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3. A arquitetura da exceção

3.2 Desdobramentos da exceção

O Estado de Exceção no Brasil foi construído sobre os alicerces do que os di- tadores consideraram ser sua lei, sua Constituição, já que a primeira declaração pú- blica sobre a nova forma de organização do poder foi a de que a Constituição e a nova forma de organização do poder se autolegitimavam. Ao Congresso, por essên- cia a casa legislativa de um Estado de Direito, caberia apenas ser informado.

Os golpistas puseram sobre suas próprias cabeças a coroa do poder. Não sentiram necessidade de recebê-la de outras mãos. 142

141 A revogação do AI-5 ocorreu no final do governo de Ernesto Geisel, 1974-1978, pela Emenda

Constitucional nº. 11, de dezembro de 1978. A partir de 1º de janeiro de 1979, a face mais ostensiva das leis da ditadura foi revogada, embora vários de seus dispositivos já tivessem sido embutidos na Constituição de 1969. (CALICCHIO, V., Atos Institucionais).

142 Sobre os objetivos do golpe de 1964, Alípio Freire diz: “Temos, antes de tudo, de entender que o

golpe, e o regime de terror e superexploração dos trabalhadores e do povo que implantou, significou uma ruptura institucional e uma fratura histórica, desencadeadas pelo grande capital nacional e inter- nacional e seus aliados, contra um programa de reformas de interesse popular. Estas eram as cha- madas Reformas de Base, que unificavam, naquele momento, um conjunto de projetos em torno de um desenvolvimento nacional independente, e fundado na distribuição de renda. Os golpistas, ao contrário, representavam projetos de desenvolvimento fundados na concentração de renda, subordi- nados aos interesses do grande capital internacional e à política dos Estados Unidos. O ponto núme- ro um desse segundo programa era a derrubada do Governo do presidente João Goulart – o Jango. Uma pesquisa feita pelo Ibope em março de 1964, às vésperas do golpe, mostrou que a maioria es- magadora dos brasileiros apoiava as reformas que o presidente Jango propunha, e votariam pela reeleição do presidente, caso isto fosse possível. Reverter esse quadro, portanto, exigia não apenas dar o golpe, como também implantar um regime fundado na violência. Ou seja, a violência não foi algo acidental ou que em alguns momentos foi praticada nos “porões do regime”, fugindo ao controle dos militares e civis que dirigiam o país. Era parte constitutiva e inseparável do programa dos golpis- tas. O que vimos depois foi que, tendo como objetivo um avanço na concentração de riquezas, na ampliação dos seus lucros e poder, o Estado, controlado pelo grande capital e seus aliados, utilizará impunemente todos os meios de repressão e violência contra a classe trabalhadora, o povo, seus

A conspiração civil-militar tramada, continha todos os ingredientes da violên- cia: primeiro na letra, depois na prática. A passagem à prática do que fora concebido como lei, não previu, ou não se importou, com a forma de sua execução.

Ao suspender direitos políticos por dez anos, deliberar cassar direitos civis conquistados, decidir demitir e aposentar brasileiros de seus trabalhos dos quais dependiam para viver, a exceção foi criando como regra a eliminação política e civil dos brasileiros que não apoiavam o golpe. Primeiro ouviram os civis que os ajuda- ram a escrever os textos da exceção.

A estes brasileiros civis que haviam aderido ao golpe, coube o papel de auxi- liares dos militares em cargos de vice-presidente, ministros civis ou de técnicos su- balternos, do qual foram posteriormente destituídos. Assim, quando o general Costa e Silva foi afastado por motivos de saúde em 9 de setembro de 1969, seu vice, o mineiro Pedro Aleixo, que deveria assumir o cargo vacante, foi sumariamente desti- tuído da função, em 14 de outubro, por força do AI-16.

Decididos a sufocar a palavra ainda circulante em espaços legislativos ame- drontados, os ditadores decidiram que apenas dois partidos poderiam existir – ARE- NA e MDB. Esta arquitetura do Legislativo, que permaneceu até os últimos dias do regime, revelou plenamente o resultado deste acordo da exceção, exercido durante 15 anos e meio, em 1979: ao discutir a lei da Anistia, os dois partidos sucumbiram às exigências dos militares.

