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4. Presos políticos e resistentes: testemunhos

4.3 Rita Maria de Miranda Sipahi: Rio de Janeiro, 1971

4.3.1 Rita, você vai ficar pra sempre presa, sua prisão é perpétua?

A pergunta foi feita a Rita, pelo seu filho Paulo, então com 7 anos de idade. Talvez tenha ouvido na televisão, talvez tenha ouvido em outro lugar. De qualquer forma, somente muito tempo depois de visitar a mãe que fora presa em sua presen-

178 AGAMBEN, G., O que é o contemporâneo? e outros ensaios, p. 84.

179 O depoimento de Rita foi elaborado para seu relatório à Secretaria de Justiça e de Defesa da

Cidadania do Estado de São Paulo, para comissão criada pela lei 10.726 de 9/01/2001. Seu texto me foi cedido, em 2007, por ela própria. Rita Sipahi era militante da Ação Popular – AP, e posteri- ormente do Partido Revolucionário dos Trabalhadores – PRT, que se formou em 1968, por iniciativa de setores da Ação Popular, e incorporou ex-militantes de outras organizações: Partido Comunista Brasileiro (PCB), Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP) e Partido Co- munista do Brasil (PCdoB).

ça, Paulo pode formular a pergunta. Na verdade Rita foi sequestrada, como sempre foram feitas as prisões, à queima roupa, invadindo casas, arrombando portas, arre- batando no meio da rua. Paulo e Camila, com 5 anos de idade, viram sua mãe ser levada por vários homens; o pai, Antonio Othon Pires Rolim, estava viajando. So- mente se reencontraram, mãe e filhos, meses depois em São Paulo. A prisão de Ri- ta, no Rio de Janeiro, foi mantida clandestina pelos militares que não a registraram nos autos de sua prisão.

4.3.2 Desamparo

Tensa, amarga e com uma profunda tristeza – depois de deixar os filhos com minha amiga Ruth Cartaxo – fui encapuzada e levada a um quartel do Exército brasi- leiro, onde (soube depois) funcionava o Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Rio de Janeiro. Enquanto permaneci naquele local, fui interrogada por diversas pessoas. Num desses interro- gatórios, fui mantida despida e de frente voltada para o ângulo das paredes, num dos cantos de uma sala. Cada vez que tentava mudar de posição ou virar o rosto para ver as pessoas que me mantinham naquela situação, recebia fortes empurrões, so- fria ameaças e levava pancadas. A ordem era de não os encarar, e responder ao in- terrogatório a que era submetida, olhando sempre para a parede. Em seguida, mos- traram várias fotografias de pessoas conhecidas que estavam machucadas, para que eu as identificasse. A sessão só foi encerrada depois de muitas horas de empurrões, e todo tipo de intimidação e sob a ameaça de que logo eu iria decidir reconhecer as pessoas das fotografias. Até que num final de tarde fui retirada da cela e, outra vez encapuzada, enfiada numa perua C-14. A escolta era composta por cinco ou seis po- liciais. A sensação era de total desamparo e muito medo, pelo que supunha me a- guardava. A cada vez que indagava sobre o motivo de prisão, eles respondiam que em São Paulo eu ficaria sabendo. (...)

4.3.3 Operação Bandeirante

O destino em São Paulo foi a Oban – Operação Bandeirante. Estávamos no início de junho de 1971. Na verdade, a Operação Bandeirante havia precedido a cri- ação do DOI-Codi de São Paulo e, embora em 1971 ali já funcionasse o DOI-Codi, costumava-se chamar o local de Oban. Logo que cheguei, fui entregue à equipe do

torturador que atendia pela alcunha de Jesus Cristo. (...) Logo no início, fui recebida e encaminhada para uma sala onde tudo repercutia um barulho terrível de pancada- ria, gritos e palavrões: “filha da puta”, “tem cara de santa, mas é comunista”, “terroris- ta”. Isto provocou em mim a sensação de uma casa despencando sobre minha cabe- ça, e de que a minha sobrevivência dependeria de como eu me protegesse dos tijo- los e das vigas de madeira que caíam. Isto se mantém até hoje em minha memória. Inclusive na memória da sensação física. (...)

Houve um dia em que minha roupa foi retirada bruscamente e introduzida na boca, enquanto os choques eram aplicados na vagina. Uma sensação de morte e gri- tos que repercutiam: “para, para” ordenava o capitão Rolim, chefe da equipe do dia, que bruscamente entrou na sala, suspendendo a sessão para em seguida me levar a uma suposta enfermaria onde me aplicaram uma injeção, apesar de toda a resistên- cia que consegui esboçar. (...) Aquele tempo durou quantos dias? A memória daque- le caos não registrou o tempo.

