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Uma topografia de corpos erotizados

20 de abril de 1997. Cinco “meninos bons, doces, gentis e meigos”27

Divertirem-se como puderam, trocaram de carro muitas vezes, desfilando pela

27

Estudo de caso / Caso Pataxó. Recurso em sentido estrito. Processo 17901/97. Assim os definiram as testemunhas de defesa no processo 17901/97.

cidade com seus automóveis importados. Eram três horas da madrugada quando decidiram andar pela cidade “para encontrar alguma coisa para (...) curtir.”28

“Foi quando avistaram um ser humano, que não parecia um ser

humano, parecia um mendigo. Estava numa situação de desamparo, na noite

gelada, dormindo no banco de uma parada de ônibus” 29. Não sabem eles se é mulher, homem, não conhecem sua história, ignoram sua vida, sua família, seus sofrimentos e alegrias, sequer vêem seu rosto. A pessoa que dorme não lhes é familiar. Apenas se faz conhecer por signos opostos: dorme na rua, desprotegida, indefesa. É o outro desses que se protegem no carro, nas roupas que vestem, na casa em que dormem, no cobertor que acolhe seu frio, no corpo descansado, alimentado e limpo. Decidem fazer alguma coisa.

“Firmes na intenção, saíram pela cidade à procura de combustível. Num posto de gasolina todos desceram do carro. Não encontraram vasilhame para comprar. Os cinco “bem-nascidos” dirigiram-se então a um latão de lixo, onde pegaram dois recipientes. O frentista alertou-os para o fato de aquelas vasilhas estarem sujas de óleo, o que poderia estragar o carburador do carro. (...) Responderam que o combustível não precisaria estar limpo. Afinal, seria só para acender um fogo e fazer uma bricadeira...”30

E então depois de duas horas, os cinco “meninos” – Max Rogério Alves, Antônio Novély Cardoso de Vila Nova, Tomás de Oliveira Almeida, Eron Chaves de Oliveira e o menor “G” voltaram ao local onde o mendigo ainda dormia. “ O menor G (...) e seu primo Eron levaram o combustível. Os outros três dividiram as caixas de fósforo(...). Eron e G. jogaram o combustível na desgraçada vítima e os demais riscaram os fósforos.Tudo

28 Estudo de caso / Caso Pataxó. Recurso em sentido estrito. Processo 17901/97, fl. 401 29

Estudo de caso/ Caso Pataxó. Recurso em sentido estrito. Processo 17901/97, p. 1. Grifos meus.

conforme o combinado.31 A pessoa que dorme é incendiada. Já era final da madrugada. “A vítima virou uma tocha humana”32

Passageiros de um ônibus que por ali passava param para prestar socorro. A pessoa que, num primeiro momento se pensou ser um boneco em chamas,

...consumia-se num indescritível sofrimento. Contorcia-se e tinha convulsões de dor. Tatiana afirmou que “no local em que (...) [ a vítima ] pegava fogo parecia ter uma espécie de óleo espalhado pelo chão e que a mesma acredita ser do próprio corpo da vítima, pois „aquele óleo estava ainda misturado com carne humana‟ (fls. 119). Outros disseram que seu rosto „se desmanchava‟. Rojas afirmou que se fosse um animal, tê-lo-ía sacrificado33.

Levado ao hospital, perguntou repetidas vezes, “por que fizeram isso comigo?”34. Depois entrou em coma e faleceu. Era também madrugada. Duas

da madrugada do dia 21 de abril. A mídia denuncia o crime. E na morte, o outro que apenas dormia na parada de ônibus é decodificado. Era um homem. Era um índio. Era Galdino – Galdino Jesus dos Santos, índio da tribo pataxó hã-hã-hãe.

Comoção nacional. Diante da morte do índio Galdino, um dos criminosos tenta explicar à imprensa seu crime, explicar o inexplicável: eu

pensei que fosse um mendigo. Ele não queria matar o índio Galdino, pensou

que fosse um mendigo. Essa fala poderia acionar apenas uma explicação: “desumanidade!” E, novamente, a bestialidade do crime não se explica. O

31 Estudo de Caso/Caso Pataxó. Recurso em sentido estrito. Processo 17901/97, p.2. 32

Estudo de Caso/Caso Pataxó. Recurso em sentido estrito. Processo 17901/97, p. 2.

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Estudo de Caso/Caso Pataxó. Recurso em sentido estrito. Processo 17901/97, p.2.

absurdo contido na fala parece superar o absurdo do ato, parece carregar um irracionalismo fora de toda possibilidade de explicação e de entendimento. Diante da fala dita, a obviedade da pergunta: se fosse um mendigo, o crime seria menor, a comoção menos intensa, a dor do corpo em chamas menos sentida? O dito carrega a aberração de um pensamento, a deturpação de uma moral, o desumano do humano. Por isso, uma aporia. E, no entanto, essa aporia não teria um suporte histórico? Em que dobra do tempo o mendigo foi despojado de sua humanidade? Há uma conexão entre a aporia do dito e os tempos da História, ou simplesmente devemos jogá-la para as margens, alegando irracionalismo, bestialidade, exceção, excrescência do social? Talvez num movimento a contra-mão possamos pensar conexões entre o dito do criminoso e a imagem da TV que aciona a invisibilidade do mendigo.

Em um e outro, o mendigo é a diferença, a não-humanidade pela coisificação do ser. Tornado coisa na fala do criminoso - eu pensei que fosse

um mendigo – ele é esse despojado de sua humanidade. Mas é também

despojado de sua humanidade na propaganda da TV, uma vez que não ser visto implica a perda do referente humano elementar, o corpo. Em um e outro, o mendigo é esse desinvestido de interrogação. É um dado sobre o qual o mistério não habita e a sedução não faz morada. Ali, nesse corpo despojado de tudo e até de si mesmo, o olhar não aciona intensidades, comoção. Corpo sobre o qual a pergunta não deseja interrogar. E, no entanto, esse que parece o mesmo a atravessar as teias do tempo, esse que se confunde com o próprio tempo, nos tempos modernos cortava o olhar, atravessava o visto e fazia morada, para além das calçadas e praças no imaginário, nos quadros e nas narrativas.