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Antecedentes econômicos e a fidelidade do projeto petista com o pacto da governabilidade: tensões preliminares

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

4 CRISE, IMPEACHMENT E FIM DE CICLO: ENTRE O ENCANTO E A MISÉRIA DA ESTRATÉGIA REFORMISTA

4.1 Antecedentes econômicos e a fidelidade do projeto petista com o pacto da governabilidade: tensões preliminares

A característica mais pujante dos governos liderados pelo PT, desde a sua ascensão em 2003 até meados de 2013, foi a capacidade de cadenciar a aplicação do receituário neoliberal exigido pelo mercado financeiro com políticas de incentivo ao consumo de massas, produzindo uma estabilidade até então inédita – com a brevíssima exceção do primeiro governo de FHC, quando da estabilização monetária – na história recente da democracia republicana no Brasil.

Como já abordado, a explicação fundamental para isso foi a abertura de um ciclo de crescimento econômico internacional que, frente à política adotada pelos governos petistas, gerou condições específicas de um desenvolvimento circunstancial, cujo resultado prático conferiu solidez na relação com a classe dominante e autoridade diante de amplos setores de massas.

De 2004 a 2010, período que compreende precisamente os dois mandatos de Lula, as commodities brasileiras se afirmaram como a chave da acumulação de reservas, com países como a China importando fortemente essas mercadorias. Com o aumento das reservas, oriundas dos impostos de exportação e do lucro galopante das instituições financeiras, foi possível estimular o consumo interno com políticas de transferência de renda e incentivo ao crédito. Os investidores internacionais também voltaram a injetar dinheiro no Brasil. A flexibilidade nos juros, mantendo um patamar atrativo ao capital financeiro na taxa

dívida pública) atraíram o capital internacional para investir no país. Assim, foi possível estabelecer uma modesta elevação do salário médio e aumentar o nível de emprego – ainda que marcado pela alta incidência de precarização, desregulamentação e rotatividade.

Foi na esteira desse ciclo, denominado pelos entusiastas do governo petista de “década de inclusão”, que a popularidade de Lula atingiu níveis muito elevados, superando, inclusive, momentos de instabilidade, como quando das denúncias do escândalo do “Mensalão” ou com a crise econômica internacional – essa rapidamente contornada no Brasil. A burguesia estava satisfeita com sua lucratividade e o aumento dos empregos precários e dos programas sociais impactava na população mais pobre. É sob o signo da continuidade desse “desenvolvimento” que Dilma é eleita presidente.

No entanto, esse ciclo de prosperidade começou a se modificar no início do mandato de Dilma, entre os anos de 2011 e 2012. A entrada de divisas estrangeiras deixou de crescer no mesmo ritmo ascendente da era Lula, uma vez que a China entra em processo de desaceleração econômica (o que impactou na balança comercial e nas reservas) e os Estados Unidos, mediante recuperação dos acontecimentos de 2008, passa a ser novamente destino de investimentos, atraindo investidores que poderiam apostar no Brasil. Diante disso, Dilma age de forma incomum, abrindo mão de aumentar a taxa de juros como fórmula clássica para atrair novamente o capital estrangeiro. Ao contrário, seu governo reduz a taxa SELIC ao patamar mais baixo desde o Plano Real, para tentar reduzir a inflação mediante uma valorização da moeda nacional.

Contudo, a apreciação da moeda brasileira também impactava negativamente nas exportações (que já sofria com o cenário internacional mais desfavorável) e, consequentemente, no acúmulo de reservas, gerando um momento recessivo de queda na oferta e alta nos preços. E, para enfrentar essa situação, o Governo Dilma eleva ainda mais as metas de superávit primário (para compensar a queda nos juros) e passa a utilizar as reservas acumuladas nos anos anteriores para induzir o investimento (por meio de renúncias fiscais às empresas) e manter os programas sociais de transferência de renda. Com isto, foi possível manter os níveis de aumento da taxa de emprego e conservar a estabilidade política até ali conquistada. Não por acaso, a adesão das representações políticas burguesas ao governo do PT crescia e a sua popularidade junto às massas, também, aumentava,

como sugeriam as pesquisas de opinião realizadas durante o primeiro semestre de 201362.

