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5. No olho do furacão

5.3 Antígona, onde estão seus irmãos?

A referência a Antígona recupera do texto trágico de Sófocles uma das mais desconcertantes histórias de amor e de ódio entre irmãos. Antígona, filha de Édipo, enfrentou Creonte, rei de Tebas, dando sepultura a seu irmão Polinices. Etéocles e Polinices, seus dois irmãos, haviam lutado em posições adversárias, na guerra dos Sete Chefes contra Tebas, e, iguais em destreza e coragem, mataram-se mutua- mente. O rei de Tebas organizou a cerimônia fúnebre de Etéocles, que lutara a seu favor, e proibiu o sepultamento de Polinices, seu adversário.

Desafiando a proibição real, Antígona decidiu sepultar o irmão, cumprindo o sagrado dever de dar sepultura aos mortos. Este desafio e insubmissão ao soberano lhe impôs trágico e paradoxal destino: ao contrário do irmão, a quem fora negado o sepultamento, foi encerrada viva em uma gruta de pedra nas montanhas.

Confinada neste lugar opaco e indeterminado entre a vida e a morte, Antígona sucumbiria, sem qualquer possibilidade de sobreviver. A sentença de Creonte ante- cipa um destino trágico que os tiranos e ditadores de civilizações posteriores passa- ram a exercer: a negação da sepultura aos que manda matar, criando a figura con- temporânea do desaparecimento forçado por motivação política.

198 SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Habeas Corpus – que se apresente o corpo, p.. 109-110.

Lacan oferece uma leitura de Antígona que torna possível múltipla abrangên- cia. Ao contestar o rei tebano, que estabeleceu a lei e a identificou com os decretos dos deuses, Antígona, pelos laços de sangue, se opõe ao mandamento de Creonte: reivindica para si o que quis fazer e diz que, como a lei dos deuses não está escrita, ela pode também tomá-la para si.

“Quando ela se justifica perante Creonte sobre o que fez (...) diz: Pois de ne- nhuma maneira Zeus proclamou isso para mim; não é Zeus quem te dá o direito de fazer, de dizer isso.”199

Apesar da contestação é derrotada e encaminhada para um local em que es- tará suspensa entre a vida e a morte, e este é o suplício que lhe é destinado. Sem estar morta, já está riscada do mundo dos vivos, e durante longo tempo vai queixar- se de partir sem tumba, ainda que trancada numa tumba, sem morada e sem amigo que chore por ela.

Mas, diz Lacan, “as coisas poderiam ter tido um término se o corpo social ti- vesse aceitado perdoar, esquecer, e cobrir tudo com honras funerárias. É na medida em que a comunidade se recusa a isso que Antígona deve fazer o sacrifício de seu ser para a manutenção desse ser essencial (...) familiar, motivo, e eixo verdadeiro, em torno do qual gira toda essa tragédia”200.

A interpretação de Lacan enlaça ao destino de Antígona a comunidade que foi surda ou indiferente ou imobilizada frente ao castigo que ela iria sofrer, um suplício paradoxal, pois ainda viva poderia ter sido escutada. Mas a surdez do rei e a surdez do corpo social que poderia apoiá-la na sua queixa acabaram por determinar sua extrema dor e o suplício de seu desaparecimento em vida.

O desaparecimento forçado já fora exercido na Segunda Guerra Mundial quando o Programa Nacht und Nebel – Noite e Neblina – foi concebido para fazer sumir os corpos dos opositores sem deixar rastro. Esta prática passou a ser exercida com desenvoltura na guerra da Argélia e posteriormente nas ditaduras latino- americanas, Brasil, Argentina, Uruguai , Paraguai e Chile.

199 LACAN, J., O Seminário, livro 7, A ética em psicanálise,.p. 328. 200 Ibid., p. 334.

Desaparecido é aquela vítima para a qual permanece a ocultação do destino ou paradeiro, ou seja, quando não se divulgou ou identificou os restos mortais, ou não se encontrou a pessoa viva201.

No Brasil, a ditadura civil-militar desafiou e seus defensores sustentam esse desafio, mantendo os desaparecidos ocultados. A materialidade de suas mortes permanece inacessível. Suas vidas e mortes permanecem suspensas, ao mesmo tempo em espaço indeterminado, envoltas em opacidade, sem contorno e sem lu- gar. Por que no Brasil os desaparecidos ainda continuam nesta zona indeterminada entre a vida e a morte?

