• Nenhum resultado encontrado

CÁP 1 OS SÍTIOS DE MEMÓRIA EM CONTEXTO

1.4. Os centros clandestinos e um genocídio reorganizador

consolidaria anos depois, quando os Ex CCDTyE já se encontravam estatizados e institucionalizados, no âmbito da Dirección Nacional de Sítios de Memoria (DNSM). Tratam-se, segundo a DNSM, de instituições que “levam adiante de modo permanente atividades educativas, culturais, artísticas e de investigação, destinadas à transmissão da memória e à promoção dos direitos humanos42”. Enquanto a atual denominação oficial dos sítios, hoje lugares de memória, apresenta-os, assim, como parte de um espectro mais amplo de preocupações, voltadas à construção de um futuro melhor.

1.4. Os centros clandestinos e um genocídio reorganizador

Na Argentina, a última ditadura, cujas memórias encarnadas nos lugares são foco da dissertação, começou em 1976. Nesse ano, os militares derrubaram a então presidenta Maria Estela Martínez, viúva do presidente Juan Perón, com a justificativa de conter o crescimento da inflação e a influência socialista.

Embora a Argentina tenha sofrido seis golpes ao longo de sua história43, dessa vez era diferente. Enquanto, por exemplo, em 1930, o exército interveio para assegurar os negócios da oligarquia ameaçados pela crise de 1929; em 1976, os militares levaram a cabo um projeto de “reorganização nacional”, impondo um projeto de país próprio (CALVEIRO, 2004). Diferente dos genocídios com outsiders, como o genocídio aos indígenas (genocídio colonial), o genocida com os colonos (genocídio pós-colonial) ou com grupos indesejados para a construção de um Estado-Nação (genocídio fundacional), o projeto de reorganização nacional implicou em um genocídio reorganizador, caracterizado pelo propósito e habilidade de alterar, pela morte e horror, as relações sociais dominantes na sociedade (FEIERSTEIN, 2014, p. 188). O massacre não se daria, então, apenas pelo ato de extermínio, mas em meio a

42Llevan adelante de modo permanente actividades educativas, culturales, artísticas y de investigación,

destinadas a la trasmisión de la memoria y la promoción de los Derechos Humanos” (tradução minha).

Disponível em: < https://www.argentina.gob.ar/sitiosdememoria/espacios>. Acesso em: 20 fev. 2019.

um processo progressivo de estigmatização, hostilização e exclusão de grupos específicos.

Assim, portanto, se deu a época mais violenta da história do país, durante a qual foram vetadas qualquer tipo de participação popular; a representação política foi severamente limitada; e, especialmente militantes de esquerda ligados às organizações peronistas e sindicatos que se opunham a um modelo agroexportador e rentista, dominante há décadas na Argentina, foram perseguidos, torturados e desaparecidos. Empregou-se a técnica da desaparição forçada, que implicou na falta de informações que permitissem verificar a morte dos indivíduos, na ausência dos corpos e de uma sepultura para os chamados detidos-desaparecidos (COLOMBO, 2017). Os grupos de direitos humanos falam em 30.000 “desaparecidos”. No entanto, trata-se de um número incerto, pois a figura do desaparecido insere-se em um limbo, de suspensão do tempo e espaço de sua morte (COLOMBO, 2017). Nesse sentido, para levar a cabo os crimes, foi preciso isolar as vítimas da sociedade. E, na sociedade como um todo, anular as redes de solidariedade e os laços que uniam as pessoas introduzindo, no lugar, a desconfiança, a solidão e o isolamento.

A figura do desaparecido reverberou para as práticas espaciais dos que conviveram com essa indefinição, em grande medida, porque o processo de reorganização nacional passou diretamente pela transformação física da cidade e pelas relações que se estabelecem a partir e através dela. Expressou- se na vontade de criar cidades à imagem e semelhança da estrutura militar: organizadas, limpas, tecnológicas e com cidadãos disciplinados.

De modo mais evidente, no espaço público construíram-se “arquiteturas autoritárias”: praças que dificultavam a reunião, edifícios militares que propiciavam o uso individual e o controle; abusou-se do concreto armado, símbolo da modernidade, na construção de estádios, passeios públicos e viadutos, que impulsionavam a circulação rápida de automóveis individuais em detrimento da circulação de pedestres, que propicia o encontro e a ação coletiva; construíram-se monumentos; e se levaram a cabo programas de embelezamento e limpeza das fachadas (SCHINDEL, 2013).

De modo mais oculto, uma série de políticas públicas visavam expulsar os pobres da cidade, acando com as Villas Misérias, e devolvendo os

imigrantes, como os bolivianos, a seus países de origem, por meio de iniciativas de “repatriação”44 (OSZLAK, 2017). Além disso, estava o constante patrulhamento das ruas e avenidas da cidade, os ruidosos barulhos dos escapamentos dos automóveis dos militares, Ford Falcón, que tornavam o controle onipresente na cidade e na vida dos cidadãos (SCHINDEL, 2013).

Como o espaço, a sociedade era vista como passível de remodelação, como se fora possível fazer uma tabula rasa das práticas sociais e conflitos para dar lugar a um projeto radical (SCHINDEL, 2013). Devia-se eliminar qualquer empecilho. Sejam espaciais, que propiciavam a criação de laços sociais; seja deslocando os pobres à periferia ou aniquilando os integrantes de grupos de esquerda. Para habitar a cidade era preciso merecê-la45 (OSZLAK, 2017), e isso implicava em encaixar-se no modelo político, social, econômico e também urbano imaginado pelos militares. Dessa forma, as intervenções espaciais não devem ser compreendidas como efeitos colaterais do projeto de reorganização nacional, mas meios e expressões das transformações radicais que se deram na Argentina durante esse período (SCHINDEL, 2013).