4.3.4 Um amigo preso

Minha saúde e meu estado físico estavam deteriorados. Um dia, durante uma acareação com um preso médico, Carlos Régis Bastos Rampazzo, este conseguiu que lhe permitissem me fazer um curativo.

Tanto ele quanto eu já havíamos sido submetidos a torturas, o que era fácil de se perceber pelo estado físico de ambos. Naquele momento não fomos tortura- dos juntos, talvez pela sua presença de espírito, ao chamar a atenção, como médi- co, para a erupção na minha perna de um eczema, que agravava o estado de aba- timento, em que eu me encontrava. Regis foi tão enfático em sua observação sobre o estado da minha perna, que os policiais não tiveram outra alternativa senão per- mitir que ele me examinasse. O curativo que ele fez na minha perna, mais que a importância do atendimento médico necessário, significou o oposto do que aquelas pessoas faziam acontecer. Na memória, reencontrar o Regis naquelas circunstân- cias, e termos dito que não nos conhecíamos, ficou para sempre como mais um ato de dignidade, de afirmação da vida.

A experiência de Rita, reconhecendo no militante preso, e também torturado, o médico, certamente possibilitou com que ambos recuperassem a dignidade afron- tada pela tortura, em uma situação de mútuo reconhecimento. Nesta aproximação, o

amparo pôde ser oferecido, pois mesmo desamparado, Régis teve assegurada por Rita sua vocação para cuidar, que a crueldade dos torturadores não conseguiu des- truir. Rita e Régis, presos e colocados frente a frente no campo da tortura, viveram momento singular e vital: de um lado, a violência da acareação, e de outro, o reco- nhecimento mútuo, que preservou, em ambos, o melhor do humano.

Inúmeros depoimentos de campos de tortura reconhecem na amizade o prin- cipal ingrediente para suportar a devastação imposta pelos torturadores. A amizade supõe a aproximação parcimoniosa e ao mesmo tempo generosa entre dois seres humanos, sem a exigência da exclusividade.

Caterina Koltai escreveu um ensaio sobre a amizade reunindo diferentes au- tores e analisou estas relações. Entre esses, destaco a referência a Sidney Stewart, um jovem combatente norte-americano da Guerra do Pacífico.

Preso pelo exército japonês, foi exposto a todas as atrocidades e humilhações dos campos de prisioneiros das Filipinas, Japão e Coreia. Único sobrevivente de seu campo, ao retornar aos Estados Unidos, escreveu Give us the Day tanto para homena- gear seus companheiros de sofrimento quanto para tentar en- tender como os seres humanos se esforçam em viver e sobre- viver em condições inumanas extremas, perguntando-se até onde um humano pode ir sem perder sua humanidade constitu- tiva. (...) Ao falar da sobrevivência em situações extremas, ele é taxativo ao dizer que só se pode fazer face a elas contando com a ajuda de um amigo. (...) Nos momentos de maior de- samparo, quando a pessoa sente que vai sucumbir à dor, basta uma mão ou um abraço para se sentir novamente humana. O amor tímido que existe entre os homens, ao qual damos o no- me de amizade, é necessário à sobrevivência.180

4.3.5 Equipes paramilitares

Quando o comando da Oban considerava que já obtivera tudo que podia ob- ter de uma presa ou de um preso, éramos enviados para o DEOPS – saíamos das

180 KOLTAI, C., Texto apresentado no VII Congresso Norte Nordeste de Psicologia, CONPSI, Salva-

mãos dos militares e das equipes paramilitares e éramos entregues à Polícia oficial- mente responsável pela Ordem Política e Social. Mas, ficava sempre a ameaça: caso viessem a descobrir que a pessoa omitira informações, ela retornaria para recomeçar todo aquele processo infernal.

No DEOPS, situado na praça General Osório, devia aguardar ser chamada para “fazer o cartório” – depoimento final que era encaminhado a um Tribunal de Guerra (...) requerendo o nosso enquadramento judicial na Lei de Segurança Nacio- nal, o que implicava, quase sempre, novos interrogatórios sob tortura, que precediam esse depoimento final. Importante registrar que, logo num dos primeiros dias de DE- OPS, ao ver o estado físico lamentável em que eu chegara, o delegado responsável pela condução do meu caso e dos demais presos envolvidos no mesmo processo comentou: “eles arrasam, deixam do jeito que ela está, e depois nos responsabilizam pelos estragos”. Havia naquela ocasião uma concorrência entre as duas instituições responsáveis pela captura, prisão, interrogatórios e torturas das pessoas militantes ou não, consideradas subversivas.

