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3. A arquitetura da exceção

3.3 Campanha pela Anistia: fragmentos

A anistia uniu em único abraço todos os que estavam contra os ditadores; sa- bíamos com clareza meridiana quem era o inimigo principal.

A ternura combativa que reuniu a militância dos CBAs não foi menos aguerri- da na elaboração das propostas políticas que se empenhavam igualmente na con- quista da anistia para todos os atingidos pela repressão, apagando temporariamente as divergências, as diferenças políticas e as múltiplas concepções de enfrentamento da ditadura civil-militar que antes se multiplicara em organizações distintas.

Instalado em 12 de maio de 1978, o CBA/SP elaborou uma “Carta de Princí- pios e Programa Mínimo de Ação”, que foi um instrumento político para subsidiar discussões que se multiplicavam a qualquer tempo em todo o país e também no in- terior do Estado de São Paulo, que chegou a organizar quinze comitês em diferentes

146 COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS, IEVE, Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil, p. 22.

cidades.147 Os 4 Princípios e os 7 Objetivos imediatos que compunham o Programa

Mínimo de Ação148 foram apresentados em um folheto distribuído amplamente, afir-

mando: “a luta pela anistia se inscreve no quadro geral das demais lutas do povo brasileiro pelas liberdades democráticas e pela total libertação econômica, social, política e cultural de toda a sociedade brasileira; e, ao mesmo tempo, proclama a especificidade da luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita a todos os presos e per- seguidos políticos, como necessária e imprescindível”.149

Em novembro de 1978, ainda em plena ditadura civil-militar, foi instalado o Primeiro Congresso Brasileiro pela Anistia. Preparado em grupos de trabalho que se reuniram nas salas do Instituto Sedes Sapientiae, com o apoio de sua diretora, Ma- dre Cristina Sodré Dória, foi aberto na noite de 2 de novembro, no TUCA, Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com a autorização da reitora, a pro- fessora Nadir Gouvea Kfouri, que um ano antes havia enfrentado com altivez a inva- são do campus da universidade, comandada pelo coronel Erasmo Dias, então secre- tário da Segurança do Estado de São Paulo.

Os debates que antecederam o I Congresso de Anistia e as discussões que a partir de então se multiplicaram, propiciaram a ampliação da campanha, que rece- beu solidariedade internacional estimulada pelos exilados brasileiros no exterior. O encerramento do congresso, no dia 5 de novembro, foi realizado no Teatro Ruth Es- cobar, na rua dos Ingleses.

Em 1979, foi criada uma Comissão Mista para elaborar um projeto do gover- no, com parlamentares das duas casas legislativas, e a presidência foi entregue a um senador da ARENA, Teotônio Vilela.

147 Além do CBA/SP, foram organizados 15 CBAs no interior do estado, em São José dos Campos,

Santos, Campinas, Piracicaba, Limeira, Sorocaba, Ribeirão Preto, Bauru, ABC, Assis, Osasco, Itapira, Jacareí, Mogi das Cruzes e Guaratinguetá. Havia CBAs em todos os estados do Brasil, nas capitais e também em cidades do interior, e presume-se que tenham sido criados mais de 50 comitês, algumas vezes se vinculando a sociedades e centros de defesa de direitos humanos já existentes.

148 Os quatro princípios expressos no Programa eram: 1) Anistia imediatamente; 2) Liberdade de pa-

lavra, de expressão, de manifestação; 3) Liberdade de associação e de reunião, autonomia sindical, direito de greve; 4) Liberdade de atuação política e de organização partidária. O Programa Mínimo de Ação propunha: 1) Fim radical e absoluto da tortura; 2) Libertação imediata de todos os presos políti- cos e volta dos cassados, aposentados, banidos, exilados e perseguidos políticos; 3) Elucidação da situação dos desaparecidos; 4) Reconquista do habeas corpus; 5) Fim do tratamento arbitrário e de- sumano contra os presos políticos; 6) Revogação da Lei de Segurança Nacional e fim da repressão e das normas punitivas contra a atividade política; 7) Apoio às lutas pelas liberdades democráticas.

O Documentário, organizado sobre os trabalhos da Comissão Mista sobre A- nistia, registra a realização de oito reuniões, entre junho e julho de 1979, e anexa os documentos examinados pela comissão, aproximadamente 330 páginas.150 A Co- missão ouviu, leu e conheceu amplamente as reivindicações dos brasileiros, ao lon- go do tempo que lhe foi dado pelos militares. Seu presidente teve uma conduta sin- gular dentro de um país constrangido por um longo estado de exceção. Teotônio, como passamos a chamá-lo simplesmente, assumiu uma posição declarada em fa- vor da anistia ampla geral e irrestrita. Escolheu seus primeiros interlocutores em campo: os presos políticos.

