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O anticlericalismo e a ideia da laicização do ensino foram os temas com maior predomínio no discurso republicano. A própria imprensa deu voz ao discurso anticlerical, movendo a opinião pública contra a presença dos jesuítas e das Irmãs de Caridade, sobretudo na ilha Terceira. Com a ajuda da imprensa criaram-se instituições, com o intuito de intimidar os clérigos e impedir o prosseguimento da sua obra e das missões que procuravam implementar nas freguesias.

Os republicanos promoveram a laicização e não se coibiram de manifestar o desejo da separação da igreja, não só da Escola, mas de todos os organismos estatais. Na Terceira, por exemplo, num artigo assinado por César Silva e publicado no jornal O

Tempo em 1908, este considerava a religião uma pertença do foro íntimo de cada um e

não tinha cabimento na escola, reconhecendo a escola laica como a escola por excelência. No mesmo artigo teria exultado a proposta apresentada no Congresso nacional em 1908 por Tito de Sousa Lopes sobre o ensino da religião cristã nas escolas, passando a citar:

Afastar do ensino primário o estudo do catecismo […] representa apenas libertar a escola d`um elemento perturbador do seu funcionamento, mas nem por sombras significará um ataque à religião, a nenhuma religião em particular. (O Tempo, 1908, p.762).

Com vista ao ataque a algumas instituições criadas, alguns párocos chegaram mesmo a publicar o que se poderia designar hoje como contrainformação, destacando a influência que as lojas da maçonaria tinham nessas instituições:

Entre estas sociedades secretas, resolvemos apontar uma há pouco formada, cujo fim é corromper a mocidade […]. É sabido que as lições dos mestres são poderosas para formar o coração e espírito dos alunos, por isso procuram-se todos os cuidados e

62 artifícios para dar á mocidade mestres depravados que a conduzam nas veredas de Baall, por doutrinas que não são de Deus” (O Peregrino de Lourdes, 1905, n. º859).

Na Terceira, mesmo durante o período de propaganda para a implementação do método de João de Deus, eleito pelos republicanos como o método mais eficaz no combate ao analfabetismo, a igreja criou alguns impedimentos à sua expansão. A Sociedade Promotora Terceirense chegou mesmo a promover um curso para preparação dos professores que não conhecessem o método, com o fim de estes se poderem habilitar à sua frequência (O Tempo, 1909, n.º 1033). Atendendo a que a propaganda do método partiu de determinadas associações com ligação à maçonaria, a aceitação da sua propagação começou, posteriormente, por encontrar alguns opositores, sobretudo na Terceira, onde o ensino instituído pelas ordens religiosas se encontrava enraizado5. A

igreja acusava os republicanos de ser maçons e as suas obras pertencerem à maçonaria e às Lojas locais que então vinham a ser criadas. Acerca do que considerava ser um exagero por parte da igreja, Joaquim Tristão manifestou-se da seguinte forma:

[…] todos os indivíduos, todas as associações, todos os que anseiam o bem público, devotados aos seus semelhantes, batalhando para que a luz a todos esclareça e para que a verdade de todos seja património são classificados de maçons. É maçónica a França, a Voz do Operário, a Associação das Escolas Móveis, a Liga Nacional de Instrução, a nossa Sociedade Promotora… (A Voz do Professor, 1909, n. º18).

O grande empenhamento que os republicanos dedicaram ao método João de Deus não comportava apenas fundamentos técnico-pedagógicos, mas ideológicos, claramente ligados à maçonaria (Reis, 1979, p.15). A igreja, por exemplo, teve alguma dificuldade na aceitação da ligação da Sociedade Promotora da Instrução Terceirense à

5 A Sociedade Promotora da Instrução de Angra subsidiou a missão das escolas móveis nº 152, realizada

nesta cidade, tendo sido dirigida por Salazar d`Eça. Iniciou a 11 de setembro de 1906 com 125 alunos e deu-se por concluída a 13 de janeiro de 1907 com 92 alunos. - Carvalho, A. P., (1991). Élèments pour l`histoire d`une école de formation des instituteurs de maternelle. - Lisboa.

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maçonaria. A imprensa religiosa também nunca perdia a oportunidade de ripostar com críticas acesas às Lojas maçónicas locais, condenando a sua criação e todos aqueles que lhes pertencessem, porque “corrompia a mocidade e afastava-a dos princípios religiosos” (O Peregrino de Lourdes, 1905, n.º 857). A verdade é que a igreja pretendia que o religioso atravessasse todo o espaço social, que nada escapasse ao seu controlo e à sua inspiração (Pintassilgo, 1998, p.85). Pelo facto de se tratar de uma sociedade onde a igreja controlava não só as instituições, exercendo alguma influência sobre a população, mais se acentuou o confronto. Nos confrontos que se estabeleceram, sobretudo na Terceira, o discurso republicano foi-se radicalizando, chegando mesmo a serem criados periódicos apenas com o intuito de promover campanhas contra a influência da igreja. De tal modo sofre radicalização o discurso que o jornal O Tempo é submetido a uma devassa, a qual origina indignação e repúdio por parte de toda a imprensa republicana acerca da falta da liberdade de imprensa.