À cassação e expulsão de professores e de cientistas políticos das universi- dades e de institutos de pesquisa públicos e/ou federais, assim como particulares,e às invasões de universidades como a UFMG e a UnB com o AI-5, em 1968, somou- se o Decreto Lei nº 477, que, entre as punições previstas, proíbe o aluno desligado de “se matricular em qualquer outro estabelecimento de ensino pelo prazo de três anos e, se for bolsista, perde o benefício por cinco anos”.143

O cerceamento da liberdade nos campi universitários se manteve durante os anos seguintes: em 22/9/1977, durante a invasão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob o comando do coronel Erasmo Dias, bombas foram lançadas

representantes, os que falavam e agiam em nome dos interesses do conjunto, seus movimentos e organizações”. (Alípio Freire, entrevista ao Núcleo Piratininga de Comunicação, São Paulo, 22/6/2011, sobre a abertura dos arquivos e a criação da Comissão da Verdade).

dentro do campus universitário, à rua Monte Alegre, no bairro de Perdizes, ferindo e queimando cinco estudantes.

Todos esses atos de violência foram medidas extremas para extirpar no país a possibilidade de elaboração teórica e científica, através da tentativa de intimidação e de cerceamento das atividades dos transmissores e formadores de opinião que, por vocação, são papéis e funções exercidas pelo professor e pelo pesquisador.

Durante todo o tempo em que vigorou o regime de exceção, correu desmedi- damente sob seus alicerces o rio da tortura. Sobre a tortura, os legisladores não co- locaram por escrito a autorização para torturar. Estariam desrespeitando as Conven- ções de Genebra, conforme diziam aos próprios presos. Não ousaram escrever, mas a exerceram durante todo o tempo.

Militares de diferentes patentes e policiais civis, agentes públicos no exer- cício de sua função pública, incorporaram o papel de torturador. Embora fosse uma exigência prática e uma política dos ditadores, tentou-se a qualquer custo mantê-las clandestinas em relação ao público, o que paulatinamente tornou-se impossível pelo testemunho dos próprios presos aos seus familiares e advoga- dos, os primeiros a visitá-los.

Paralelamente à tortura dentro dos prédios públicos federais, estaduais e mu- nicipais, a tortura se estruturou como prática das organizações paramilitares, entre as quais o Comando de Caça aos Comunistas – o CCC, que pichava os muros das cidades com a frase: Já matou seu comunista hoje? Estes comandos paramilitares participavam também do sequestro dos opositores.

A repressão policial e militar teve o patrocínio de empresários que acompa- nharam diretamente sessões de tortura e financiavam equipamentos para torturar; um dos casos que se tornou mais conhecido, a partir de 1971, é o do empresário Hennig Boilesen, do grupo Ultragás.

Nas sessões de tortura, os agentes da repressão ostentaram, sem pudor, e- quipamentos adquiridos de exércitos estrangeiros, incorporaram ensinamentos so- bre como matar sem deixar vestígios, oriundos mais proximamente das práticas na- zistas durante a Segunda Guerra Mundial e assumidamente perpetrados pelos fran- ceses na guerra da Argélia, entre 1955-1957.

Os ditadores brasileiros convidaram militares franceses, como o general Aus- saresses para ensinar novas modalidades de torturar e provavelmente de fazer de-

saparecer os corpos de militantes assassinados. Orgulharam-se também os tortura- dores de informar aos presos que o Brasil já exportava know-how em tortura.

A Doutrina de Segurança Nacional aniquilou o Estado de Direito. O principal inimigo para os ditadores estava dentro do Brasil, era um inimigo interno. A violên- cia não vacilou em prender o próprio concidadão e legislar sem limites contra os direitos que lhes eram inerentes. As sucessivas leis, atos, decretos se voltaram contra os próprios brasileiros. A ditadura tentou o impossível: calar o povo de uma nação. A truculência no extermínio dos opositores de diferentes formas desarticu- lou, por um tempo, os resistentes.

A prisão sem mandato e sem hora para acontecer, a extinção do habeas cor-

pus, o sequestro em plena rua ou dentro da própria casa; a prisão de militantes e de

seus filhos, tornaram-se prática cotidiana dos agentes da repressão.

O número de presos políticos com seus filhos, que inicialmente se pensava serem poucos, aumenta a cada ano com o relato de novos casos que vêm à tona. Por isso tenho a convicção de que a ditadura deixou territórios ainda velados, como o das prisões de militantes com seus filhos, principalmente porque estas situações nunca eram registradas oficialmente nos depoimentos.