A realidade, contudo, foi produzindo mais contradições, cada vez mais difíceis de serem equilibradas com os interesses inconciliáveis de classe, que não podem ser apagados numa sociedade como a capitalista. A dinâmica regressiva no cenário internacional não se alterou substancialmente e a manutenção dos índices de superávit primário (o que fundamentalmente define a confiança dos investidores na economia brasileira) tornava-se cada vez mais difícil de se sustentar de forma combinada com os gastos que o governo do PT elegeu como prioritários. Para garantir as desonerações fiscais específicas aos setores burgueses mais integrados à administração petista (como o agronegócio, o setor automobilístico e da construção civil) e a continuidade dos programas de transferência de renda – os dois pilares principais de manutenção para um mercado interno minimamente aquecido, base da aprovação interna que conferia estabilidade ao governo – era preciso cortar gastos e aumentar a arrecadação. Foi aí que o Governo Dilma voltou à carga com medidas semelhantes às utilizadas no início no Governo Lula (e que depois não foram sistematicamente adotadas, em função do cenário de crescimento econômico): a política de concessões e de privatizações; e o ataque ao orçamento estatal voltado aos serviços públicos e às amplas garantias sociais, como saúde, educação, previdência, etc.

No tocante à política de concessões e privatizações, como já exposto, Dilma lança, em 2012, um amplo programa que entrega rodovias, portos, aeroportos e obras de infraestrutura (logística e voltada a megaeventos) à exploração econômica privada. A ação é bem recebida pelos investidores e empresários do ramo da construção civil e o impacto negativo dessa medida, genuinamente neoliberal (que em tese estaria em contradição com a narrativa adotada pelo PT), também foi pequeno, restrito a setores minoritários e ao ativismo organizado de vanguarda – atestando o baixo nível de politização e a preocupação quase exclusiva das massas trabalhadoras com o seu próprio cotidiano.

Porém, a medida encontra resistência para se efetivar nos gargalos produtivos do país, pelas suas características de submetrópole periférica e dependente. A tentativa de “choque desenvolvimentista” esbarra num aumento

exponencial da demanda por energia e combustíveis, com a Petrobrás sendo, inclusive, obrigada a importar “mais de US$ 6 bilhões em combustíveis, uma

ampliação de 417% na comparação com 2011” (VILLAVERDE; DANTAS, 2012). O

aumento da demanda por energia elétrica (que devolve o receio de um novo “apagão”, a exemplo do que já havia ocorrido em governos anteriores) e a operação de compra de combustíveis da Petrobrás produziram uma pressão inflacionária sobre os produtos e serviços derivados, o que impactaria sensivelmente nos índices gerais de preços.

“Por comprar gasolina pagando a cotação internacional e revendê-la a

preços domésticos, a Petrobrás registrou prejuízo de US$ 1,3 bilhão [de abril a junho

de 2012]” (Idem, ibidem, comentário nosso), o que pressionou por um aumento no preço dos combustíveis no mercado interno. Temendo uma alta inflacionária em cascata, o Governo Dilma interveio na estatal para sustentar o preço do combustível, mas, ao anunciar os subsídios para as companhias elétricas privadas (na expectativa de que isso significasse redução na tarifa de energia e, consequentemente, na inflação), não foi capaz de segurar o prejuízo na Petrobrás por maior tempo:

... a decisão de cobrar do consumidor final um aumento no preço da gasolina tem sido postergada pelo governo.

Até agora, preferiu-se cortar a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), um tributo sobre o combustível, para evitar que o aumento de preço na refinaria contaminasse o valor cobrado nos postos. O problema é que esse espaço acabou – e é nesse ponto que a redução da conta de luz poderia ajudar.

Em pronunciamento de rádio e TV na véspera do 7 de Setembro, Dilma afirmou que [...] o preço da energia elétrica ficará 16,2% mais barato para consumidores residenciais e quase um terço (28%) para a indústria, que consome mais. Com a medida, o governo espera que os empresários cortem dos preços para os clientes a economia que terão na conta de luz. Assim, os produtos “made in Brasil” ficam mais baratos e, consequentemente, ajudam a reduzir a inflação.

[...]

No fim de junho [de 2012], o governo autorizou a Petrobrás a aumentar o preço da gasolina em 7,4%, mas essa elevação não chegou ao consumidor porque o governo levou a zero a alíquota da Cide, blindando os preços pagos pelo consumidor. Como não há mais como reduzir a Cide, ou o

governo reduz outro tributo ou o aumento vai parar na bomba, pressionando a inflação (Idem, ibidem, grifo e comentário nosso).

