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Ele não tem nome, nem rosto. Seu endereço confunde-se com as ruas e seus passantes. Mas dele se fala e uma visibilidade se anuncia: ele é esse que cheira mal, que cobre seu corpo de trapos, que pede, abençoa e agradece. É esse que precisa e que por isso, nunca pode ser arrogante, ingrato. É esse que deve respeitar os limites: um portão, um restaurante, um shopping são mais do que fronteiras físicas; são fronteiras simbólicas que não estão postas na ordem do escrito. Não tem rosto, mas ali onde uma alma se estende a doar e outra a receber uma rostidade se instaura. Atualizada por um gesto e um jeito de estar no mundo, a rostidade da mendicância se anuncia no uso e na forma de estar do corpo e ganha visibilidade numa dança de gestos e de falas aparentemente naturais. Gestos cuidadosamente definidos... costurados a uma rua, a uma calçada. Essa existência dada a ler na rua, confunde-se com tempos e em suas dobras parece perder sua historicidade, sua contingência e tornar-se universal.

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1777. Um concurso inusitado em Paris promove uma premiação para aquele que melhor localizasse as causas da mendicância e apresentasse meios eficazes para extirpá-la. Muitas propostas são feitas: mandar os mendigos de volta às suas comunidades, onde deveriam trabalhar; suprimir as esmolas; diminuir o número de hospitais que acolhiam os pobres; estabelecer montepios, fundar oficinas de trabalho, criar casas de forca.

Naqueles anos, a mendicância atravessa o olhar e instaura uma topografia de assombro e medo, cujos limites não cessam de ser implodidos por esses passos que pedem, por essas mãos estendidas. Mãos que não cessam de se multiplicar, de se fazer presença e de incomodar os olhares. O olhar moderno trancafia a mendicância pelo que ela carrega em sua potencialidade de fazer ver. O corpo mendigo aciona essa visibilidade do assombro e da inquietação que não cessa de produzir efeitos. O concurso que pretendia

eliminar a mendicância, extirpando suas causas é produto dessa maquinaria do olhar. Um olhar, portanto, que não simplesmente ver, mas produz um dar a ver, engendra uma forma de visibilidade que passa antes de tudo por uma narrativa.

2009. Ele está ali com suas vestes rasgadas e sujas, seu olhar triste e profundo. Seu corpo parece carregar as marcas de todas as dores do mundo. Sua mão estendida anuncia no gesto a escassez da vida, a pobreza do corpo, uma ansiedade na alma. Mas essa imagem, acionada pela propaganda da TV23 é o outro daqueles tempos do concurso de 1777, resgatado pelo filósofo. A imagem da TV carrega o incômodo da invisibilidade. Aciona o olhar de uma criança que, pela “natureza infantil”, consegue ver o que o adulto não enxerga. O “quem?” do Adulto diante da referência da criança ao mendigo abandonado é mais do que uma pergunta, é um lugar de defasagem entre esses dois olhares.

O mendigo é um referente apenas diante do olhar infantil. Seu corpo, sua imagem, sua presença tornam-se ausência frente ao olhar que não carrega consigo nenhuma inquietação, nenhuma indignação, nenhum traço de misericórdia ou compaixão. Criança e adulto estão ali, no mesmo lugar, mas não diante da mesma presença. O mendigo que a criança vê e que o adulto não enxerga carrega consigo alguns signos que parecem trans-históricos: a pobreza da roupa, as vestes rasgadas, a mão estendida indiciando a escassez da vida, o olhar silencioso e triste, sinalizando o desespero da alma: o mesmo acontecimento atualizado, efetuação que não parece destoar no tempo.

1777. 2009. Presentes para o historiador. O historiador trabalha, diz Deleuze, com essas efetuações. São elas sempre lugares do atual, dessas forças que se incorporam, que se materializam, que são o outro do virtual, esse incorpóreo carregado de devires e de intensidades. O virtual não pertence

23 Refiro-me aqui a propaganda veiculada em várias redes de televisão, onde aparecem três

sujeitos: uma mãe, uma criança e um mendigo abandonando e maltrapilho. A mãe não o vê, apenas a criança o enxerga.

ao tempo das coisas medidas, mensuráveis, dos corpos resgatáveis; ele é sempre essa força incorpórea que não está nunca simplesmente no presente porque o corta na direção passado-futuro. Tempo da efetuação, o presente é, portanto, o tempo do historiador. Trabalha com essas pontas do presente que insiste em colar a um passado, arrumar em um futuro. Artesão do tempo que trabalha, o historiador, no entanto, tal qual Penélope ao tecer sua colcha, a amarra a uma trama do passado e a uma espera do futuro. Mas um virtual, um não-dito, um não pulsado escapa e desfaz os contornos da colcha a cada noite arrastada pelo dia.