Os centros clandestinos inseriam-se como tecnologias centrais desse genocídio reorganizador (FEIERSTEIN, 2014). Tendo como modelo os campos de concentração nazistas na Segunda Guerra Mundial, na Argentina eles surgiram ainda na democracia em 1975, quando o poder executivo ordenou, por meio do Decreto no 261/75, que o exército argentino e as forças aéreas aniquilassem as “forças subversivas” atuantes na cidade de Tucumán – ação chamada de Operativo Independencia46. No entanto, se antes

44 Ver: “Repatriación” de inmigrantes bolivianos, 1978. In: Archivo Histórico RTA S.E. 1978. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iDJ0xcng6DM&t=81s > Acessado em: 26 fev. 2019.

45 Para uma análise profunda dos processos de formulação e implementação de políticas públicas nesse contexto autoritário, ver o livro “Merecer la ciudad” de Oscar Oszlak (2017). Nele o autor elegeu algumas políticas públicas que, ignorando a ideia de um direito à cidade, mudaram radicalmente a fisionomia de Buenos Aires e realocaram as habitações dos pobres das zonas centrais às áreas periféricas.

46 O Decreto no 261/75 deu início à ocupação militar ao sudoeste da província de Tucumán, com o intuito de realizar “todas as operações militares necessárias para neutralizar ou aniquilar o acionar de elementos subversivos que atuam na província de Tucumán” (DECRETO NO 261/75 apud COLOMBO, 2017, p. 57, traduzido por mim). Em 1975 chegaram à zona cinco mil membros de diferentes forças, entre o exército, a Gendarmería, as policias federal e provincial. O comandante da operação distribuiu o terreno a seis forças

da ditadura eram usados mais como uma das tecnologias da repressão, com o golpe de 1976, os campos de concentração e a técnica da desaparição passaram a ser executados diretamente pelas instituições militares, e o eixo de sua execução deslocou-se desde as prisões à desaparição forçada de pessoas (CALVEIRO, 2004).

Durante a ditadura foram construídos mais de 700 centros clandestinos por todo o país, que funcionavam em delegacias, edifícios militares ou propriedades particulares. Diferente dos campos de concentração nazistas, muitas vezes implantados fora das zonas urbanas, localizavam-se especialmente nas cidades e em bairros de classe operária, como meio de evitar a formação de grupos de resistência.

Em escala nacional, para levar a cabo a “missão do exército”, os militares subdividiram a Argentina em 5 zonas e 27 subzonas. Cada zona ficava sob o controle de uma força, o que levava a algumas poucas variações das suas formas de administração; bem como determinava quem tinha o controle sobre os destinos das vítimas, que podiam ser a liberdade (sempre vigiada), a transferência para outro centro, ou o translado, por meio dos Vuelos de la muerte.

No interior, os sequestrados eram desumanizados (a primeira coisa que se fazia era desnudá-los e trocar seus nomes por números), disciplinados e torturados. Os entornos dos centros eram constantemente patrulhados, as portas estavam sempre fechadas, havia o controle dos vizinhos, os ruídos e os cheiros, que se deixavam escapar das torturas e por vezes invadiam o interior das casas próximas aos CCDTyEs.

Esses lugares eram, portanto, ao mesmo tempo discretos, ocultos e óbvios, uma realidade negada/sabida (CALVEIRO, 2004). Por sua proximidade física, por estarem “do outro lado da parede”, só podiam existir em meio de uma sociedade que, por sua impotência, escolhe não ver. Ao mesmo tempo se tornavam os motores dessa paralisação da sociedade.Esta funcionava como uma caixa de ressonância do poder concentracionário e

tarefas, três esquadrões de Gendarmería e implantou diversas bases militares, acampamentos e centros clandestinos, que permaneceram lá até 1983 (COLOMBO, 2017, p. 57).

desaparecedor, que permitia a difusão dos ecos desse poder, mas era, ao mesmo tempo, sua destinatária favorita (CALVEIRO, 2004).

Portanto, enquanto a morte aparecia de fato no interior dos centros clandestinos, seus efeitos reverberavam diretamente nos seus entornos e, logo, na escala do país. Eles podem ser entendidos como espaços de exceção, lugares onde as leis jurídicas estão suspensas e onde as pessoas são desprovidas de sua condição de cidadãos (SCHINDEL apud AGAMBEN, 2013). Na Argentina, ao serem multiplicados por mais de 750, formaram um arquipélogo de exceções: “uma multiplicidade de zonas extraterritoriais discretas, a expressão espacial de uma série de ‘estados de emergência’ ou estados de exceção que são criados por uma lei [...] ou aparecem de facto em seu interior.47 (SCHINDEL apud WEIZMAN, 2013, p. 4, traduzido por mim). Constituíram-se, dessa maneira, em uma rede própria, ao mesmo tempo onipresente e emaranhada ao resto da sociedade e às dinâmicas do governo ditatorial.

Figura 6. Mapas de centros clandestinos e outros lugares de reclusão ilegal.

Fonte: Dirección Nacional de Sitios de Memoria (DNSM), 2015.

47 “Una multiplicidad de zonas extraterritoriales discretas, la expresión espacial de una serie de ‘estados de emergencia’ o estados de excepción que son creados a través de una ley […] o aparecen de facto en su interior”.

1.5. O espaço público como ferramenta política: primeiras ações