De fato, o aumento ocorreu e os reflexos foram imediatos. Em janeiro de 2013, a Petrobrás “anunciou alta no preço da gasolina de 6,6% na refinaria, em um

movimento amplamente esperado pelo mercado diante das perdas da companhia ante a diferença entre os valores dos combustíveis no país em relação às cotações internacionais” (VIEIRA, 2013). Contudo, “a disparada do dólar em abril ampliou as perdas. De janeiro a maio de 2013, a Petrobrás perdeu R$ 2,2 bilhões importando diesel e gasolina” (Idem, ibidem), de modo que a pressão por mais reajustes se

intensificou:

... Mesmo diante dos preços altos, especialistas defendem a necessidade de novos aumentos para diminuir a defasagem ante o mercado internacional. Valorização do dólar e preços externos nas alturas alavancam a diferença entre os valores praticados no país e no mercado internacional, que pode levar a Petrobras a perder até R$ 15,6 bilhões somente este ano. — Os aumentos são necessários, o Brasil estava há quase seis anos sem reajustar. A redução nas tarifas de energia (em janeiro) abriu espaço para aumentar o preço da gasolina (e do diesel), mas o mercado sabe que

cedo ou tarde os preços terão que subir ainda mais. — defende Adriano

Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) (Idem, ibidem, grifo nosso).

O resultado foi que, entre os meses de “abril e junho [...], o valor médio do

combustível no país [...] estava em R$ 3,30, cerca de 4,88% do que um trabalhador no país recebe por dia (com base no salário mínimo)” (Idem, ibidem), o que

significou, “somente no segundo trimestre do ano, [...] reajuste de 15%” (Idem, ibidem).

Portanto, apesar desse período não ser marcado por uma alta generalizada da inflação no país e de não ter havido um amplo repúdio da opinião pública às políticas de concessões e privatizações, os limites estruturais e logísticos do capitalismo tardio brasileiro exigiram um aumento na demanda do setor energético e de combustíveis que tornou inevitável o reajuste de preços no mercado interno, para que o plano do governo de aquecimento da economia e de manutenção dos empregos se concretizasse. Esse reajuste, por sua vez, terminou impactando nos preços de uma série de produtos e serviços, incluindo a tarifa dos sistemas de transportes nas principais cidades do país. Essa é a razão pela qual, entre os anos de 2012 e 2013, ocorre elevação significativa no preço dessas tarifas, afetando diretamente o custo de vida dos trabalhadores e gerando certo nível de insatisfação na população.

Na outra ponta da política de aumento da arrecadação para manter os níveis de investimento empresarial e garantir as ações de transferência de renda, o drástico ataque aos serviços públicos e às áreas sociais não necessitou de maiores desenlaces para produzir descontentamento num amplo setor das massas trabalhadoras.

A saúde, a assistência social, e a previdência (o tripé da seguridade social) já vinham sofrendo desmontes durante a década de 1990, o que se aprofundou com a Reforma da Previdência realizada durante o Governo Lula63. Longe de haver uma reversão desse processo, a partir de 2009 “as medidas de

desonerações tributárias adotadas para combater a crise afetaram ainda mais o financiamento do orçamento da seguridade social, enfraquecendo as políticas sociais de previdência, saúde e assistência social” (SALVADOR In: BOSCHETTI et

al., 2010, p.56) a partir das inúmeras renúncias nos tributos pagos pelas empresas ao governo.

Somado aos cortes realizados nas demais áreas de interesse social, essa política de desmonte avançou e fez com que – apesar da manutenção dos programas de transferência de renda – nos anos de 2011 e 2012 houvesse uma piora significativa dos serviços públicos em geral, atingindo sobretudo a saúde e a educação, cujo acesso passou cada vez mais a vincular-se ao poder aquisitivo e às condições de consumo.

