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empiricamente, factualmente, mas o escravo, aquele que está separdo do

que pode, o reativo.”

Um problema...

Conta-se que certa vez Francisco de Assis, o santo da região do Vale do Espoleto voltava de Sena com outro frade menor, vestido com uma capinha por cima do hábito para proteger-se do frio, pois estava muito doente, quando encontraram um pobre. Vendo sua necessidade, o santo disse ao companheiro que deviam dar-lhe aquela capinha, mas o mesmo resistiu, pois estava muito frio e o “bem-aventurado” ainda não estava curado. Diante da resistência do companheiro, Francisco respondeu: “Eu acho que o grande

esmoler vai me imputar como um roubo se eu não der isto que estou levando

ao que mais necessita.”58

Até a década de 70 do século XX o esmoler é aquele que pede de porta em porta, ou nas calçadas ou nas escadarias das igrejas. Esmoler tem como sinonímia o mendigo. Ainda na década de 80 muitos continuavam insistindo nesse termo que, hoje, tem sua espessura corroída. Trata-se de uma palavra cuja alma morreu e por isso seu sentido escapou, volatilizou-se num tempo que já não a ampara, que não mais a reconhece. Esta parte do texto não trata desse tempo em que o esmoler passou a ser um termo estranho aos ouvidos, mas também não trata daquele tempo em que as pessoas chamavam de esmoler o mendigo que estendia a mão e pedia uma esmola pelo amor de Deus. Quem é o “grande esmoler” de que falava Francisco? Com certeza não se trata de um grande mendigo. O “grande esmoler” que o santo lembra em sua fala é Deus.

“Duplos” trata de um tempo em que o esmoler ainda não era um mendigo, mas o seu contrário. Ainda na primeira metade do século XIX é este sentido que habita na palavra. No dicionário da Língua Portuguesa de Antônio Moraes Silva Lisboa (1831), esmoler é aquele que “destribue esmolas”.

58

Tendo como sinônimo o termo caritativo ou esmolador, “amigo de fazer esmolas.59 Nos documentos da Santa Casa de Misericórdia, instituição de caridade que surge em Portugal e que se espalha por todas as colônias portuguesas, inclusive pelo Brasil, o termo carrega esse mesmo sentido. O

esmoler era um funcionário que na instituição se encarregava de arrecadar as

esmolas que os benfeitores destinavam através da Santa Casa aos pobres. Seu cargo era bastante cobiçado porque implicava em reduções de impostos e elevação social. No início do século XX, o termo vai adquirindo uma nova aderência. Na mesma medida que o cargo de esmoler vai se extinguindo dentro da Santa Casa de Misericórdia, junto com a crise da própria instituição, o termo vai se imantando no corpo do mendigo e um e outro passam a ser vistos a partir da mesma camada de sentidos.

...

Mas nos tempos de São Francisco, o grande esmoler, aquele que dispõe de todas as esmolas para todos os necessitados é Deus. Os menores habitam as Ordens religiosas. São os responsáveis pela distribuição das esmolas aos pobres que dependiam da Ordem para se manter e manter sua família. É desses tempos e de sua emergência que trata esse texto. Tempo dos mendigos sábios, dos filósofos que para se tornarem sábios verdadeiros e perfeitos escolheram o caminho da mendicância. A mendicância não tem aí sinônimo de necessidade, mas de glória, de superação de si mesmo, de vitória sobre as fraquezas do corpo e da alma. Pretende-se a partir de um estilo de vida escrever a si mesmo como memória, como exemplo a ser seguido e admirado. Tempos que são cortados por um outro tempo. O tempo dos santos na terra, dos santos em vida, dos homens santos, do uir sanctus. Tempos que instauram uma outra sabedoria: a sabedoria da humildade e da simplicidade e que não se voltam para a perfeição na terra, mas para a salvação da alma após

