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“O processo de integração das nações da América do Sul tem de ser acelerado e cada vez mais intensificado. Temos de fazer do continente sul-americano realmente uma nação totalmente harmonizada na linha dos seus interesses e na integração dos seus objetivos de ordem política, cultural e econômica. Temos tudo para isso.”

Tancredo Neves, candidato à presidência, em 1984, na Comissão de Relações Exteriores do Senado

“Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina.”

Ulysses Guimarães, em 1988, na promulgação da Constituição Federal

A eleição do opositor Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, a 15 de janeiro de 1985, parecia representar o desfecho da transição sob Figueiredo, embora o adoecimento e, finalmente, a morte do presidente eleito tenham lançado novas incertezas sobre os destinos da democracia que nascia no Brasil, naquele momento. A dias de deixar o poder, o último general-presidente brasileiro concedeu sua derradeira entrevista, à rede de TV Manchete, na qual, mal humorado, disse que sentiria “uma pena danada do Tancredo, ao passar a faixa presidencial” e, ao fim, ordenou: “Me esqueçam”. Figueiredo jamais entregaria a sua faixa ao presidente eleito, nem ao vice José Sarney – em vez disso, deixou o Planalto pela porta dos fundos, sem participar da posse de seu sucessor.

Antes do drama da sucessão, uma das primeiras iniciativas de Tancredo, ao ser eleito, foi se lançar em um périplo internacional, passando por Portugal, Itália, Vaticano, França, Espanha, Estados Unidos, México e Argentina. A viagem obedecia à lógica debatida ao longo desta dissertação, subjacente ao entrelaçamento entre redemocratização e política internacional no Brasil, de 1979 a 1985: o civil que deveria suceder aos militares, após 21 anos de ditadura, recorria ao plano internacional para reforçar sua posição no embate doméstico da construção do novo regime, principalmente diante da possibilidade de setores radicais das Forças Armadas tentarem se impor, de última hora210. O tour de Tancredo, entretanto, não se insere no período Figueiredo: ele já pertence à fase da nova república 







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democrática; tratou-se, na verdade, da formação da política externa de um governo natimorto – ou, como define Ricupero, “o momento presidencial” do homem que jamais ocuparia o Planalto211.

Nosso ponto de partida foi a pergunta sobre como a redemocratização influenciou a política internacional do Brasil de 1979 e 1985, portanto no último momento em que os generais davam as ordens no País. Para respondê-la, recorremos a arquivos, entrevistas, jornais e revistas, e à bibliografia disponível. A resposta a que se chegou foi dividida em duas partes. Primeiro, a transição democrática e a aproximação do Brasil com seu entorno sul- americano não foram fenômenos apenas simultâneos, coincidindo no tempo, mas fundamentalmente inter-relacionados e complementares. O Brasil em transição estava colocado diante de uma América do Sul dividida inicialmente ao meio, entre regimes de cunho democrático, ao norte, e ditaduras militares, ao sul. A mudança interna permitia avançar de forma sem precedentes em direção ao primeiro bloco, liderado pela Venezuela, a qual condicionava seus laços externos à vigência da democracia. Ao mesmo tempo, o governo Figueiredo estendia os braços ao Chile, o arquétipo das ditaduras latino-americanas, tentando demonstrar que os entendimentos com a Argentina, a partir do acordo tripartite de Itaipu, em 1979, não representavam uma “parceria seletiva” e, sobretudo, que sua transição doméstica não prejudicaria as boas relações do Brasil com “autocracias amigas” da região.

Havia, ainda, uma contrapartida a esse movimento – a segunda parte de nosso argumento. Ao manobrar entre esses dois polos sul-americanos, Caracas e Santiago, os militares enviavam sinais sobre os rumos que pretendiam impor, dentro de casa, à mudança de regime; em outras palavras, transformavam a diplomacia em um de seus instrumentos para tentar controlar uma abertura política que se provava cada vez mais incontrolável. Entretanto, o regime não era o único ator nacional a recorrer ao plano externo para tentar fortalecer sua posição no cabo de guerra da redemocratização. O novo sindicalismo do ABC, por exemplo, mobilizou uma ampla rede de solidariedade na Europa e nos EUA para enfrentar os processos contra seus líderes, na Justiça Militar do Brasil, e Lula foi recebido em capitais do Ocidente como o “Lech Walesa brasileiro”. Pouco depois, com o colapso da junta militar da Argentina e a emergência de Alfonsín, lideranças do PMDB que tinham laços históricos com o opositor argentino tentaram vincular as duas transições sul-americanas, em meio à campanha pelas Diretas Já. E, nesse jogo internacional da mudança brasileira de regime, o pretenso “Universalismo” da política externa dos militares esbarrava no temor de manter o controle 







sobre a “abertura lenta, gradual e segura”: as relações com o mundo socialista deveriam ser despolitizadas e, principalmente, era preciso ignorar Cuba.

Sob essa lógica, redemocratização e política internacional se entrelaçaram no último governo do regime militar, como movimentos pari passu. Para melhor organizar os argumentos, dividimos o texto da dissertação em três planos fundamentais: a América do Sul, que desde o início figurava como prioridade da ação diplomática de Figueiredo; as relações com a Argentina, que passaram por uma mudança estrutural no período; e a Guerra Fria, dos laços com os EUA e Europa aos países de regime socialista. O esforço para responder a problemática colocada obrigou-nos a ampliar o escopo do debate, indo além da esfera da política externa para abarcar também atores não estatais do âmbito doméstico, como movimentos sociais e partidos, e entidades transnacionais, como a Igreja ou organizações sindicais. Escaparia a um exame restrito ao Itamaraty, como se a Chancelaria operasse de modo insular, a complexidade da interação entre a redemocratização e as relações externas do Brasil ao final da ditadura. Sobretudo, entendemos que é impossível discutir política externa “à revelia” da sociedade e das contradições, embates e evoluções da política doméstica.

Por fim, é preciso chamar atenção a uma agenda de pesquisa que se abre seguindo-se o fio da problemática tratada nesta dissertação. Nos limitamos aqui aos seis anos do governo Figueiredo, mas a mesma pergunta, sobre redemocratização e política internacional, pode ser colocada ao período Sarney. Teria, por exemplo, o primeiro presidente após a ditadura, oriundo das bases da UDN, Arena e, posteriormente, do PDS, buscado se vincular a Alfonsín para reforçar suas próprias credenciais democráticas? Como a aproximação com a Argentina servia, internamente, a um governo que nasceu fragilizado pela morte de Tancredo? De ainda modo mais abrangente, discutindo os vínculos entre a política externa e disputas domésticas na construção da democracia brasileira, poderíamos questionar o uso do discurso “modernizador” alinhado aos EUA, em meio ao colapso da Guerra Fria, por Fernando Collor de Melo, tanto como candidato quanto como presidente, e o “retorno” de Itamar Franco às diretrizes que marcaram o Itamaraty212. Ou, então, como os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva usaram a diplomacia para tentar criar consensos, marcar posições ou mobilizar suas bases de apoio. Como tentamos mostrar ao analisar o governo Figueiredo, as políticas externa e interna se misturam e, por vezes, tornam-se indistinguíveis.







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