente a uma bi-câmara e argumentavam que uma corte militar não iria levar a sentenças adequadas (CRENZEL, 2013). Ainda em 1983 foi então criada a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) para “averiguar o destino dos desaparecidos” e “receber as denúncias e provas, remetendo-as diretamente à justiça” (CRENZEL, 2013, p. 13). Composta por personalidades da sociedade civil, representantes de organizações de DDHH, integrantes da câmara dos deputados e personagens notáveis – jornalistas, intelectuais, advogados e membros da Igreja59 – teve como tarefa receber as denúncias e as provas dos crimes cometidos na ditadura, encaminhá-las à justiça, investigar o paradeiro dos desaparecidos, denunciar toda a tentativa de

58 “Los que plantearon la represión y emitieron las órdenes correspondientes; quienes acusaron más allá de las ordenes, movidos por crueldad, perversión, o codicia, y quienes las cumplieron estrictamente”. 59 Os componentes da CONADEP eram: Ernesto Sábato, escritor; Ricardo Colombres,

jurista; René Favaloro, cardiólogo; Hilario Fernández Long, engenheiro e educador; Carlos T. Gattinoni, Bispo da Igreja Evangélica Metodista Argentina; Horacio H. Huarte, deputado nacional; Gregorio Klimovsky, matemático e epistemólogo; Santiago M. López, deputado nacional; Marshall Meyer, rabino e ativista dos direitos humanos; Jaime de Nevares, bispo católico; Hugo D. Piucill, deputado nacional; Eduardo Rabossi, filósofo; Magdalena Ruiz Guiñazú, jornalista.

destruir provas e emitir um relatório final (CRENZEL, 2008, p.18). Sejam as provas relativas aos crimes cometidos pelos militares, de desaparição forçada e sequestros de crianças; sejam relativas às ações dos grupos guerrilheiros de esquerda.

A princípio, a comissão foi rechaçada pela maioria dos organismos de DDHH, sob o principal argumento de que o parlamento era o lugar “natural” para as investigações e só uma comissão composta por duas câmaras garantiria sua efetividade (CRENZEL, 2014). Porém, surpreendentemente, as atividades da CONADEP logo extrapolaram as metas previstas. Em poucos meses a comissão recebeu cerca de 5580 denúncias, majoritariamente de familiares de desaparecidos de Buenos Aires, recolhidas e concedidas, em grande parte, por organizações de DDHH nacionais e internacionais.

No entanto, os desafios não eram pouco e demandaram modos particulares de abordagem. Um dos primeiros relacionava-se à origem dos testemunhos, pois, nos primeiros meses, apenas 70 eram de sobreviventes, o que limitava a identificação dos cativeiros e dos militares que ali atuaram. Frente a isso, foram criadas delegações em distintos lugares, como Córdoba, Bahía Blanca e Mar del Plata; bem como equipes de rua, que incitavam vizinhos e companheiros a declarar, caso houvessem sido testemunhos.

Desse modo o acervo testemunhal foi aprimorado, mudaram suas características e a qualidade das informações existentes (CRENZEL, 2013). Chegou-se a 1500 depoimentos de sobreviventes (CRENZEL, 2013), o que levou, dentre outras coisas, ao aprofundamento do conhecimento sobre os centros clandestinos. As informações sobre os lugares já conhecidos, por onde passaram uma maior quantidade de desaparecidos (ESMA, Club Atlético, na capital; Vesubio e Campo de Mayo, localizados na província de Buenos Aires; e La Perla, em Córdoba) foram ampliadas; a eles somadas centenas de delegacias e dependências militares; apresentaram-se ao CONADEP oficiais, suboficiais, policiais, responsáveis pelos centros e os crimes lá cometidos; e, reconhecendo a importância dos vizinhos, a comissão começou a recolher depoimentos dessas testemunhas indiretas, que conviviam cotidianamente com a presença de CCDTyE em seus bairros (CRENZEL, 2013).

A partir de então, as informações foram classificadas por centro clandestino, incluindo nessa categoria toda a dependência que funcionou como cativeiro, mesmo que por algumas horas. Isso levou a considerar que todas as dependências policiais ou militares que, por sua própria condição, podiam haver sido usadas para fins de repressão. E, assim, mediante aos diversos lugares que foram sendo localizados, vislumbrou-se o alcance do plano em âmbito nacional e o caráter sistemático da desaparição.