a morte. Nesses dois movimentos, do mendigo sábio e do mendigo santo uma ética se inscreve, instaurando modelos de se anunciar, de se dizer. Trata-se de uma operação da espiritualidade. A espiritualidade, no mundo marcado pelos paradigmas cristãos, tornou-se quase sinônimo de religiosidade. Para Michel Foucault, a espiritualidade seria esse lugar que permite o acesso do sujeito a um certo modo de ser e às transformações que o sujeito deve operar em si mesmo para atingir esse modo de ser.60 No mundo antigo existe, segundo ele quase uma identidade entre espiritualidade e filosofia. O êthos do sujeito, ou seja, sua maneira de ser e de se conduzir na vida, seria belo quanto mais próximo o sujeito estivesse da sabedoria. No mundo cristão medieval, esse êthos é atravessado por um novo conceito e uma nova prática: a caridade. Não se tratava mais de buscar a perfeição para se tornar exemplo, memória, mas de viver de acordo com a caridade para encontrar na morte a salvação da alma.

Do mendigo sábio ao mendigo santo, rupturas, deslocamentos de camadas de sentidos. Mas também o mendigo santo em algum momento da história foi deslocado, sobrando à prática da mendicância o inestético das formas, a vadiagem dos gestos, a incompreensão das horas. “Dobras” trata desse descontínuo: do mendigo sábio ao mendigo santo. Sobre o mendigo inestético, este que povoará o período moderno e se constituirá em paisagem de uma geografia do assombroso, os “Enclausurados” já tratou. Ele é o que sobrou do mendigo sábio e do mendigo santo, estilhaçados por uma nova maquinaria da verdade, por uma nova engenharia de sentidos que passa a maquinar o gesto de pedir numa outra trama destituída de um êthos, de uma estética e de um sentido.

60

FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, política. Ditos e Escritos V, RJ: Forense Universitária, 2004, p. 279.

Por que esta parte tem o título de duplos? Por que se trata de deslocamentos na constituição de um sujeito, o sujeito mendigo. Trata-se de, a partir do confronto entre dois êthos, o antigo e o medieval, pensar o sujeito como um duplo, como um conjunto de operações de si sobre si mesmo e na relação com os outros, que instaura linhas de envergadura que vergam uma forma de ser e fazem dela o outro de si mesma. Duplos que estão presentes na passagem do mendigo sábio para o mendigo santo. Mas duplos que estão presentes também na passagem do homem ignorante e possuidor de bens materiais ao mendigo sábio e perfeito nas ações, nas palavras e nos gestos. Duplos que se fazem presentes na passagem do homem pecador e detentor de posses para o mendigo santo, humilde e simples. São Francisco de Assis é o duplo do jovem rico da região do Espoleto, o sábio Cráton é o duplo do homem rico e opulento da cidade de Tebas. Eles, assim como os outros sujeitos deste texto, são duplos de uma forma de viver e instauradores de uma poética de singularidade que fez de suas existências signos de um êthos, emblemas de uma época.

DUPLOS

E se Teseu não tivesse nenhum fio para guiá-lo na saída do labirinto? E se no labirinto não houvesse um minotauro? E se não houvesse, na volta, nenhuma espera de Ariadne? E se Dédalo tivesse construído o labirinto porque não sabia falar outra linguagem para dizer dos caminhos do mundo, das não-saídas da vida? E então o rio não se fizera metáfora para ele: muito reto. Não também o jogo: muito certo. E querendo ele falar dos mundos que compunham o tempo criou o labirinto. Mas lá resolveu colocar também o tempo e fechou as saídas. Para ele, o tempo não abria portas, nem curava feridas, nem resolvia enigmas. Ele simplesmente estava lá, desde sempre, acompanhando os mundos e as coisas da vida. Mas por sua presença-sempre, deu-se a ser lido como curandeiro das horas, mestre a resolver os problemas de difícil solução, sábio decifrador dos enigmas. Mas ele, o tempo, só estava lá a dar presença aos mundos. As saídas, a luz, a sabedoria, o aprendizado, a cura eram coisas metafísicas demais. Foi Dédalo que fez Teseu entrar no labirinto, porque na construção do labirinto, se não houve o minotauro, também não existiu Minos. E a entrada de Teseu se faz acontecimento. Mas não se trata desses acontecimentos de que falam os historiadores, eventos de um tempo estriado, mas acontecimento que se estira no tempo e se faz variar em diversos presentes e se atualiza em distintos e estranhos mundos. Assim, a entrada de Teseu no labirinto: ela não tem uma causa certa, um fim definido, um caminho guiado por um fio, uma saída já definida por um espera. Sua história não está lá fora à espera, mas ali nos mundos que habitam o labirinto, enquistada em vários tempos, agregada a vários presentes.