4.3.6 Meu irmão

O delegado Sérgio Paranhos Fleury – personagem que dispensa apresenta- ção ou adjetivo, interferiu junto ao delegado responsável pela formalização do pro- cesso, no sentido de me interrogar sobre uma pessoa da organização à qual perten- cia o meu irmão. Fleury descobrira, a partir do meu sobrenome Sipahi, escrito de formas diferentes pelos diversos policiais, que eu era irmã de Aytan de Miranda Si- pahi, que já se encontrava preso desde janeiro de 1970. Fiquei esperando a tarde toda que eles comprovassem se os da Oban tinham informações sobre meu paren- tesco com o Aytan. Ao ser perguntada, afirmei que eles sabiam que eu era sua irmã. A única equipe que me identificara como irmã fora a do Jesus Cristo, exatamente a que estava no dia em que o delegado Fleury me ameaçou de levar para interrogató- rio. Só voltei à cela às 22h00.

Foi também no DEOPS que, numa tarde de domingo (dia em que raramente havia torturas) fui levada ao quarto andar, onde estavam as salas de interrogatórios e a sala de tortura para ser interrogada por militares do Centro de Inteligência da Marinha – CENIMAR.

Paralelamente, era assistir diuturnamente outros presos e presas subirem pa- ra o quarto andar e descerem cada vez mais arrebentados. Noites povoadas de gri- tos. Ali também o tempo estava suspenso, a espera era interminável e o futuro de cada um sempre incerto.

4.3.7 Torre das Donzelas

Depois de uma longa espera, fiz o depoimento em cartório e fui transferida para o Recolhimento de Presos Tiradentes (o Presídio Tiradentes, na avenida de mesmo nome). Era um alívio. Enfim, estava sub judice. Saíra da condição de se- questrada mantida em cárcere clandestino, e passara a existir pública e oficialmente.

Isto colocava alguns importantes limites na ação dos órgãos de repressão. (...) As perdas tinham sido e continuavam sendo muitas, e as perspectivas eram sombrias. De qualquer modo, a morte prosseguia rondando, e os assassinatos de nossos companheiros e companheiras eram anunciados com versões mirabolantes pelos jornais, rádios e televisões, e confirmadas pelos nossos advogados ou visitas com detalhes sórdidos que os meios de comunicação ocultavam, ou sobre os quais sequer tinham informações mais precisas.

O local do Presídio Tiradentes onde as presas eram confinadas, era uma tor- re da antiga Casa de Detenção de São Paulo, construída no começo do século 20, e que fora destinada pelas autoridades carcerárias para a reclusão das presas políticas nos anos 1960 até 1972, quando o presídio foi desativado para o início das obras de construção da Estação Tiradentes do Metrô.

A Torre – como era conhecido o local que em seguida seria batizada pelos nossos companheiros presos de “A Torre das Donzelas” – tinha uma única porta. As celas eram precárias, não possuíam condições mínimas de higiene e salubridade: os banheiros eram equipados com fossas turcas; o espaço onde se improvisou uma co- zinha não apresentava condições materiais para a preparação de alimentos; o local destinado ao chamado “banho de sol”, para uma população carcerária de uma média de 30 mulheres, consistia num espaço de cerca de 25 metros quadrados. Permaneci presa na Torre por onze meses, quando tive a prisão preventiva relaxada.

Enquanto estive presa, a guarda dos meus dois filhos ficou com os tios, sem que eu tivesse condições de avaliar por quanto tempo esse tipo de situação se manteria. Impotência absoluta. Questionamento permanente. Como tudo aquilo se refletiria neles? Deixaria muitas marcas? (...) Numa tarde de visita, no pátio do Presídio Tiradentes, Paulo – meu filho mais velho, então com sete anos –, em pran- tos me perguntou:

“Rita, você vai ficar pra sempre presa, sua prisão é perpétua?”.

ele só chorava... claramente chorava para além do que verbalizara na pergunta. O que se passava exatamente em sua emoção, quais todos os significados que em- prestava à expressão “prisão perpétua” – que ouvira nos noticiários de TV –, nunca descobri. Nunca saberei.

Julgada no dia 25 de abril de 1974 fui condenada a oito meses de reclusão; já estivera presa por onze meses – ou seja, três meses a mais.

Rita transitou pelas celas da repressão em sobressalto, todo o tempo, pelas consequências de sua prisão em relação aos filhos, e sabe que até hoje não sabe exatamente o que pode ter permanecido neles, como sequela, desta experiência, que foi sua, que foi deles. Era uma fase da vida em que o inominável e indecifrável permanece pulsando na cabeça infantil, como um imã que atrai fantasmas sem con- tornos. O encontro com o irmão, Aytan Sipahi, também preso, foi uma experiência incomum e desconcertante, da qual a repressão certamente pretendeu tirar o máxi- mo de vantagem. Os torturadores tentaram constranger e ferir, a militante, a mãe, a irmã, a companheira, a amiga. Mas não conseguiram desconstruir seus ideais, e nem alcançaram plenamente seus objetivos.

4.4 Aldo Silva Arantes e Haroldo Borges Rodrigues Lima: São Paulo, 1976