Se estão vivos, onde estão?

Se estão mortos, quem os matou?

Em 2007, o livro sobre mortos e desaparecidos Direito à Memória e à Verdade, publicado pela Secretaria Especial dos Diretos Humanos, informa que, no final de 2006, a CEMDP concluíra a análise, investigação e julgamento de casos de mortos e desaparecidos, com na Lei 9140/95 e seu anexo. A busca, durante quase 40 anos, pelo esclarecimento dos casos de morte, das circunstâncias em que ocorreram, são a evidência de que as mortes ocorreram por tortura ou em decorrência da tortura.

Em 2010, com o esclarecimento dos casos que no Brasil se enquadram na definição da Convenção da ONU acima expressa, o livro Habeas Corpus diz que “os corpos de um número incerto de brasileiros – provavelmente entre 150 e 180 – que se opuseram e foram mortos pelo regime civil-militar não foram devolvidos às suas famílias até o final de 2010.”202

Muitos corpos ainda estão desaparecidos e a busca pelo esclarecimento foi dificultada, não só com a descoberta da ramificação clandestina de apoio à rede ofi- cial para a tortura, como a descoberta de que há vários cemitérios, espalhados por todo o país, onde provavelmente podem estar enterrados corpos dos desaparecidos.

201 Declaração Sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra os Desparecimentos Forçados, pro-

mulgada pela Assembleia Geral da ONU em 18 de fevereiro de 1992.

202 SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Habeas Corpus – que se apresente o corpo, p. 178.

Sob o título “Cemitérios e valas clandestinas”, a equipe do livro Habeas Cor-

pus relata pormenorizadamente informações, algumas já devidamente comprova-

das, da existência de ossadas, dentre as quais estariam os restos mortais de vários militantes políticos presos durante a ditadura civil-militar e cujo paradeiro até hoje era considerado desconhecido. “O uso do cemitério de Perus, para esconder os cor- pos dos opositores eliminados e a existência da vala, já eram de conhecimento da Comissão de Familiares de Presos Políticos desde 1978”.203

A descoberta posterior foi a existência da criação de valas clandestinas como um procedimento para esconder os corpos dos militantes entre ossadas anônimas, prática exercida em outros cemitérios de São Paulo, como o Cemitério de Vila For- mosa, também identificado como local que recebeu corpos de opositores, enterrados em sacos plásticos e de forma camuflada na gigantesca área que ocupa 763 mil me- tros quadrados na Região Leste de São Paulo; além desses, há mais três cemitérios que receberam corpos para serem enterrados anonimamente em São Paulo.

Igualmente, há seis cemitérios no Rio de Janeiro, três em Pernambuco, um no Paraná, quatro localizados em áreas do estado de Goiás, hoje estado de Tocantins e um em Minas Gerais, cujas investigações feitas ao longo dos anos indicam a ocor- rência da mesma prática e a existência de valas clandestinas.

Ao lado desses 20 cemitérios, resta o céu como testemunha dos corpos joga- dos ao mar ou nos rios que banham nosso imenso país, ou provavelmente queimados na serra das Andorinhas, na região do Araguaia, que foi palco do enfrentamento dos militantes mortos no Araguaia até hoje desaparecidos. A principal dificuldade em rela- ção à localização dos corpos dos militantes que combateram no Araguaia se deve à “Operação Limpeza” que, hoje se sabe, foi executada com maestria nesta região, cumprindo à risca, entre outros, os ensinamentos do general Aussaresses que no Brasil ministrou cursos de capacitação e de treinamento, na região amazônica.

Os trabalhos para localização dos corpos dos militantes políticos desapareci- dos permanecem como uma decisão de governo e foi implantada, em 2006, pela CEMDP vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos, a proposta de criação de um banco de DNA, com perfis genéticos que possibilitem a comprovação científi- ca de restos mortais ou de ossadas localizadas.

203 SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Habeas Corpus – que se apresente o corpo, p. 124.

A principal continuidade destes procedimentos de resgate da memória, da verdade com vistas à Justiça, é a instalação da “Comissão Nacional da Verdade” encaminhada durante a gestão do ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria de Direi- tos Humanos e que desde maio de 2010, iniciou sua tramitação como Projeto de Lei de número 7.376/2010 no Congresso Nacional.