No Prefácio que escreveu para o Documentário, o senador relata os contatos feitos para a elaboração da proposta da Comissão: “Percorri o país de presídio em presídio, ouvi os clamores dos parentes e familiares dos desaparecidos, comuniquei- me com os exilados, conversei com o maior número possível de pessoas atingidas por atos de força do arbítrio, recebi documentos, orientações, esclarecimentos, al- ternativas de como proceder nas pesquisas que enriquecessem os objetivos da Co- missão, entendi-me com autoridades várias, senti, enfim, a nação. A partir daí, de- pois de trinta dias de intensa movimentação, iniciamos os trabalhos da Comis- são”.151 No dia 10/7/1979 declarou ao jornal Diário Popular: “Estamos preocupados com as consequências reais da anistia. O projeto do governo é discriminatório e tem como primeira preocupação resguardar os interesses oficiais”.

Negociações palacianas levaram à aprovação da Lei nº 6.683, que propôs uma Anistia parcial, restrita e, sobretudo, trouxe uma figura obscura – os crimes co- nexos – que pela ambiguidade da redação da Lei, já antecipada por Teotônio Vilela, acabou acobertando crimes comuns, como a tortura e os assassinatos, satisfazendo as exigências repassadas aos congressistas da ARENA, na comissão e no plenário, de perdão aos militares e seus colaboradores civis. Preservaram os militares de qualquer julgamento de seus 15 anos e meio de crimes de tortura e de sua respon- sabilidade pelas mortes e o desaparecimento forçado de militantes políticos.

150 Esses documentos eram textos e cartas, enviados pelos presos políticos de todo o Brasil, pelos

familiares de mortos e desaparecidos, pelas entidades de anistia, comitês de anistia e movimento feminino pela anistia, pelas entidades nacionais, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB; Associação Brasileira de Imprensa – ABI; Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência – SBPC; Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB; Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ; Associação de Servidores Públicos do Brasil, e também cartas de professores universitários punidos, de cientistas do Instituto Osvaldo Cruz, e de radialistas demitidos da Rádio Nacional.

A proposta da Comissão Mista e as emendas feitas ao projeto dos militares sequer foram examinadas, ficou exclusivamente a proposta oficial e o resultado to- dos sabemos: a anistia não foi irrestrita, nem ampla e nem geral. A Lei nº 6.683 trou- xe para aprovação os chamados crimes conexos e, com este funesto acerto, insis- tem em dizer, até hoje, que os militares e os civis que praticaram a tortura, os assas- sinatos, que mandaram desaparecer com os corpos dos que mataram, que prende- ram crianças, mulheres grávidas e impuseram a Exceção como Regra, estão livres de qualquer responsabilização pessoal, civil e criminal pelos crimes que sabidamen- te cometeram. A vergasta prevaleceu sobre a oliveira!

Os movimentos de anistia continuaram sua proposta de luta. Mantiveram reu- niões, encontros e debates, agora denunciando os limites da Anistia e, ao mesmo tempo, organizando uma pauta para receber os presos libertados, os banidos e exi- lados que enfim podiam voltar. Acompanharam a reintegração dos cassados e demi- tidos e continuaram denunciando as torturas. Principalmente permaneceram as mesmas perguntas de antes: Onde estão os desaparecidos? Em que condições morreram? O julgamento e a punição dos torturadores sempre foram exigências dos comitês de anistia, e permaneceram sendo.

A Convocatória elaborada pelos Movimentos de Anistia para o II Congresso Nacional pela Anistia, realizado em Salvador, nos dias 15,16 e 17 de novembro de 1979, foi explícita nas suas intenções:

estipulada sob um regime militar que sempre se caracterizou como antinacional, antipopular e antidemocrático, a Lei apro- vada resultou em cometer mais e maiores injustiças. Não es- vaziou os cárceres políticos, não facilitou a reintegração pro- fissional dos servidores punidos; não abriu os quartéis para receber os militares cassados. O regime militar desfigurou, pois, e até onde pôde, o instituto universal da Anistia. E assim agindo desafia a fibra do movimento e nos empurra para prosseguir a luta152.

152 ARANTES, M. A. A. C., “O Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo (CBA-SP) memória e frag-

Sob a consigna A Luta Continua, o resultado do II Congresso, que contou com expressiva adesão de numerosos anistiados políticos, lideranças civis, políticos, intelectuais, professores, artistas, estudantes, toda a militância dos movimentos de Anistia, fez uma denúncia vigorosa dos grupos paramilitares em atividade no país e propôs uma campanha permanente contra a Lei de Segurança Nacional. Durante o Congresso foi apoiada a impetração de habeas corpus para 19 presos políticos que não foram beneficiados pela Anistia.