Mais que isso, a comissão passou a “inverter a raiz do caráter do espaço estratégico da desaparição. O lugar que se constituíram os centros clandestinos se transformou no eixo para reconstruir a materialidade das desaparições”60 (CRENZEL, 2013, p. 17, traduzido por mim). Mesmo frente a distintas dificuldades – por exemplo, entrar onde funcionavam as forças policiais – logrou-se mobilizar os depoimentos para reconstruir a materialidade dos centros clandestinos, colocando-os no centro desse trabalho.

Isso se deu a partir das inspeções nesses lugares junto a testemunhos, fotógrafos, arquitetos, meio pelo qual se pôde comprovar os usos desses espaços para fins repressivos, registrando-os para serem usados como prova jurídica dos crimes ocorridos.

No entanto, dado que os setores concentracionários estavam, em grande parte, desmanchados ou modificados, a comissão adotou uma abordagem particular para reconhecê-los: em vez da busca por rastros, as inspeções se davam pela chave das interpretações dos signos materiais, a partir dos depoimentos e testemunhos que acompanhavam as visitas. Enquanto um fotógrafo registrava os espaços, um arquiteto desenhava in situ esboços em planta baixa que reconstituíam a organização concentracionária a partir do que contavam as vítimas que acompanhavam as inspeções. Os resultados incluíram registros fotográficos e desenhos, foram compilados em dossiers e associados aos testemunhos e documentos recolhidos (CRENZEL, 2013).

60 “La Comisión invirtió de raíz el carácter del espacio estratégico de desaparición. El no lugar que constituyeron los centros clandestinos se transformo en el eje para reconstruir la materialidad de las desapariciones”.

Figura 15. Sobrevivente sendo levado vendado por membro da comissão – como ficavam quando encarcerados – para reconhecer o ex-centro clandestino Ingenio Lules em 1984. Fonte: Archivo Nacional de la Memoria.

Créditos: Enrique Shore. Disponível em: <

https://journals.openedition.org/orda/3548?lang=en > Acessado em: 10 jan. 2019.

Figura 16. Reconhecimento do Ex Olimpo durante a inspeção da CONADEP em 1984. Fonte: Arquivo CONADEP.

O trabalho desenvolvido pelo CONADEP deu origem ao relatório Nunca Más. Um ano depois, em uma noite de 1984, 70.000 pessoas se reuniram na Plaza de Mayo para comemorar a entrega do relatório ao então presidente Alfonsín (CRENZEL, 2008, p.19). O livro tornou-se um best- seller, foi traduzido para o português e para o inglês e tornou-se referência para outras comissões da verdade (como a brasileira). Assim, se, a princípio, o CONADEP fora rejeitado por quase todas as organizações de direitos humanos, ), acabou sendo amplamente aceito, em grande medida pela ênfase no discurso das vítimas e por incluir representantes de grupos de DDHH como atores centrais no trabalho desenvolvido (CRENZEL, 2013).

Em 1985, o Nunca Más tornou-se base para o Juício a las Juntas Militares, criado pelo Decreto no 158/8361. Por meio dele, o poder executivo ordenou o julgamento de nove militares que comandaram o golpe e estiveram no comando do país entre 1976 e 198262, dos quais cinco foram condenados63.

Dessa forma, enquanto o CONADEP permitiu a construção de uma verdade pública em relação aos crimes de terrorismo de Estado dos anos 70’; o Juício a las Juntas anunciava o tempo da justiça e demostrava a capacidade do Estado democrático de se impor acima das forças armadas. Os julgamentos concederam uma certa dramaticidade aos registros do CONADEP: colocaram o poder judicial no centro da cena institucional, transformaram as vítimas em testemunhos, os repressores em acusados e os atores públicos que assistiam aos julgamentos em observadores. O pêndulo das narrativas deslocava-se, então, desde o pessoal, historicamente contextualizado (chave pela qual trabalhavam as Madres inicialmente) às demandas universais por direitos humanos (JELIN, 2017).

Pouco a pouco, a teoria dos dois demônios, amplamente aceita ainda no governo Alfonsín, foi sendo substituída pelo consenso de que o

61 Disponível em:

http://www.desaparecidos.org/nuncamas/web/document/nacional/decr158.htm > Acessado em: 17 jan. 2019.

62 Jorge Rafael Videla, Orlando Ramón Agosti, Emilio Eduardo Massera, Roberto Eduardo Viola, Omar Graffigna, Armando Lambruschini, Leopoldo Fortunato Galtieri, Basilio Lami Dozo e Jorge Anaya.

Estado cometera graves violações aos direitos humanos (HUYSSEN, 2014). Os jornais e revistas que haviam encoberto e apoiado a intervenção militar passaram a publicar os relatos de horror quase diariamente. Desse modo, as ações de verdade e justiça foram provocando uma mudança no discurso público: desde a guerra anti-subversiva, até a de que os militares haviam cometido graves violações aos direitos humanos.