Talvez não seja mesmo a tarefa do historiador amarrar os tempos, enclausurá-lo num fio, mas, como Penélope nas sombras do dia, esgarçar a colcha, desarranjar os fios, fazê-los pulsar em durações diferentes, em tempos irreconciliáveis: o tempo da lembrança do casamento com Odisseu, o tempo da espera do seu retorno, o tempo do palácio invadido: tempos de tessituras, mas também de desalinhos, de decomposição, de anunciação de devires, do virtual que não se efetiva nem na colcha, nem nos seus retalhos. E assim, pode o historiador trabalhar também com os restos de tempo, sem pensá-los como resquícios, com os fios mais soltos e desalinhados, sem pensá-los como exceções.

1777, 2009 parecem falar da mesma coisa, do mesmo acontecimento: a mendicância. Deve o historiador buscar um caminho que conecte os fios, a trama que os enreda, o fio que liga no tempo os rastros dos mendigos? Se deve esta historiadora insistirá, tal qual os personagens excêntricos de Almodóvar, em andar pelos atalhos.

Se entre 1777 e 2009 signos parecem instaurar um mesmo texto, a maquinaria que aciona a tradução desses signos já não é a mesma. Em 1777, o olhar é inquieto, atravessado por esse corpo incômodo que na rua pede e vive de pedir. Como não ver esse que pede nas calçadas, nas escadarias, no pátio, nas praças e nas portas? Como não ver esse que não cessa de produzir

múltiplos, de acionar duplos? O mendigo moderno é esse que salta às vistas, enche os olhares e por isso é transbordamento, excesso de si, incômodo incomensurável para o outro. O mendigo acontece na modernidade a partir de uma geografia do assombro, onde ele, esse que vaga pela cidade, que se arrasta pelas estradas, que dorme nas praças é o mesmo que aciona a multidão. A modernidade temerá a multidão pelo que ela pode trazer de doenças, epidemias, morte.

Mas temerá também na multidão o inesperado, a impossibilidade de domínio: os mendigos se fazem excesso. E é o excesso, não o mendigo apenas que incomoda as autoridades e que faz acionar leis e editos contra a vadiagem. A multidão moderna estaria para o exterior de que fala Blanchot, que está ali e não lá fora, mas é infinito, porque está fora de qualquer possibilidade de fechamento. Esse medo da multidão aciona um olhar que não separa, que não especifica. Não é esse olhar que incomodará Foucault na sua

História da Loucura? Foucault escreve a História da Loucura marcado por

esse olhar que aciona o todo e não as partes, que não especifica, mas generaliza.

O olhar moderno é generalizador. É esse olhar que junta, sem produzir distinções entre vagabundos, insanos, perturbadores, doentes nessa nova engenharia que são as casas de internamento. O internamento, dirá Foucault, é da ordem clássica. E, por isso, elas não são apenas inglesas. Multiplicam-se na Inglaterra, França, Holanda, Itália, Espanha, Alemanha, Portugal. Dirá Michel Foucault:

“A prática do internamento designa uma nova reação à miséria, um novo patético, um outro relacionamento do

homem com aquilo que pode haver de inumano em sua existência.” 24

O inumano de que fala Foucault - a loucura, a pobreza, a doença - traz a desordem, o caos social. Não carrega as marcas coletivas ou individuais da salvação, mas traz as marcas da “ralé e do rebotalho” que produzem espanto, acionam horror. A mendicância é banida dos olhos, mas também a loucura e a doença. No século XVII, a internação será a grande marca institucional desses tempos marcados pelo extravasamento da diferença, pelo excesso que não se controla. Roger Chartier chama atenção de que em toda a Europa, entre os anos 1570-1650 aumenta o número de mendigos e vagabundos além do limite de tolerância aceitável pelas autoridades. Aí, se multiplicam as áreas perigosas dentro e fora das muralhas da cidade. Cabia dominar, segundo ele, esse mundo inquietante e perigoso dos marginais. O internamento será a resposta que a modernidade dará a sua própria inquietação.

Para Foucault, o internamento tem relação direta com a economia mercantilista, onde o pobre não tem valor, não é produtor, nem consumidor: não tem lugar. E por isso, a solução para os doentes, vagabundos e loucos seria o internamento, esse lugar para onde é levada toda essa margem que na sociedade se constitui em peso, fardo, coisa sem valor. Foucault chamará atenção que só o pensamento econômico do final século XVIII e do século XIX possibilitará a reabilitação moral do pobre, instaurando a reintegração econômica e social de sua personagem. A indigência torna-se coisa econômica e a mendicância resultado da miséria. Daí porque o ministro das finanças de Luís XVI, Turgot, fechará vários depósitos de mendicância. Turgot estaria inserido nesse novo olhar marcado pela reabilitação moral do pobre. Na Inglaterra, seguindo a mesma lógica francesa, poorhouses são

24

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica, 8ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p.58.

fundadas e se diferenciam das antigas workhouses. As poorhouses acolhem os indigentes por velhice, por doença. Já não há aquela confusão de rostos que assustara Howard, o viajante resgatado por Foucault do final do século XVIII. Mas é preciso parar um pouco.

