• Nenhum resultado encontrado

3. O “casamento” de Figueiredo com a Argentina 77


3.1. O foco em Buenos Aires 80

3.1.1. O desfecho em Itaipu 84

O “começo do fim” da disputa brasileiro-argentina sobre o aproveitamento hídrico da Bacia do Prata remonta a julho de 1977, menos de dois anos antes da posse de Figueiredo, quando o chefe do Estado-Maior da Aeronáutica do Brasil, brigadeiro Délio De Matos, e o também brigadeiro Orlando Ramón Agosti, membro da junta militar da Argentina, encontraram-se em Foz do Iguaçu (BANDEIRA, 1993. P. 236-238). Nos dois lados da fronteira, o establishment das Forças Armadas desejava conter a discórdia e, pouco após a reunião entre os brigadeiros, o chanceler brasileiro, Antonio Azeredo da Silveira – que nos meses anteriores recusara duas vezes ofertas argentinas de diálogo sobre a Bacia do Prata86 –, mudou de posição e enviou uma nota a seu homólogo em Buenos Aires, Oscar Montes, propondo a reabertura das negociações. Em setembro de 1978, brasileiros, argentinos e paraguaios reunidos em Assunção chegaram perto de um acordo definitivo, o qual àquela altura dependia objetivamente de um acerto sobre o número de turbinas em Itaipu (a Argentina queria 18 e o Brasil, 20) e sobre a cota de reagente (altura das águas) na usina argentino-paraguaia de 







86

No fim de 1976, o governo Jorge Rafael Videla propôs a criação de uma comissão bilateral para desatar os vários nós da relação com o Brasil e Silveira respondeu que não aceitava incluir nos trabalhos do grupo a questão de Itaipu – algo que, segundo ele, equivaleria a reconhecer o direito argentino à “consulta prévia” sobre os rumos da hidrelétrica. Meses depois, o chanceler brasileiro deixou sem resposta uma nova oferta de Buenos Aires, desta vez envolvendo uma comissão tripartite para “compatibilizar” os projetos de Itaipu e Corpus, e a Argentina recusou-se a dar garantias sobre a liberdade de navegação no Rio da Prata. A situação ficou ainda pior quando o Paraguai indicou que adotaria o modelo de ciclagem brasileiro, de 60 Hertz, em detrimento do argentino, de 50 Hertz, mudança que aproximaria ainda mais Assunção de Brasília. Em julho, a Argentina fechou a rota usada por caminhões brasileiros que cruzavam a Cordilheira dos Andes rumo ao Chile e, em resposta, o Brasil limitou em 80% o número de caminhões argentinos com autorização para cruzar a fronteira. Negociadores argentinos, entretanto, indicavam com razão que a falta de acordo tinha motivos “mais políticos do que técnicos”. A personalidade explosiva de Silveira e, principalmente, sua posição de “ganhar tempo” para que o Brasil construísse a hidrelétrica e a negociação corresse diante de um fato consumado não ajudaram a acalmar os ânimos do outro lado da fronteira, assim como as denúncias em Buenos Aires contra o “imperialismo brasileiro” e a decisão do embaixador argentino em Brasília, Oscar Camillión, de conduzir na imprensa do Brasil uma campanha “culpando” o governo brasileiro pela estagnação do diálogo.

Corpus. Um desfecho ao contencioso nunca estivera tão próximo. No mês seguinte, contudo, houve um novo recuo depois que Brasil e Paraguai propuseram uma fórmula que previa 18 turbinas “em operação” em Itaipu, mas a instalação de 20 aparelhos – ideia imediatamente rechaçada pela Argentina. Em dezembro, na X Reunião de Chanceleres da Bacia do Prata, em Punta del Este, o impasse persistiu e, no início de 1979, o governo Geisel indicou que a questão ficaria para o próximo presidente, Figueiredo.

