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2. A prioridade sul-americana 42


2.2. Caracas, o polo democrático 50

2.2.1 Antecedentes 51

Do lado venezuelano, a abertura política em curso no Brasil tinha um significado especial. Enquanto regimes militares proliferaram em toda a América do Sul nas décadas de 60 e 70, a Venezuela manteve-se sob um mesmo marco democrático desde a queda da ditadura de Marcos Pérez Jiménez, em 1958, e o subsequente Pacto de Punto Fijo, o qual criou um sistema político em que se revezavam no poder os social-democratas da Acción Democrática (AD) e os democrata-cristãos do Comité de Organización Política Electoral Independiente (Copei); a máquina sob a hegemonia das oligarquias manteve-se intocada por praticamente três décadas, azeitada pelos recursos colossais da indústria do petróleo (Ver VILLA, 2000; REY, 1980). Dentro dessa configuração do poder, a política externa desempenhava um papel instrumental na manutenção da ordem interna: temeroso de quarteladas e conspirações palacianas, o primeiro presidente após a restauração democrática, Rômulo Betancourt, cunhou uma doutrina diplomática que previa relações somente de governos oriundos de eleições livres. Caracas, portanto, recusava-se a manter laços com regimes de força na América Latina – fossem de esquerda, como em Cuba, ou de direita, como no Cone Sul –, política que, internamente, reforçava a legitimidade de sua própria democracia (ver CERVO, 2001)22. Após







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Informações ao Sr. Presidente. Secreto. 14 agosto de 1979. AMRE

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Cada vez mais isolada na América do Sul, a Venezuela voltou-se ao Caribe e, principalmente, aos EUA, maior comprador de seu petróleo

o golpe de 1964 contra João Goulart, a Venezuela invocou a doutrina Betancourt para romper com o Brasil do marechal Castelo Branco.

A marca inicial das relações entre a ditadura brasileira e a democracia venezuelana, portanto, foi a da frieza, quando não a da tensão bilateral, e essa animosidade persistiu ao longo dos anos 70. O Itamaraty tomou nota, por exemplo, da irritação do presidente Rafael Caldera (1969-1974) quando, em 1971, o americano Richard Nixon fez o famoso brinde ao general Médici dizendo “Para onde for o Brasil, irá toda a América Latina”. Caldera disse publicamente que “discordava” de Nixon e “recusava qualquer hegemonia” na América do Sul23. A diplomacia brasileira atribuía esse rechaço a “setores internos venezuelanos ligados ao modelo de comércio voltado aos EUA” e a “camadas políticas venezuelanas hostis ao Brasil, influenciadas há longo tempo por conhecidos temores do suposto expansionismo brasileiro” 24.

Naquele momento, essa frieza com Caracas corria em paralelo a uma disputa silenciosa com a Argentina pela influência na América do Sul. Com a formação do Pacto Andino, do qual a Venezuela era o país com maior peso político e econômico, o Brasil passou a temer uma associação de Buenos Aires ao bloco no norte do subemisfério, em detrimento de sua influência. Segundo o governo Médici, os argentinos tentavam seduzir os países do norte para “conter a expansão brasileira” e se aproximar da sonhada “pátria grande” hispano- americana. Figueiredo, à época secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, alertava para os riscos de a presença argentina dar ao Bloco Andino “conotação política e ideológica, ocasião em que poderá se transformar em obstáculo ao desenvolvimento, no continente, de uma política externa ajustada aos interesses brasileiros” 25. Como presidente, ele veria essa emulação regional entre Brasília e Buenos Aires perder seu sentido.

A indisposição venezuelana diante do Brasil pareceu arrefecer quando a AD retornou ao poder, em 1974, com Andrés Perez, que pouco após ser eleito defendeu em entrevista ao Jornal do Brasil a integração econômica e política entre os dois vizinhos. O social-democrata de Caracas, porém, irritou o governo brasileiro ao endossar, em mensagem ao Congresso, a campanha do governo Carter contra a proliferação nuclear e em defesa dos direitos humanos 







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Jornal O Estado de S. Paulo. 1/11/1979. Entrevista com o embaixador venezuelano em Brasília, Alfredo Baldó Casanova.

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Palestra do embaixador João Hermes Pereira de Araújo na Agência-Central do SNI. In Reunião de Órgãos

Responsáveis por Produção de Informações Externas. Secreto. Arquivo Nacional, Conselho de Segurança Nacional. BRAN, BSB N8.0.PSN, EST.94. Médici e Caldera encontraram-se em 1973, em Santa Helena de Cariém, na região de fronteira. Caldera voltou à presidência venezuelana nos anos 80.