Então se fosse essa a história verdadeira Teseu não seria herói, não carregaria consigo a tragédia do ser, porque, para ele imantado aos mundos e aos tempos, não haveria a clausura da definição. Mas essa história não é a

Ariadne e na saída a encontrou. Tornou-se herói. Enclausurado no conceito, todas as tragédias se abateram sobre ele. Seu tempo reduziu-se ao tempo do herói, seu mundo empobreceu, aprisionado numa única e infeliz trama.

...

E eis que a clausura da definição se espalhou, restringindo vidas, corpos, coisas. O existir ganhou forma opaca, o tempo ganhou forma reta, o espaço, forma material. E as vidas, todas as vidas, forma-ser. E as coisas se inverteram. E a reta dominou o tempo, a matéria dominou o espaço, a opacidade dominou o existir, e o ser dominou as vidas. E então falar desses fluxos de rua, desses textos de rua, dessas existências que se dão a ler na rua passou a carregar consigo um imperativo: perguntar quem são e indagar sobre sua origem. Mendigos, sujeitos que vivem da mendicância, foi a resposta construída no tempo. Eram assim conhecidos entre os gregos e romanos, entre os judeus e os homens medievais, também entre os modernos e hoje ainda... Mas o que é a mendicância? Insiste a pergunta pelo ser.

A mendicância é uma forma de obtenção da sobrevivência e se dá no limite possível do processo de expropiação do trabalho nas sociedades de classes. Sendo assim, ela é ausência-de-trabalho ou não-trabalho, e desse modo configura a forma sob a qual aparecerá historicamente como fenômeno geral, trazendo a memória desse processo amplo de destituição...61

Em busca da gênese histórica da mendicância Marie-Ghislaine Stoffels faz um retorno ao final da Grécia Arcaica, momento em que a mesma está se decompondo:

61

ARAÚJO, Maria Neayára de Oliveira. A Miséria e os Dias – História Social da Mendicância no Ceará. SP: Hucitec, 2000, p.13.

Tal processo liga-se à consolidação da propriedade privada, ao estabelecimento da escravidão, à formação das cidades e estados, à difusão do direito escrito e ao aparecimento concomitante da economia monetária do trabalho. Os mendigos são produtos da expropriação de terras comuns, que os expulsa para a cidade.62

Para a autora, os mendigos:

Aparecem ao lado de agrupamentos nascentes de artesãos e mercadores, em determinadas áreas urbanas, instituições de mendigos profissionais em pátios de milagres. A mendicância constitui, na cidade, uma atividade complementar ou alternativa ao exercício dos pequenos métiers. Cínicos e stoicos que, recrutados entre os mendigos e outros despojados, tornam-se porta-vozes dos grupos dominados.63

O trabalho de Stoffes é resultado da tese de doutorado, defendida na década de 70. Num momento em que o estruturalismo que havia “contaminado” as Ciências Humanas está sendo questionado, a autora o reafirmará, mas de forma singular. Faz uma história da mendicância a partir da relação existência-estrutura. Trabalha a fenomenologia existencialista, especialmente o conceito de dasein de Heidegger, para possibilitar um resgate da historicidade dentro de uma abordagem estruturalista. O que instaura alguns desafios: Como trabalhar a historicidade a partir do modelo estruturalista, se para o mesmo a historicidade é um falso problema, levantado por uma ciência que, como afirmara Lévi-Strauss, andava para trás? Como

62

STOFFES, Marie-Ghrislaine. Os Mendigos na cidade de São Paulo. RJ: Paz e Terra, 1977, p.60.

conciliar, pois, o estruturalismo de Lévi-Strauss com uma historicidade, por ele, repudiada? Stoffes ao negligenciar esse problema termina por aprisionar seu objeto: Usa o dasein para “analisar as possibilidades do universo da consciência dos mendigos”,64

mas lidando com essa consciência como uma invariante, a autora termina por imprimir ao dasein uma mesmidade que se repete no tempo. O dasein perde seu maior charme: a existência como lugar onde o ser só existe para fora de si mesmo, junto dos outros. Um ser que não carrega consigo uma consciência fixa, natural.