Frente a esse desmantelamento do papel social do Estado, o aumento da demanda por educação e saúde privadas aprofundou a mercantilização desses serviços e provocou não apenas aumento do acesso da população a essas supostas “alternativas”, cada vez mais apoiadas e financiadas pelos governos do PT64; mas

63 Segundo Granemann (2003, p. 123, comentário nosso), as propostas “do governo Lula para a previdência dos

servidores públicos, divulgadas em meados de abril [de 2003], complementam e aprofundam a contra-reforma da previdência iniciada pelo governo FHC e seguem, tal como as medidas do seu antecessor, as recomendações do Banco Mundial, que apontam, em última instância, para a privatização da previdência social no mundo inteiro”. Evidentemente, os critérios adotados por essa contrarreforma não possuem “o objetivo declarado de privatizar os sistemas de previdência, mas sim de muni-los de uma racionalidade econômico-financeira que os tornem ‘auto-sustentáveis’, ou seja, que desobrigue o Estado de mantê-los por meio de recursos oriundos de outras fontes, perdendo a previdência o seu caráter de proteção social para transformar-se numa atividade puramente voltada para a especulação financeira” (Idem, ibidem, p. 124).

64 No tocante à educação, uma das principais medidas dos governos do PT (desde a era Lula) foi a isenção fiscal

para instituições privadas de ensino superior em troca de oferta de bolsas, política esta que somente em 2011 passou a exigir que as bolsas fossem ocupadas para que houvesse a efetivação das desonerações. Na saúde, de acordo com o levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), o limite de reajuste para os planos de saúde médico-hospitalares individuais e familiares foi, entre 2012 e 2013, de até 9,04%, correspondendo a “2,55 pontos percentuais acima do índice oficial da inflação, o IPCA, [...] [e atingindo] um

universo de 17,6% dos consumidores de planos no país, cerca de 8,4 milhões de pessoas” (COSTA, 2013,

gerou, sobretudo, um impacto negativo sobre a renda das famílias, que se viam obrigadas a pagar (e cada vez mais caro) por direitos e serviços públicos que deveriam ser considerados básicos. Somado a isso, apesar das aqui já mencionadas tentativas de contenção por parte do governo, o saldo da taxa de inflação ainda subiu mais de um ponto percentual (1,53%) no triênio 2010-2012 (como demonstra a evolução do gráfico a seguir), o que afetou diretamente o poder aquisitivo dos trabalhadores:

Gráfico 8: Evolução do Índice de Preços para o Consumidor Amplo (IPCA) (2009-2012)

4,31% 5,90% 6,50% 5,84% 0,00% 1,00% 2,00% 3,00% 4,00% 5,00% 6,00% 7,00% 2009 2010 2011 2012

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2013), elaboração própria.

O aumento no custo de vida gerado não apenas pela inflação, mas pela crescente demanda de custeio desses serviços públicos básicos (educação, saúde e transporte, principalmente), provocou o início de uma reação não generalizada, nem tampouco imediatamente direcionada ao governo do PT, mas com um impacto que sinalizava que um acúmulo importante de contradições sociais estava se processando: em 2012, inicia-se um ascenso grevista que demarca o maior número de paralisações desde 1997, quando o segundo Governo FHC enfrentava fortes lutas sociais. Entre os anos de 2011 e 2012, como demonstra o gráfico a seguir, houve um crescimento impressionante do número total de greves que foram deflagradas:

Gráfico 9: Evolução do total anual de greves deflagradas no Brasil (1996-2012) 1228 631 531 506 525 416 298 340 302 299 320 316 411 518 446 544 873 0 200 400 600 800 1000 1200 1400 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Fonte: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (2012, p. 33), elaboração própria.

No ano de 2011, segundo o gráfico com dados do DIEESE, ocorreram 544 greves e, no ano seguinte, 873 paralisações foram deflagradas – o que corresponde a um crescimento de 58% em apenas um ano. O gráfico também demonstra que não podem ser identificados quaisquer fenômenos semelhantes, sequer comparáveis, desde a ascensão das experiências governamentais petistas a partir de 2003.

É importante ressaltar ainda que, esse aumento exponencial da quantidade de greves em 2012, ao ser analisado a partir de outros dados mais qualificados e com maior profundidade, atesta a relação desse ascenso com uma insatisfação diante da mudança regressiva nas condições de vida que se processava naquelas circunstâncias. Uma apreciação sobre as principais reivindicações apresentadas nas greves deflagradas naquele ano demonstra a validade dessa análise, sobretudo, considerando a queda geral do poder aquisitivo da população e o impacto negativo das medidas governamentais de precarização sobre o conjunto dos serviços públicos:

Quadro 6: Principais reivindicações das greves deflagradas no Brasil (2012)* Greves Reivindicação Quantidade Percentual Reajuste Salarial 355 40,7% Alimentação 235 26,9%

PCS - Plano de Cargos e Salários 201 23,0%

PLR - Participação nos Lucros ou Resultados 166 19,0%

Pagamento de Salários Atrasados 160 18,3%

Piso salarial 141 16,2%

Condições de trabalho 133 15,2%

Assistência médica 105 12,0%

Transporte 63 7,2%

Educação pública 55 6,3%

* O somatório dos dados pode ser superior ao total de greves, considerando que uma mesma paralisação pode conter mais de uma reivindicação.

