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“A história de uma coisa é em geral a história das forças que dela se apoderam” (Deleuze)

Este texto quis, não explicar, mas dizer dessas forças. Forças que se apoderam do corpo mendigo ali, exatamente ali, onde os modos de estar a pedir nas ruas perdem sua exatidão. Houve um tempo em que os mendigos aderiam às narrativas de compaixão. Mas houve outro tempo – e foi desse tempo que nos ocupamos – que as palavras com relação ao pobre, ao mendigo, ao miserável saltaram das coisas e dos corpos, e no salto perderam sua aderência. Tornaram-se hiatos entre o visto e o dito. Aí as palavras, que já não conseguiam dar conta do visto, se multiplicaram. Mas continuaram sem conseguir dar conta dessa figura que vivia a pedir nas ruas. As palavras buscaram outras palavras, mas o corpo, ainda assim se fez excesso, se fez sobra amorfa de todos os textos, carregando consigo um pouco do inenarrável dos mundos. E, diante do excesso da presença, e sem conseguir dela se apoderar as forças se multiplicaram para dobrá-la, ajustá-la ao compreensível.

Esse texto quis expor essas forças, fazê-las vibrar em seus movimentos. Por isso, um texto e seus cenários. Todos dispostos no período moderno, mas engendrados em tramas que seguem seus próprios tempos, suas questões e seus espaços. Assim, o trancafiamento posto para vários países é o primeiro cenário desse texto. E como cenário, segue espacialidades e contornos temporais que lhe são imanentes. Seus traços produzem formas e instauram fluxos de intensidades. Esse cenário abre o texto não, porque seja a causa de tudo o que vem em seguida ou porque está integrado numa sucessão temporal anterior. Mas porque será implodido pelas intensidades dos outros cenários. Sua unidade é estilhaçada por uma erotização do mundo dos miseráveis. O

trancafiamento não é o único acontecimento possível para se pensar o período moderno. Nas brechas das palavras que escreveram sobre os miseráveis – seu mundo, sua língua, seus tipos – o trancafiamento perdeu sua autonomia. Os rostos enrugados e os pés sujos dos personagens das telas de Caravaggio, as aventuras da monarquia de Argot, a língua secreta dos viventes do “pátio dos milagres” acionam um lugar de erotização que a história do trancafiamento parece esconder. E, no entanto, apenas para um olhar apressado, pois a prisão desses deambulantes das ruas, desses viventes da compaixão alheia, mais do que esconder, traz à presença um problema, um fluxo de inquietação.

São esses fluxos distribuídos de forma irregular pelos vários cenários que acionam narrativas fantásticas, como a Monarquia de Argot. A narrativa de Argot é tratada na historiografia como produto da ficção e assim permanece num cenário suspenso, paralelo ao real. Mas então por que Argot como um cenário – adquirindo assim, o mesmo nível de importância do trancafiamento? – Porque esse texto quis falar de outras forças provenientes de Argot: as linhas de erotização que instauram componentes de estranhamento, não no mundo da ficção, mas nas linhas do real que também fazem parte de uma cartografia da ficção. De Argot, de sua linguagem secreta, de suas formas disformes de viver, assim como dos rostos de Caravaggio, soltam-se fios que estilhaçam a suposta unidade do olhar do trancafiamento. Um olhar que é temporal, que se esgarça no encontro com outras forças que seguem direções múltiplas: a força da compaixão, nas telas de Caravaggio, na resistência das pessoas às prisões dos pedintes; as forças do estranhamento nas narrativas que insistem em afirmar o Estado de Argot, seus reis e seus súditos; as forças da ordem que querem presos todos esses personagens destoantes. E, no entanto, mesmo essas forças se cruzam, produzindo outros sentidos e outras verdades, como as autoridades na cidade romana que ao prenderem dois mendigos, insistem na sua diferença, perguntam por seu

estranhamento, por sua língua secreta e por seus estranhos companheiros de “profissão”.

A cada força corresponde uma linha do tempo: o trancafiamento tem seu ritmo temporal próprio, sua emergência não se confunde com a compaixão, nem com seu ritmo. E a cada cenário corresponde um feixe mundos, que, no entanto, não se sucedem, mas estão ali, dispostos no cenário, como a arrancar do drama que se desenrola o centro de uma imagem e unidade da narrativa. Dessa forma, o próprio cenário emerge nesse texto como um personagem esfacelando seu centro e assim, o leitor tal qual o espectador das telas de Caravaggio, não vê nenhuma luz vinda de um centro para iluminar a paisagem e dar-lhe sentido. A luz acompanha o próprio olhar. Vem de fora e por isso, o espectador do quadro pode olhar a partir de qualquer ângulo. Assim também o leitor desavisado que seguiu esse texto página à página, insistindo em seguir os números, setas para o olhar. Poderia, ele, ter entrado em qualquer cenário: primeiro as telas de Caravaggio, depois o trancafiamento, antes talvez, Argot ou quem sabe, as narrativas do olhar que quiseram dizer da diferença entre o olhar de hoje, que não vê o mendigo, e o olhar moderno que se enche dele. Mas agora é tarde, a linha dos números não levou à linha reta da compreensão. Tampouco esse foi o objetivo dessa historiadora que não acredita em números exatos, nem em retas. Meu objetivo, mais simples, mais singelo, foi apenas pôr no texto tramas e dramas modernos que ao acionarem vários sentidos para o pobre, implodiram seu corpo, esfacelaram sua forma, tornando-o partes constitutivas de cenários que não se sucedem, nem se acoplam, nem se ajustam. Quis lançar o mendigo no tempo, não para buscar uma linha evolutiva, mas para trazer para o texto os estilhaços desse movimento, desautorizar sua suposta a-temporalidade, fazendo-o vibrar noutras narrativas, pulsar em outros olhares, irreconhecíveis para os tempos de hoje, onde a Monarquia de Argot foi silenciada, com sua língua secreta, com seus tipos estranhos. Tempos novos onde o excesso já não

provoca espanto, já não leva aquele infinito de que falava Levinas: o infinito carregado de mistério, de sedução, de fascínio. Sobre o mendigo recai, nesses novos tempos, a impossibilidade do humano, a exorcização do desejo e do fascínio.

Mas desses objetivos essa historiadora não disse antes. Talvez por querer que o leitor imprimisse ao texto seus sentidos, acoplasse aos cenários suas impressões. Talvez por esquecimento e por falta de prudência: um aviso e muitos enganos teriam sido evitados. Talvez, mas apenas talvez, por um pouco de maldade... E, no entanto, isso é apenas uma introdução num lugar errado. Para pôr fim aos rumores, como diria Deleuze.

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ª parte:

Duplos

Fraco não é aquele que perde

empiricamente, factualmente, mas o