Numa perspectiva heideggeriana, Stoffes pensa a mendicância enquanto fenômeno e remete a sua gênese ao surgimento da propriedade privada. Nessa “gênese histórica”, a autora compreende a mendicância como produto da expropriação das terras comunais ocorridas na Grécia Antiga. Numa des-historicização radical, Stoffes remete esse período grego (século VIII a.C.) aos cínicos e estóicos e aos pátios dos milagres, embora os pátios de milagres sejam cenários das narrativas policiais, populares e literárias do período moderno e não do mundo antigo, e os cínicos e estóicos sejam filósofos que surgiram no período helenístico, portanto muitos séculos depois da crise da sociedade arcaica.

Na linha reta de seu relato, Stoffes explica os estóicos e cínicos como homens recrutados entre os miseráveis e mendigos e desses se tornaram

porta-voz. A mendicância seria esse fenômeno, esse lugar inerte, marcado

pela expropriação que não carrega consigo múltiplos sentidos, mas apenas o sentido da ausência, da necessidade, do limite do viver humano. E a partir desse olhar, Stoffes explica os filósofos radicais do helenismo como homens miseráveis que se tornaram filósofos. A sua lógica que compreende a mendicância apenas a partir da necessidade não consegue pensar o movimento contrário: homens de posse que se despojaram para viver a mendicância. A mendicância deixa, pois, de ser um fenômeno, e torna-se um

modo de vida, um estilo de existência. Não estaria ela associada à falta, à necessidade, mas à recusa, ao despojamento. Não estaria condicionada a um fato inexorável, mas a uma forma, uma escolha. Pensar essa dimensão da mendicância é estilhaçar lugares cristalizados. E é, na mesma medida, pulverizar seus sentidos, multiplicar sua rostidade ou talvez quebrar essa rostidade de uma vez. É instaurar, ali onde o conceito imobiliza a história, onde o fenômeno recorta a extensão, uma linha de fuga que faça a travessia sobre outras paragens.

Mas como fazer esse salto? A linha de fuga possibilita o acontecimento, a consciência, o fenômeno. Como fugir de uma consciência que vê a mesmidade e ali, na mesmidade, instaura o fenômeno, senão usando do acontecimento suas potencialidades de variação, seus ritmos vários de duração? Com Deleuze o acontecimento é uma luta contra o fenômeno, contra o evento, contra isso que se dar a aparecer em sua unidade, em sua mesmidade, em sua representação. Fazer fugir sentidos, formas, fazer o tempo variar, romper com suas medidas, esgarçar suas diferenças para fazer pulsar no corpo do mendigo-mesmo o sábio, o santo, o louco.

O sábio

Nasceu em Tebas e viveu no final do século IV e início do século III a. C. Pertencia, segundo Diógenes Laércio, a uma distinta família, tinha muito dinheiro, cerca de duzentos talentos. Um dia distribuiu grande parte do que tinha aos seus concidadãos. Fora Diógenes, disse Diócles a Diógenes Laércio, que o persuadiu a abandonar os seus campos e deixá-los ali para que servissem de pastagem às ovelhas. Também fora ele que o incentivou a jogar no mar todo o dinheiro que possuía. Sabendo dos “maus conselhos” muitos parentes vinham visitá-lo com o intuito de convencê-lo a não tomar atitude tão radical. O espírito do mundo, das coisas pueris e das posses superficiais

lutava contra o espírito do sábio. Era uma luta onde só havia um gigante, o sábio. Então o espírito do mundo foi derrotado e ele expulsou seus parentes, por vezes perseguindo-os estradas a fora com um bastão. Chamava-se Crátes e depois de distribuir suas posses pela cidade, conta Diógenes Laércio, que Demétrio de Magnésia narrara ter Crátes chamado um banqueiro e lhe entregado uma parte restante do dinheiro,

sob a condição de que se seus filhos ficassem órfão e sem cultura, desse-lhes o dinheiro, mas se se tornassem filósofos, distribuísse-o ao povo, porque seus filhos, caso se dedicassem à filosofia, não deveriam ter necessidade de nada.65