Os testemunhos modernos, operacionalizados por Bronislaw Geremek e pelo próprio Michel Foucault, nos possibilitam enfrentar esse olhar mercantilista e pensar o internamento como esse lugar a partir do qual o medo do excesso se materializa, acionando a sinonímia mendicância/praga.

É o excesso e o medo que ele envolve que leva as cidades a fecharem seus portões a esses visitantes indesejáveis que vêm aos montes pelas estradas. Foucault chama atenção dos arqueiros de Paris encarregados de prenderem pequenos mendigos que ousassem entrar na cidade. Na mesma medida, Geremek, aponta uma rica documentação que teme essa presença associada ao excesso, ao transbordamento. Não se trata do pobre como problema econômico, mas desses corpos danados que carregam em si o estigma da infinição, da impossibilidade de compreensão. Pistas que nos são dadas por um Foucault menos preocupado com o olhar e mais preocupado com a microfísica do poder a se inscrever nos corpos. Em “Microfísica do Poder” é posta uma questão: “Por que os pobres não foram problematizados como fonte de perigo médico no século XVIII?”25

Para ele, até o século XVIII o amontoado não era tão grande para que a pobreza aparecesse como perigo. Até aí, o pobre funcionaria no interior da cidade como uma condição da existência urbana.

Diferente da “História da Loucura”, onde para eles não havia lugar, na “Microfísica do Poder” ele afirmará que os pobres da cidade eram pessoas que realizavam incumbências: levavam cartas, se encarregavam de despejar o lixo, apanhavam móveis, trapos, panos velhos e se incumbiam de retirá-los da cidade, redistribuí-los, vendê-los. Afirmará ele:

“Eles fazem parte da instrumentalização da vida urbana. Na época as casas não eram numeradas, não havia serviço postal, e quem conhecia a cidade, quem detinha o saber urbano em sua meticulosodade que assegurava várias funções fundamentais da cidade[...] era o pobre.”26

Assim, segundo Foucault, os pobres faziam parte da paisagem urbana, como os esgotos e a canalização, e por isso não podiam ser postos em questão. Eram, afirma ele, bastante úteis. Só no século XIX o pobre aparece como perigo. Dessa forma, seguindo as próprias pistas deixadas pelo filósofo, o problema posto para os tempos modernos e sua economia mercantilista não é a pobreza – como ele afirmara na “História da Loucura” – mas esse excesso sem ocupação, esse excesso que não tem funcionalidade. Cabia isolar esses corpos nefastos que recusam serem úteis e participarem da engenharia da cidade.

Cabia domar o excesso, por não ter lugar, por não carregar consigo um limite, uma finitude. Forma de sentir as coisas e os corpos que não se desloca da própria noção de espaço construída pelos modernos. O espaço moderno, diferente do espaço medieval é extensivo, infinito. Não guarda a finitude das identidades que se desmoronam, das hierarquias que se quebram, da teologia que já não demarca, do universo que já não tem fim. O extensivo assalta os tempos modernos e traz consigo a insegurança, o medo de todo corpo que perde a medida, e não aparece, na sua desmedida, a possibilidade de apreensão. O mendigo está para a inapreensão, para uma narrativa que não tem fim. Ele, assim como o louco, é esse corpo extensivo e sem limites, esse sem medida exata e sem controle.

É nesse ponto extensivo que podemos perceber o repúdio à mendicância. Aí, a mendicância não está imantada apenas ao crime. Se ela é trancafiada não o é pela potencialidade de crime que carrega, mas pela compreensão que não provoca, pelo excesso que traz consigo. Infinição que aciona essa economia do olhar que não cessa de ver e de perguntar pelo que é visto. Economia que se desencontra totalmente do olhar acionado pela propaganda da TV; esse olhar que não vê, que atravessa o corpo mendigo como fio invisível é impossível de ser reconhecido na época clássica. Aí, ele é esse corpo que clama e que é impossível de ser ignorado; ele é o impossível de não ser visto e de não acionar, com sua presença, incômodo, inquietação.

Como dar conta dessa diferença de olhar? Como pode o hermeneuta, se não explicar, ao menos compreender essa defasagem do olhar, essa derrisão diante de uma imagem que embora acione signos semelhantes produz a exacerbação máxima do olhar e duzentos anos depois o seu oposto, a invisibilidade maximizada, o olhar que diante do que está ali não enxerga, não traz consigo nem inquietação, nem assombro, nem compaixão? Como é possível pensar essa nova maquinaria que, acionando um olhar puro e bom da criança, pede e exige que se veja o mesmo (mesmo?) corpo surrado e faminto que aqueles outros tempos não querem ver, e para isso produzem a engenharia do trancafiamento? Naqueles anos de 1777, o mendigo é esse que, cortando o olhar, atravessa o visto e faz morada nas narrativas.

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