Na interpretação de Guerreiro, que passou de secretário-geral do Itamaraty a chanceler naquele ano, as “atitudes subjetivas e tradições idiotas” estavam se sobrepondo a uma negociação técnica de Itaipu, o que fazia da crise uma “coisa mais de psicólogos e psiquiatras” do que de diplomatas87. A delegação argentina que viajou ao Brasil para a posse de Figueiredo recebeu sinais claros de que o novo governo estava disposto a buscar um acordo (SPEKTOR, 2002. P. 117) e, menos de seis meses depois, chegava-se a uma posição de consenso em um coquetel em Nova York entre os três chanceleres. O entendimento previa a instalação de 18 turbinas em Itaipu, como queria a Argentina, e uma cota de reagente de 105 metros acima do mar em Corpus, menos do que Silveira oferecera ao governo de Isabel Perón. A usina no Rio Paraná operaria com um sistema de dupla ciclagem, o que não obrigaria o Paraguai a migrar para o modelo brasileiro, de 60 Hertz, como temia a Argentina. O Brasil recebia, ainda, garantias adicionais sobre os chamados “parâmetros de navegação” na parte argentina da bacia.

O documento firmado em Puerto Stroessner impunha que qualquer alteração no número de turbinas e na cota de reagente – os dois pontos-chave do acordo – seria “precedida de negociação entre as partes”, algo que se aproximava da idéia de consulta prévia defendida por Buenos Aires e veementemente recusada pelo governo Geisel. Após firmar o tratado, Guerreiro ignorou a exigência argentina que tanto havia enfurecido seu antecessor no Itamaraty e, em seu discurso, enfatizou que um acordo apenas foi possível depois que “doutrinas preliminares foram postas de lado” e os países procuraram “de forma racional e objetiva” conciliar os interesses nacionais88.

A assinatura do acordo tripartite certamente não encerrou, de imediato, a mútua suspeição entre brasileiros e argentinos, e o documento foi recebido com cautela tanto em Buenos Aires quanto em Brasília. No setor do Itamaraty que tratava das questões sul- americanas, eram grandes as dúvidas sobre a “durabilidade” do consenso alcançado e







 87

Entrevista de Ramiro Saraiva Guerreiro ao CPDOC-FGV, pág. 268.

88

prevalecia a ideia de “esperar para ver” suas consequências objetivas89. A imprensa nacional, de outro lado, chamava atenção para as questões deixadas em aberto no texto final, incluindo a possibilidade de os argentinos tentarem reabrir as negociações insistindo na tese da consulta prévia. Na Argentina, o acordo tripartite fez o almirante Isaac Francisco Rojas, ex-vice- presidente e um dos porta-vozes da ultradireita, emitir nota de protesto contra Videla e realizar uma reunião para denunciar o acordo, uma mostra da insatisfação dos radicais diante do entendimento com o velho rival do Prata. O próprio discurso do chanceler argentino em Puerto Stroessner parecia tentar amainar a indisposição entre os setores mais duros da ditadura, qualificando os compromissos assumidos com Brasil e Paraguai como “gestos de boa vontade com os nossos vizinhos” e dizendo que a Argentina “aceitava” as obras em Itaipu90, palavreado que incomodou funcionários brasileiros.

No entanto, já naquele momento os presidentes Figueiredo e Videla enviavam, publicamente, sinais de que desejavam fazer avançar a aproximação bilateral e transformar o acordo tripartite no início de um novo momento na história das relações entre os dois países. No dia da assinatura do documento, o maior jornal da Argentina, o Clarín, publicou uma longa entrevista com Figueiredo na qual o presidente brasileiro dizia ser favorável a um pacto no setor de energia nuclear com a Argentina – “se (isso) vier a ser julgado oportuno pelos dois países”, ponderava, cautelosamente. O presidente brasileiro também indicava que desejava realizar uma visita oficial a Buenos Aires, pois “os encontros entre chefes de Estado de países amigos propiciam o diálogo franco sobre temas de interesse comum” 91. Também por meio da imprensa, Videla enviou uma mensagem inequívoca no sentido da aproximação e avisou que Buenos Aires apostava em um estreitamento dos laços com o Brasil que poderia incluir as “possibilidades que oferece a experiência (argentina) na pesquisa e aplicação da energia nuclear para fins pacíficos” 92. Aos ouvidos dos bons entendedores, os dois lados concordavam que Itaipu era parte de um projeto maior que redesenharia a paisagem política na América do Sul.