Dali em diante nada, a não ser sua sabedoria, lhe oferecia repouso ou morada. Nem polis, nem fama, nem posses. Tampouco a vaidade. Afirma Diógenes Laércio que sua pátria passou a ser a obscuridade e a pobreza, coisas inexpugnáveis pela sorte, e por concidadãos.66 Tornou-se apátrida. A polis, após tantas tragédias que se abateram sobre ela no período helenístico, já não trazia no olhar do sábio, nenhum signo de valor, de estabilidade ou de paz. Tornara-se um bem efêmero, pois podia a qualquer momento ser expugnada e, portanto, não oferecia ao sábio a estabilidade, o refúgio, a segurança de que ele necessitava para viver a eudemonia, ou seja, a condição de felicidade completa, alcançada pela total tranqüilidade da alma.

Mas o tempo de Crátes não era tempo de estabilidade, muito menos de uma total tranqüilidade da alma. Eram tempos difíceis, marcados pela invasão macedônica e pela completa derrisão dos valores amados pelos gregos: a política adorada por Platão servia de palco para um jovem tirano alargar seus braços e dominar grande parte do mundo conhecido. A polis, sem sua

65

LAÉRCIO, Diógenes. Apud REALLE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Volume III, p.36.

autonomia, tinha perdido seu brilho. Eram tempos de conquistas e de guerra, tempos de muitas mortes e pouca segurança. Tempos em que as estradas já não ofereciam caminhos e as cidades não mais ofereciam repouso. O medo passa a ser o grande personagem: medo da morte, da fome, da violência, medo do medo... E foi nessa geografia das más horas que Alexandre, que não era grande para Crátes, encontrou o filósofo da eudemonia e perguntou-lhe se queria que sua cidade natal fosse reconstruída. Ao que ele respondeu: “E para quê? Talvez outro Alexandre venha a destruí-la.”67

Mas não será esse o primeiro diálogo entre um filósofo e os “poderosos”. É clássica a passagem de Diógenes Laércio na qual ele conta que “certa vez [Diógenes] tomava sol no Crâneo, aproximando-se Alexandre disse: „Pede-me o que quiseres‟. E Diógenes respondeu prontamente: „Deixe- me o meu sol.‟”68

Também conhecido ficou, a partir de Diógenes Laércio, o encontro de um filósofo cínico com Felipe II. O rei da Macedônia acabara de vencer os gregos na batalha de Queronéia. E estava o exército grego, desarmado, a sua frente, vivendo a terrível espera do que iria acontecer com seu destino: prisão, escravidão, morte? Mas um soldado, entre todos, parecia não se importar muito com o que estava acontecendo ou com o que iria acontecer. Chamava-se Dionísio e sua forma nada comedida, nada apolínea, nada reta frente ao poder do grande rei parecia fazer jus ao nome que não anunciara a Felipe II quando o macedônico poderoso lhe perguntou quem era: “observador da tua insaciável avidez”.69 Foi a resposta que substituiu o nome.

Esses episódios narrados se escrevem na economia de leitura do olhar de hoje apenas com episódios do campo da ironia, do risível, do pitoresco. E, no

67

LAÉRCIO, Diógenes. Apud REALLE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Volume III, p. 37.

68

LAÉRCIO, Diógenes. Apud REALLE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Volume III, p. 31.

69 O que Dionísio faz senão usar a liberdade da palavra? Os gregos chamavam a esse uso livre da

palavra (livre de todo medo, de toda convenção, de toda medida) de parrésia. A parrésia é a liberdade da palavra que, na filosofia cínica, terá enorme importância, juntamente com a anaídeia, a