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CÁP 1 OS SÍTIOS DE MEMÓRIA EM CONTEXTO

1.1. O Holocausto, memória e história

No primeiro momento, anunciava-se a possibilidade de entender o passado a contrapelo (BENJAMIN, 1985:1940). Isto é, construir a história desde o ponto de vista dos vencidos, em contraposição à história oficial do progresso, concebida desde as classes dominantes (BENJAMIN apud LÖWY, 2011).

O marco central desse movimento foi o Holocausto, cuja a história foi sustentada quase exclusivamente pelos depoimentos dos sobreviventes. A percepção de alguns teóricos acerca das dissonâncias, incertezas e desencontros dos depoimentos pessoais dessas pessoas; bem como o reconhecimento da convivência de distintas memórias coletivas – dos alemães, poloneses, judeus –, levou a uma crítica do modelo historiográfico do séc. XIX. Opondo-se a um tipo de construção da história linear, ascendente, objetiva, na qual a memória era apresentada como um “dom” dos Estados-Nação europeus, típica do séc. XIX, autores fundantes propuseram uma revisão desse modelo.

Dentre eles Walter Benjamin (1985:1940) e Maurice Halbwachs (1990:1950), sistematicamente retomados nos estudos da memória, em que esta pesquisa se insere. Em comum, eles alertavam sobre para a impossibilidade de fazer uma história imparcial e universal, como vinham construindo os historicistas, pois isso afogaria o próprio impulso “a- histórico” da produção da vida (SARLO, 2011, p. 11). Em contraponto, sugeriam um entendimento da memória como apresentação, construção do presente, reivindicando a preservação do caráter fragmentário, fugidio da recordação (SELIGMANN-SILVA, 2000).

Nas palavras de Benjamin (1985:1940, p. 224), “articular historicamente o passado não significa conhecer como “ele de fato foi”.

Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento do perigo”. O “perigo”, para ele, era entregar a existência da tradição aos que a recebem como um instrumento das classes dominantes. Em contrapartida, propunha o método do materialismo histórico – contra a história universal e monumental. O historiador devia olhar aos restos e rastros do passado, expressos em um “relampejar fugaz” no presente, a “verdadeira imagem histórica”.

Considerando a Alemanha no começo do século XX, para Benjamin isso era o meio de resistir ao fascismo (que se vivia naquele momento) decorrente da barbárie da modernidade, cujos traços tecnocráticos, de homogeneidade e esvaziamento, haviam aí aflorado. Desse modo, como destaca, o próprio ato de rememorar poderia ser perturbador se trouxesse uma face negada do passado, fazendo, assim, com que a memória deixasse de ser algo a se observar para ser mobilizada como experiência (apud COLOMBO, 2017).

Por sua vez, Maurice Halbwachs (1990:1950) aponta à ideia de memória coletiva. Não como total, única e imposta, mas como algo construído por pessoas que se locomovem em um determinado tempo e espaço, interagindo em um vai e vem com distintos grupos sociais. Em suas palavras: “A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado. Ou seja, se o quisermos, ao lado de uma história escrita há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo” (HALBWACHS, 1990:1950, p. 67).

As memórias coletivas seriam formadas por grupos compostos de indivíduos com aspectos comuns do pensamento, que se formariam por uma afinidade afetiva entre seus componentes. No interior deles, onde convivem memórias divergentes e consonantes, individuais e compartilhadas, a construção da memória coletiva aconteceria por um processo de seleção e negociação.

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída

sobre um fundamento comum. Não é suficiente reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento passado para se obter uma lembrança. É necessário que essa lembrança opere a partir de dados ou noções comuns que se encontram tanto em nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (HALBWACHS, 1990:1950, p. 34).

Esses “dados e noções comuns” levam a um outro aspecto importante para este trabalho: a relação intrínseca entre memória e espaço. Diz ele: “todas as ações de um grupo podem se traduzir em termos espaciais” (HALBWACHS, 1990:1950, p. 67). Para o autor, “não há memória coletiva que não se desenvolva em um quadro espacial [...] nossas impressões se sucedem umas às outras e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca”.

Halbwachs aponta, então, a referentes que operam como reguladores das memórias coletivas, “imagens oferecidas por objetos exteriores” (HALBWACHS, 1990: 1950, p. 67). Noções, datas, mas também monumentos, paisagens, arquiteturas e lugares que “receberam a marca de um grupo e vice-versa” (HALBWACHS, 1990: 1950, p. 133). O lugar atuaria como uma importante referência para a coesão dos grupos e seus laços. No entanto, não seria, para ele, determinante. Os laços se assegurariam especialmente pelas relações afetivas, que garantiriam a existência de um grupo e de suas memórias coletivas, apesar das transformações da cidade.

Quando um grupo humano vive muito tempo em um lugar adaptado a seus hábitos não somente seus movimentos, mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão de imagens que lhes apresentam os objetos exteriores. Eliminai agora, eliminai parcialmente ou modificai em sua direção, sua orientação, sua forma, seu aspecto, essas ruas, essas passagens, ou mudai somente o lugar que ocupam em relação ao outro. As pedras e os materiais não vos resistirão. Mas os grupos resistirão, e, deles, é com a própria resistência, senão das pedras, pelo menos de seus antigos arranjos no qual vos esbarreis. (HALBWACHS, 1990:1950, p. 137).

Embora a relação entre memória e espaço, para o autor, seja intrínseca, na medida em que aponta que “as pedras e os materiais não vos resistirão”, masos grupos sim – isto é, que a coesão de um grupo seria garantida pelos laços afetivos –a problemática do espaço parece não ser explorada em sua complexidade. Isto, especialmente, no que diz respeito à capacidade de agência da materialidade nas dinâmicas grupais e na construção das memórias coletivas, o que acreditamos ser imprescindível para pensar nossos objetos de estudos.

Contudo, interessa aqui destacar que, tanto em Benjamin e Halbwachs, a problematização da memória, a ideia da memória coletiva como negociação e da história como fruto de dinâmicas interpessoais, fundamentou uma mudança fundamental nas formas de análise inseridas nas ciências humanas. Décadas depois, os intelectuais tenderão, cada vez mais, a compreender as dinâmicas sociais e espaciais por essa perspectiva, redirecionando os objetos de análise, as formas e as fontes.

Não é que estejamos livres do modelo historicista. Ele ainda guia, em grande medida, nossas escolhas, preferências estéticas e o modo como agimos (SMITH, 2005). Porém, é importante destacar que as mudanças no modo de pensar a memória, a história e o próprio espaço, abriram portas para a criação dos sítios de memória, desses patrimônios hostis, os quais remetem às narrativas de violência e, assim, controversas. Isto é, o modo como a história é construída determina diretamente as políticas de memória (SELIGMANN-SILVA, 2000). Ao nosso ver, os Ex CCDTyEs aqui estudados não poderiam ser compreendidos de outra forma, se não que entendendo que a memória ali encarnada é sempre conflitiva, acontece sempre no plural e de maneira dinâmica com o espaço.