Fonte: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (2012, p. 13), elaboração própria.

Este apanhado não é, evidentemente, suficiente para supor que nesse período se iniciou um levante contra o governo do PT; mesmo porque, como se percebe, as reivindicações que corresponderam ao ascenso grevista de 2012 eram majoritariamente corporativas, voltadas ao aumento do poder aquisitivo perdido pela inflação. No entanto, a presença de reivindicações como assistência médica, transporte e educação pública em pautas de greves eminentemente econômicas revela que uma insatisfação reprimida acerca desses temas ainda não havia extravasado, mas tinha potencial para se manifestar.

O acúmulo dessas contradições viria, finalmente, a quebrar o quadro social de estabilidade que marcou os governos de conciliação de classes liderados pelo PT, a partir de junho de 2013. Manifestações contra os reajustes sistemáticos das tarifas dos transportes nos últimos dois anos (em praticamente todas as capitais) já ocorriam país afora e ganhavam força, até que uma brutal repressão (sobretudo na cidade de São Paulo) desencadeou uma resposta unificada nacional do movimento, que se massificou e arrastou milhões às ruas numa cruzada de passeatas em série que já não se limitavam apenas à reivindicação inicial – ficando popularmente conhecidas como Jornadas de Junho.

A burguesia e o Governo Dilma foram surpreendidos porque a força do pacto entre a classe dominante e a principal organização de origem na classe trabalhadora parecia ser capaz de conter qualquer convulsão social. Não contavam com a possibilidade de que havia um barril de pólvora prestes a explodir, um acúmulo de contradições gerado pela ausência de melhorias nos serviços públicos e pelos reflexos de uma crise econômica cuja “única solução” para o governo foi encontrar um “equilíbrio possível”, no marco geral de que, de algum modo, os trabalhadores deviam pagar a conta. Mas foi o que de fato ocorreu. A força social da juventude e de uma nova geração da classe trabalhadora brasileira acendeu o pavio do barril de pólvora, entrando em cena nas ruas de forma multitudinária, mesmo sem uma direção política organizada com capacidade de conduzi-la.

A aposta dos governos do PT foi utilizar sua autoridade histórica diante da classe trabalhadora organizada para impedir convulsões sociais e, associado à burguesia, administrar o capitalismo de modo a garantir que a classe dominante continue ganhando e os trabalhadores aceitando pacificamente um dado patamar de condições mínimas de existência. Para isso, além das políticas de natureza compensatória, o controle sobre as organizações da classe trabalhadora foi um elemento determinante.

No momento anterior às Jornadas de Junho, em que é deflagrado o ascenso grevista, a relação entre o governo de conciliação de classes e as organizações do movimento sindical foi decisiva para a não transformação das pautas das greves em enfrentamento político – algumas vezes com o atendimento parcial das reivindicações econômicas, por pressão das lutas. Isto, em larga medida, bloqueou a conversão do ascenso em movimento de choque com o governo petista, mantendo uma sensação de controle político.

As Jornadas de Junho foram responsáveis por colocar abaixo esse controle. Uma vez que a maior parte das organizações tradicionais dos trabalhadores padecia de profundos processos de adaptação, burocratização e, sobretudo, de integração ao governo de conciliação de classes do PT, a irrupção da nova situação quebra o quadro de equilíbrio que marca a experiência governamental petista, ultrapassando (e ao mesmo tempo influenciando) o consenso historicamente construído sobre a classe trabalhadora organizada (base social histórica do PT).

O resultado foi uma juventude dos setores médios e uma nova geração da classe trabalhadora precarizada (embora desorganizadas e sem referências

políticas classistas) que transformaram manifestações por alguns centavos a mais na tarifa dos transportes em uma resposta nacional à brutal repressão policial aos protestos, arrastando consigo as organizações tradicionais (obrigadas a se colocar em cena pela força das mobilizações) e, mesmo com a reversão dos aumentos das tarifas em mais de uma centena de cidades, conseguindo também converter as lutas