O CBA/SP promoveu a recepção dos exilados e banidos que retornaram do exterior. Nos aeroportos internacionais de Recife, do Rio de Janeiro e de São Paulo, os exilados foram recebidos pelos seus familiares, pelos amigos e pelos comitês de Anistia que organizaram as recepções, com faixas, cartazes com suas fotos, para uma recepção emocionada, manifestação à qual a população foi aderindo.

A partir de 1979, foram iniciados os traslados dos restos mortais dos militan- tes assassinados pela ditadura, para entregá-los aos seus familiares em suas cida- des natais. Após 1980, além de participação em colóquios internacionais sobre de- saparecidos políticos, o CBA/SP acompanhou processos de reconstituição de identi- dade de assassinados políticos. O primeiro reassentamento de identidade foi o de Luiz Eurico Tejera Lisboa, cujo corpo fora localizado em 2/9/1972, após inúmeras buscas, por sua viúva Suzana Lisboa, enterrado no Cemitério de Perus, em São Paulo, com o nome de Nelson Bueno.

A busca pelos desaparecidos e pelas circunstâncias de sua morte permanece em vigor, após mais de 30 anos passados da Anistia de 1979. A responsabilização dos torturadores, anistiados pela interpretação distorcida da lei, continua sustentada pelo Supremo Tribunal Federal, conforme decisão de 2010.

A anistia ao crime de tortura, interpretado como crime conexo, permanece um embate continuado entre brasileiros e o Poder Judiciário. O jurista Hélio Bicudo, que fundou e é presidente desde 2003 da Fundação Interamericana de Defesa dos Direi- tos Humanos, durante o evento “O profissional diante da situação de tortura”, orga- nizado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, em 8/4/2005, com apoio do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo, apresentou uma análise es- clarecedora e crítica desta interpretação. Reproduzo, na íntegra, a fala de Helio Bi- cudo, pela lucidez da argumentação.

O que me parece desconcertante é que, se lermos com a- tenção a Lei de Anistia, nós iremos verificar que em nenhum instante ela permite essa esdrúxula interpretação, da qual decorre a impunidade que, podemos dizer, desonra o Brasil como Estado e nação. O grande argumento para a conside- ração de que se trata de uma lei de duas mãos é a alusão feita no artigo primeiro a crimes políticos ou conexos com es- tes. Os crimes cometidos pelos torturadores seriam conexos aos praticados pelas vítimas. É, realmente, ignorar o que se- jam crimes conexos em direito penal. Em delitos praticados pelo mesmo agente pode acontecer que exista entre eles um liame, um nexo; e ele pode praticar um crime para ocultar outro crime ou para tirar proveito do primeiro crime que ele praticou. Nesses casos não temos delitos independentes, pois estão ligados por um nexo subjetivo. A conexão, dizem os autores, os penalistas, pode ser teleológica ou ideológica, quando um crime é praticado para assegurar a execução de outro. Por exemplo, mata-se para roubar. O crime meio é o homicídio e o crime fim é o roubo. Os dois crimes estão liga- dos pelo laço de causa e efeito. Existe um segundo tipo de conexão, consequencial; quando um crime é cometido para assegurar a ocultação, a impunidade ou a vantagem de ou- tro. Por exemplo, incendeia-se uma casa para impedir que um crime de furto, nela praticado, seja apurado.E tem, ainda, um outro tipo de conexão, a conexão casual; quando um crime é cometido quando da prática do outro. Por exemplo, a subtração de joias da vítima estuprada. A conexão não se re- fere, pois, à diversidade de autores, mas de delitos cometi- dos pelos mesmos agentes. Quer dizer, vários delitos podem ser praticados por duas pessoas que estão de acordo em praticar aquele delito, mas o delito é o mesmo, e as pessoas são as mesmas. Então, é por isso que existe o que nós chamamos de conexão. Daí ser claro que a tortura cometida contra um paciente não pode ser considerada conexa ao de- lito político por este, eventualmente, cometido. Quer dizer, a tortura não é uma continuidade do ato praticado pelo pacien-

te da tortura; são fatos completamente independentes um do outro, exatamente porque se trata de agentes diferentes atu- ando em campos diversos. Assim, quando o parágrafo pri- meiro do artigo primeiro da lei de Anistia fala em crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou pra- ticados por motivação política, refere-se justamente àqueles que praticaram estes crimes. E os que torturaram e mataram não participaram dos crimes políticos ou cometidos por moti- vação política. Eu acho que isto é claro.153

PARTE II