25

Pacto Andino: Possibilidade de Adesão Argentina. Exposição de motivos. Pág.36 a 38. Secreto. Arquivo Nacional, Conselho de Segurança Nacional. BR AN,BSB N8.0.PSN, EST.146. A Venezuela não participou da formulação do Acordo de Cartagena, de 1969, que criou o Pacto Andino, mas em seguida associou-se ao bloco.

na América Latina, temas que vinham esgarçando as relações entre Brasília e Washington. Para o Itamaraty, a Venezuela de Andrés Perez tornara-se uma “caixa de ressonância” sul- americana do discurso de Carter26 e, irritado, Geisel determinou que seu chanceler, Azeredo da Silveira, cancelasse uma visita que faria a Caracas. Posteriormente, a ditadura brasileira temeu que Leonel Brizola, expulso do Uruguai, fixasse-se na Venezuela, onde, “pelo regime político e pela facilidade de movimentação proporcionada aos asilados”, teria sua “atuação facilitada”27.

Entretanto, foi o próprio social-democrata venezuelano que tomou a iniciativa de promover um degelo com o Brasil, já nos últimos dois anos do período Geisel – não por acaso, quando começava a se desenhar efetivamente o avanço rumo à abertura política. Andrés Perez apostaria no peso da diplomacia presidencial para começar a superar os anos de cizânia desde o golpe de 1964, ao mesmo tempo em que levantaria as últimas barreiras à proposta brasileira de criação de uma zona de cooperação multilateral na Amazônia. Em setembro de 1977, enquanto fazia uma visita a Trinidad e Tobago retornando da abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, Silveira foi pego de surpresa por um convite do próprio Andrés Perez para que fosse imediatamente a Caracas. Na capital venezuelana, o chanceler brasileiro e o presidente acertariam uma viagem, no mês seguinte, do líder venezuelano a Brasília – o social-democrata seria o primeiro chefe de Estado da Venezuela a realizar uma visita oficial ao Brasil –, na qual ele assinaria a adesão ao Tratado de Cooperação Amazônica. O governo venezuelano buscava se afastar de Washington e a viagem ao Brasil de Geisel, cujas relações com Carter estavam estremecidas, era um passo nesse sentido.

No plano bilateral, a visita do presidente venezuelano elevaria as relações entre o Brasil e a Venezuela a um patamar inédito, embora as diferenças entre os regimes nos dois países ainda fossem evidentes e dificultassem a aproximação. O governo venezuelano, por exemplo, exigia que a declaração conjunta dos dois chefes de Estado mencionasse explicitamente questões de direitos humanos e meio ambiente, algo que Geisel vetava de modo incondicional. Uma viagem preparatória de diplomatas brasileiros a Caracas terminou em impasse, o qual só foi superado quando um emissário do chanceler Silveira, o embaixador Luiz Felipe Lampreia, e outro do próprio Andrés Perez, Reinaldo Figueredo, sentaram-se para negociar e chegaram a um meio termo com referências “mais aguadas” aos tópicos que







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Entrevista do embaixador Rubens Ricupero ao autor, em 12 de janeiro de 2013.

27 Ibdem

consternavam Geisel28. Ao ser recebido no Planalto, o presidente venezuelano deixaria claro, publicamente, que a aproximação entre os dois países se desenrolava em meio a uma “tendência irreversível, no Brasil, em direção à democracia” (HANDELMAN e SANDERS, 1981. P. 171). O comentário, naquele momento, era uma aposta incerta: meses depois da visita, Geisel recorreria ao AI-5 para cassar “radicais” do MDB e fechar o Congresso por 15 dias, quando aprovou o infame “Pacote de Abril”, tentando evitar a todo custo uma derrota da Arena nas eleições daquele ano, como ocorrera em 1974; o ministro do Exército, Sylvio Frota, expoente da linha-dura, já preparava sua campanha para chegar ao Planalto e frear a abertura.

Caberia ao Brasil, e não à Venezuela, dar o passo seguinte no processo de convergência bilateral e, efetivamente, mudar os termos da relação entre os vizinhos. Esse movimento veio em 1979, com novos governos em ambas as capitais: Figueiredo, no Brasil, com a abertura doméstica em uma nova fase, e o democrata-cristão Herrera Campins, na Venezuela. O último presidente da ditadura brasileira escolheu, calculadamente, a democrática Caracas como o destino de sua primeira viagem oficial e, ao contrário de seu antecessor, deliberadamente vinculou a evolução da política doméstica às relações com a Venezuela.