Por outro lado, ainda no governo Alfonsin, em 1986 e 1987, respectivamente, foram aprovadas as Leis Punto Final (n° 23.492) e Obediencia Debida (n° 23.521). A primeira paralisou as investigações e anistiou os militares; e a segunda lei determinou que os crimes cometidos não eram puníveis, alegando que muitos dos militares foram coagidos a cometer os crimes por seus superiores.

Enquanto uma das respostas da sociedade, muitos organismos de direitos humanos passaram a pressionar o poder judicial. Logo nos primeiros meses de 1987, com a anunciação da primeira lei, foram empreendidos uma quantidade inesperada de processos em todo o país (JELIN, 2017); bem como novas reivindicações tomaram as ruas de Buenos Aires em favor da revogação das leis de impunidade.

A situação foi agravada com a entrada de Carlos Menem no poder executivo. Em 1989, sob o argumento da reconciliação e de união nacional, o então presidente assinou quatro decretos que perdoavam os responsáveis pelos crimes da ditadura militar – dentre eles, aqueles que não foram beneficiados pelas Leis Obediencia Debida e Punto Final; os responsáveis políticos e criminais pela Guerra das Malvinas64; os carapintadas, que realizaram um levante em favor de uma maior impunidade no governo Alfonsín; e alguns lideres das organizações armadas de esquerda, condenados no governo Alfonsín. Em 1990, Menem outorgou ainda mais seis decretos que perdoavam comandantes das juntas militares condenados pelo Juicio a las Juntas em 1985: Jorge Rafael Videla, Emilio Massera, Orlando Ramón Agosti, Roberto Viola e Armando Lambruschini65.

64 São eles: tenente general Leopoldo Fortunato Galtieri, almirante Jorge Isaac Anaya e o brigadeiro general Basilio Arturo Ignacio Lami Dozo.

65 D’ALESIO, Rosa. Los indultos que decretó Menem. La Izquierda Diario. 29 dez. 2015. Disponível em: < http://www.laizquierdadiario.com/Los-indultos-que-decreto-Menem > Acessado em: 10 jan. 2019.

A entrada de Menem configurou os chamados “anos do esquecimento” (1989-1995), por meio de uma política que pretendeu acelerar o processo de amnésia sob o pretexto de reconciliação (SCHIENDEL, 2009). Com a queda do muro de Berlim, quando o neoliberalismo alcançava seu auge, os governos latino-americanos voltavam suas preocupações para tarefas direcionadas à eficiência econômica em chave global. Diferente do que acontecia na Alemanha, os esforços não estavam centrados em incorporar o passado recente em uma perspectiva histórica, mas em apresentar institucionalmente essa conjuntura (JELIN, 2017).

Na Argentina, o foco estava principalmente no controle da crise hiperinflacionária de 1989, decorrente da pressão dos credores estrangeiros pelo pagamento da dívida externa acumulada na ditadura (BASUALDO, 2002). Na tentativa de resolver esses problemas, Menem inaugurou uma onda de privatização das empresas públicas, que afetou diretamente o acesso dos setores pobres da sociedade a serviços básicos como saúde, educação e moradia.

Frente à situação, como veremos ao longo do próximo capítulo, na década de 90 conformam-se agrupações de vizinhos que reivindicavam melhores condições de vida, direcionando-se, portanto, a suprir as carências sociais agravadas a partir de então. Criam-se, assim, o que Merklen (apud OLMOS, 2018) chama de estruturas de vizinhança: redes de cooperação com formas próprias de ações coletivas, que partiam do bairro como centro organizacional. Muitos desses grupos passaram a trabalhar com a memória da ditadura, até então, diferida, apontando a uma conexão entre seus desejos de melhores condições de vida e a luta dos militantes de esquerda dos anos 70 por uma sociedade mais justa e igualitária.

Assim, em decorrência da vigência das leis de impunidade, dos indultos, da crescente desigualdade social e do abandono, por parte do Estado, da construção constitucional da verdade e da justiça, a democracia passou a ser questionada enquanto meio político privilegiado de proteção aos direitos humanos (OLMOS, 2018) e as tarefas de investigação e

compilação de arquivos retornaram aos grupos de DDHH e vizinhos (JELIN, 2017). Porém, além disso, as medidas políticas e econômicas abriram espaço para uma expansão na territorialidade da luta: desde a Plaza de Mayo, no centro da cidade, aos interiores dos bairros.