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Orfeu, em busca do seu corpo de desejo – Eurídice – desceu ao Tártaro e depois de encontrar Caronte, o cão-cérebro, os três juízes da morte e o próprio senhor daquele submundo, Hades, a tocar sua música lamentosa, teve, talvez por sua audácia, talvez por seu imenso amor, Eurídice devolvida daquele mundo estranho, o mundo da morte e dos mortos. Traz consigo, no entanto, um conselho: de volta ao mundo dos vivos, das coisas familiares, ele não podia olhar para traz, não podia ver Eurídice, que o seguia, até que o sol fizesse da noite, dia. Mas Orfeu desobedeceu ao senhor da morte e antes que o sol diluísse a noite, apenas no seu primeiro reflexo, Orfeu olhou para traz. Queria saber se sua Eurídice realmente o seguia. Quis confirmar com o olhar a presença da amada. Mas o olhar que queria a certeza apenas encontrou aquela terrível ausência mesma20 de que fala Blanchot. Ao querer ver Eurídice, ela perdeu-se para sempre dele, e ela tornou-se, para ele, essa ausência assustadoramente presente, essa ausência mesma que jamais se tornou ausência e por isso ele não voltou a amar novamente. Eurídice tornou- se essa ausência mais presente do que todas as presenças, habita nessa ausência um real que escapa ao olhar, à pele, mas que é presença incontrolável, porque sem corpo. Eurídice passa a ser um mundo apreendido por Orfeu pela sua ausência mesma, e não por sua presença, por sua corporeidade. O olhar de Orfeu não garantiu a presença de Eurídice, mas apenas sua transformação em ausência que não é ausência, mas ausência

mesma porque carrega uma presentidade21, que na alma de Orfeu atravessou seu presente, seu passado e seu futuro.

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Ausência mesma é a ausência que não tem como sinonímia o vazio, mas carrega em si a própria presença. Na ausência mesma mora o murmúrio, os ruídos do mundo que não permitem o isolamento. A ausência mesma é terrivelmente presente, contundente, atravessada de vestígios que apontam para uma presença, mas que não pode ser totalmente decifrada, encontrada. Na ausência mesma não há a possibilidade do isolamento, tampouco do encontro. Sobre a ausência mesma ver: BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d`Água, 1984.

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Neste texto, o termo presentidade será usado em oposição à noção de presente. Presentidade implica não um recorte temporal, cronológico, mas uma duração. Se o presente é um corte entre o

Esse olhar que insiste em constituir a certeza, em se certificar da presença, anuncia no seu movimento a própria morte daquilo que olha. O olhar não garante a presença. Ver torna-se antinomia do estar. O olhar carrega os conceitos, mas não guarda o visto, não o preserva de sua própria duração, não o imobiliza, não garante a existência. Apenas apanha, no instante mesmo que desaparece, sua previsível fugacidade. Esta tese, sendo uma tese sobre o olhar, fez fugir o visto. Sobre o mendigo, apenas ficaram lugares de ausência mesma, partes de vidas que não puderam ser preservadas pelo olhar, pedaços de histórias que se perderam na noite interminável, fragmentos soltos e sem rima. Essa tese é, portanto, uma tese de fragmentos. Em nenhum momento ela se enquadra naquela espécie de tese que vem para preencher deslizes historiográficos. O que move a leitura de um texto? Não a falta que ele vem preencher – embora para isso escrevamos as famosas discussões historiográficas, e por isso não a escrevo – Nada tenho a falar dessas faltas, dessas lacunas que são ficção de mim mesma, da minha ficção de autoria. Os textos deveriam vir apenas para brilhar. Chegará um tempo (e isso é teleologia) em que os textos do outro não virão para que anunciemos uma falta, uma ausência, um limite... Virão todos, todos eles, apenas para brilharem. Não porque o paradigma do entendimento fará morada nos corações, mas porque os textos serão entendidos como encontros. E nos encontros não há faltas, mas apenas presenças, mesmo que sejam presenças de ausências mesmas.

Quis que você, leitor, lesse meu texto por uma afecção, por um desses bons encontros de que falava Deleuze, leitor de Spinoza. Quis que você não buscasse nele a falta que eu deveria e queria, cheia de verdades, preencher, mas apenas a minha intensidade, minhas paixões feitas textos. Paixão pelos

passado e o futuro, a presentidade é uma duração que envolve passado, presente e futuro. Mora no presente o ser-sido, o passado e também mora nele, como espera que já se faz acontecimento, o devir, o futuro. Presentidade é um conceito heideggeriano. Para uma discussão muito interessante e clara deste conceito, ver DUBOIS Christian. Heidegger – Uma Introdução. RJ: Zahar, 2004.

conceitos que me fazem ver e dizer as coisas quando elas se derramam em excesso sobre mim. Paixão pelos teóricos e literatos que me deram mais olhos para ver quando os meus olhos ficaram pouco... Pequenos. Paixão por essas vidas das ruas, que estão tão perto e tão longe, com seu corpo carregado de fugacidade, com suas almas arranhadas. Paixão pelos pedaços de tempos e de vidas que tiram do mundo sua apatia e surpreendem com estilhaços de alegria a dor que muitas vezes insiste em habitar o viver. Esta tese faz parte desses pedaços de tempo que não se submetem a dor, nem deixam que ela seja da vida o único guia. Ela nasceu para contra-efetuar muitas dores, dores das calçadas abandonadas, de vidas quase perdidas e da minha própria vida. Contra-efetuação para multiplicar o que temos e inventar o que não temos. Mas se você, leitor, estiver aí no seu confortável sofá, tentado a pensar que trabalhar dessa forma é desvirtuar o ofício do historiador, lembro das palavras que um apaixonado historiador deixou há tantos anos numa belíssima aula inaugural: Eu lhe suplico que reflita antes de formular essa censura. Ela é

mortal.22

1ª parte:

Enclausurados