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4. Presos políticos e resistentes: testemunhos

4.2 Alípio Raymundo Vianna Freire: São Paulo, agosto de 1969

4.2.3 Dia 3 de setembro: torturados juntos

Pela manhã, deixaram-me na cela, embora alguns companheiros tenham sido levados para interrogatórios – entre os quais Vicente Roig.(...) Por volta das 21h00, fo- ram me buscar novamente na cela. Levaram também Misael e Carlos Takaoka. Serí- amos torturados juntos. (...) Neste salão nos despiram (nas torturas estávamos sempre nus) e ali ficaram nossas roupas quando fomos empurrados através de uma porta para um segundo ambiente, onde seríamos torturados. Nesta ocasião, todo o arsenal utili- zado das vezes anteriores foi posto em ação contra os três. Revezavam-nos nos paus- de-arara, no magneto, etc. Naquela noite, Takaoka – sem óculos – tinha os olhos e pálpebras muito inchados, e seus olhos eram duas frestas muito vermelhas, como se fossem coágulos de sangue. Cheguei a imaginar que os olhos do meu amigo houves- sem sido vazados. O mais perverso neste método de tortura coletiva era o fato de os torturadores transferirem para nossas mãos o poder de sevícia, vida e morte sobre os demais companheiros: uma chantagem que consistia em interrogar um de nós en-

176 “Ali, na Oban, encontrei meus amigos e camaradas de militância na Ala Vermelha do Partido Comu-

nista do Brasil (PCdoB-AV): Cid Barbosa Lima Junior, Misael Pereira dos Santos, Renato de Carvalho Tapajós, Vicente Eduardo Gómez Roig e um jovem (por volta de 19 anos) que ainda não conhecia e que se chamava Ricardo de Jesus Cochiglia (ou Crochiglia – não tenho certeza do seu último nome). Todos haviam sido torturados e particularmente Misael, Renato e Vicente estavam em condições deplo- ráveis.(...) A porta da cela era uma grade de alto a baixo, e a parede onde se abria formava, à direita de quem olhava de dentro, um ângulo reto com outra parede, onde uma porta-grade idêntica fechava uma segunda cela, bem menor que a nossa. Nela, estavam meu amigo e camarada de militância Carlos Yoshikazu Takaoka (em estado calamitoso) e uma meia dúzia de jovens com os quais não tivera qual- quer contato anterior, e cujos nomes descobri nos dias subsequentes: Celso Frateschi (17 anos), Durval de Lara Filho (um jovem de Itapetininga de uns 20 anos), Paulo Frateschi (18 para 19 anos), William João Bittar (cerca de 19 anos)”. (Freire, A., Relatório de Prisão, p.4-5).

quanto o(s) outro(s) era(m) supliciado(s). Caso o que estava sendo torturado morres- se, os culpados seriam os outros dois, por não haverem falado – conforme repetiam insistentemente os Guimarães. Embora tenhamos sido conduzidos com as máscaras de napa até a sala de torturas, durante esta sessão fomos supliciados sem máscara ou capuz: não bastava sentirmos o que nos acontecia, era preciso assistir de perto, ver- mos claramente o que faziam com os nossos camaradas.

Depois de muitas horas, a sessão foi interrompida bruscamente por um Gui- marães que entrou aos berros e acompanhado de um auxiliar, mandando pararem com aquilo. Durante alguns minutos (que pareciam horas) instalou-se uma situação patética: todos os Guimarães abandonaram a sala e ficamos sozinhos nas posições em que estávamos sendo torturados – Misael continuou pendurado no pau-de-arara, enquanto Takaoka e eu permanecíamos amarrados em cadeiras, sentados com o tó- rax encostado no espaldar e os pulsos atados por cordas aos tornozelos. Foi nesta posição que momentos antes haviam feito sulcos nas minhas costas, com um bastão de metal muito fino e pontiagudo, e em seguida esfregado uma estopa com alguma substância cáustica sobre os arranhões, provocando um inchaço que durou algumas semanas. Agora, os Guimarães haviam desaparecido e nós estávamos ali congela- dos nas posições anteriores.

A cena só se reanimou quando Misael foi retirado do pau-de-arara e conduzi- do para o salão onde deixáramos as roupas. Ali – descobriria mais tarde – cada um de nós deveria prestar um depoimento. O fato é que a espera foi longa – ou assim pareceu. O segundo a ser levado foi o Takaoka.

Permaneci sozinho na sala de torturas, até que entraram dois Guimarães. Um, relativamente baixo, moreno, barba cerrada e mal feita, entroncado, ventre pro- eminente, de pronunciada calvície, trajando calça jeans e uma camiseta de jersey azul-marinho. Aparentava uns quarenta anos e tinha um olhar de roedor. O outro descendia de orientais (provavelmente de japoneses). Embora não fosse alto, era um tipo longilíneo, de pele muito clara e pálida, imberbe, cabelos e olhos negros. Traja- va-se todo de preto, botas de verniz, de cano curto (“botinhas”), bico fino e salto “car- rapeta”; calça de veludo cotelê; camisa de gola olímpica, e uma jaqueta curta de cou- ro. Parecia muito jovem, por volta de vinte anos. Desamarraram-me sem estardalha- ço, fizeram-me sentar em posição normal na mesma cadeira, amarrando-me em se- guida os pulsos para trás, e cada um dos tornozelos na lateral de cada uma das per- nas da frente da cadeira, de modo que permanecesse de pernas abertas, com pênis e testículos expostos. Amordaçaram-me com uma tira estreita de pano. Depois, pu- seram-se de frente para mim. Sorriam estranhamente. Foi quando o moreno passou

o braço sobre os ombros do oriental, trazendo-o para junto de si, arrastando-o deli- cadamente até onde eu estava e fazendo-o tocar meu pênis. Abraçavam-se, beija- vam-se e se esfregavam com alguma volúpia. Comecei a gritar guturalmente e a es- pernear (apesar das pernas amarradas), até que veio um terceiro Guimarães que, aos gritos, mandou que eles parassem, que a sessão de tortura já havia terminado, retirando-os da sala e desamarrando minha mordaça. (...)

Por fim, chegou a minha vez de ser levado para o salão.

4.2.4 Dia 5 de setembro: tortura coletiva, um dia após o sequestro do embaixa-