Em relação à prisão de filhos de militantes clandestinos juntamente com os pais, como a que vivi pessoalmente, entre dezembro de 1968 e maio de 1969, presa com meus filhos André e Priscila, então com três anos e meio e dois anos e meio de idade, me impulsionaram a escrever sobre militantes políticos que viveram esta ex- periência de vida, e que deu origem ao ensaio “Dor e Desamparo – filhos e pais, 40 anos depois”, publicado em 2008 na revista “Psicologia Clínica” da PUC/RJ.

Entre as histórias a que me refiro, uma das mais pungentes é a de Tessa La- cerda, que nasceu oito meses após o assassinato de seu pai, Gildo Lacerda. Sua mãe Mariluce teve que lutar pelo reconhecimento de sua paternidade durante 18 anos. Tessa, durante esses anos, ficou imaginando seu pai que nunca conheceria como “um pai enorme, gigantesco, um ideal de pai”.

Somente muito mais tarde, já quase adolescente, lhe foi contado que o seu pai que estava morto era também um desaparecido político. Lidar com a dor da ma- terialidade da morte do pai, durante tantos anos, foi eclipsada pela dor avassaladora

e indizível da imaterialidade da morte. Essa é dor que desde então suporta, seme- lhante à dor dos filhos de pais mortos e desaparecidos.144

Após o AI-5, em dezembro de 1968, sempre que os advogados apresentavam um pedido de habeas corpus para pessoas consideradas desaparecidas políticas

a resposta era invariavelmente: encontra-se foragido. O termo desaparecido é usado para definir a condição de pessoas so- bre quem as autoridades governamentais jamais assumiram ou divulgaram a prisão e morte, apesar de terem sido seqües- tradas, torturadas e assassinadas pelos órgãos de repressão. Foram consideradas foragidas pelo Estado até a Lei 9.140, em 4 de dezembro de 1995. O termo morto oficial define a si- tuação de pessoas que foram presas, cuja morte foi reconhe- cida publicamente pelos órgãos repressivos. Muitas vezes, porém, tem sido necessário localizar os restos mortais enter- rados com nomes falsos, um ato de ocultação de cadáver, pois as autoridades, apesar de saberem a verdadeira identi- dade dos mortos, como comprovam vários documentos locali- zados nos arquivos do Departamento Estadual de Ordem Po- lítica e Social – DEOPS – de vários estados, os corpos eram enterrados com nomes falsos.145

Embora o regime civil-militar tenha elaborado leis para perpetrar a desmonta- gem do Estado de Direito e a legalização da perseguição política, a legitimidade des- tes procedimentos jamais existiu. O conjunto dos Atos Institucionais compôs um re- gime de exceção, onde o que era permitido a uns, era igualmente proibido ao outro. O paradoxo da exceção é que ela encerra, em si, seu contraditório.

As providências que tomaram de incorporar os atos de exceção às Constitui- ções que organizaram em 1967 e 1969 até hoje repercutem no processo de rede- mocratização do país, e, entre essas exceções, se sobressai a usurpação do direito à sepultura aos mortos que matou.

144 ARANTES, M. A. A. C., “Dor e Desamparo – filhos e pais, 40 anos depois”, In: “ Psicologia Clínica”,

v. 20.2, p. 75

145 COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS, IEVE, Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil, p. 22.

A autorização dos decretos secretos por Médici, em 11 de novembro de 1971, deixou seus filhotes e ainda hoje vemos essa esdrúxula medida permanecer nas casas legislativas.

Em 2004, uma matéria da revista IstoÉ revelou trechos de um documento que confirma a intenção deliberada de matar opositores, a partir de uma reunião entre Ernesto e Orlando Geisel, Milton Tavares, Antônio Bandeira e o presidente da Re- pública, Emilio Garrastazu Médici.

Em maio de 1973, eles redefiniram as diretrizes da repressão política, cujo principal objetivo era “[...] a utilização de todos os meios para eliminar, sem deixar vestígios, as guerrilhas rurais e urbanas, de qualquer jeito e a qualquer preço” conforme trecho divulgado da ata. Foram constituídos “[...] dois grupos ultrasse- cretos – um no CIE (Centro de Informação do Exército) de Bra- sília e outro no DOI-Codi de São Paulo –, formados por menos de dez pessoas. Eles estavam autorizados a assassinar e su- mir com os corpos e foram responsáveis pelo desaparecimento de cerca de 80 prisioneiros políticos entre 1973 e 1975.146