A demasiada influência religiosa da qual se mantinha prisioneiro o ensino tradicional era incompatível com os novos tempos de mudança e as novas pedagogias europeias que iam sendo divulgadas. Nos primeiros anos do século XX, por exemplo, quando a imprensa divulgava com fervor a pedagogia do espanhol Francisco Ferrer identificando-a como uma pedagogia “livre de peias religiosas”, a defesa destas pedagogias teria suscitado também, por parte do clero, reações pouco amistosas na imprensa.

A transmissão dos novos valores republicanos desde a escola primária só era possível tendo por base uma escola laica onde a igreja não exercesse diretamente a sua influência, uma escola afastada de qualquer influência religiosa. Para Ávila Júnior amar a escola laica era amar o Progresso, o Bem, a Justiça, a Verdade e desejar a laicização era desejar o aperfeiçoamento humano (A Voz do Professor, 1909, n. º20). Ávila Júnior

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considerava que deviam ser banidos do ensino, todo o tipo de dogmas quer fossem religiosos, quer políticos, visto que a questão fundamental de todo o ensino era formar homens livres e independentes.

O discurso anticlerical sobre os jesuítas era demasiado negativo e intolerante pois também era destacado o facto de serem estrangeiros. Segundo os republicanos estes pretendiam exercer o poder através do ensino, ameaçando a Pátria. Observam-se nos periódicos críticas acesas ao ensino tradicional jesuíta pois “destrói a vontade e o raciocínio”, baseia-se no autoritarismo e no dogmatismo, “cultiva a obediência cega à passividade, fomenta o fanatismo, supersticioso”.

A imprensa periódica local, reconhecendo a ação governativa insuficiente para a resolução do problema do ensino e por conseguinte do analfabetismo incentivou a iniciativa particular a desempenhar um importante papel junto das populações. Algumas das sociedades benemerentes criadas pela influência dessa iniciativa, também eram de origem maçónica, influenciadas pela Liga Nacional de Instrução, foram condenadas pela igreja, ou pelo menos por alguns setores desta, que combatiam as obras junto dos crentes. Alguns clérigos procuraram afastar os alunos das escolas oficiais para os integrar nas suas escolas. Estes factos contribuíram para que se tornasse ainda mais aceso o debate sobre o anticlericalismo.

A proliferação de um ensino laico era então, um desejo profundamente republicano e partia da ideia da dissociação da Igreja e do Estado. O republicanismo ao distinguir escola laica de escola neutra tornou a situação dúbia e alguns republicanos, tal como João de Barros, reconheciam que proclamar o laicismo seria interpretado como anticatolicismo (Magalhães, 2010, p. 364). Embora um ou outro republicano se assumisse abertamente como antirreligioso, raramente nos discursos se faziam críticas

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abertas à igreja católica e ao clero regular. Caraterizando-se a sociedade açoriana por ser uma sociedade religiosa-católica não se verificou na imprensa, uma luta contra a religião e a instituição em si. O confronto mais radical arrolou-se na imprensa contra as ordens seculares e contra alguns padres que, radicalmente, também procuraram exercer algum tipo de influência contra as obras republicanas a favor do ensino. Só nestes casos, a missão regeneradora republicana acabou por transformar o espaço escolar num território a ser disputado com a igreja (Pintassilgo, 2013, p. 16).

Para além de jornais diários como O Tempo que alertavam constantemente para o facto de se criarem escolas religiosas ilegais na Terceira, também o periódico A Voz

do Professor, dirigido por Joaquim Machado Tristão, marcou a sua existência no

combate à influência excessiva da igreja nas escolas de ensino público que considerava ser perniciosa. Este e outros periódicos incentivaram a propagação da laicização. Daí este tema ter suscitado controversos e entusiásticos discursos, tendo sido desferidos constantes ataques mútuos. O periódico religioso San Miguel afirmou que nos comícios, assembleias de propaganda dos republicanos e até nos discursos políticos de Manuel d`Arriga se negava a veracidade de todas as religiões, por “não admitirem nem professarem nenhuma”, atacando de preferência a religião católica por ser a religião do Estado e de quase todos os portugueses (San Miguel, 1907, p. 104). Joaquim Machado Tristão, enquanto diretor do jornal e depois como inspetor de Angra, afirmava que “a escola tinha de ser neutra porque cada religião se proclamava como única e verdadeira e a ela cabia apenas ensinar o que estava cientificamente demonstrado” (O Tempo, 1911, n.º 1601).

As primeiras denúncias do avanço das ordens religiosas começaram com alguma insistência a partir de 1905, mas em 1909, a questão ainda se arrastava pela imprensa,

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como consta da Ata relativa à 3.ª Sessão da Associação do Professorado Primário Terceirense e que foi publicada pelo jornal pedagógico A Voz do Professor:

[…] estando a funcionar na maior parte das freguesias da ilha escolas de ensino particular que não satisfazem aos mais rudimentares princípios de pedagogia e higyene e regidas por indivíduos sem as habilitações legaes, e com o fim manifesto de prejudicar o ensino e o professorado oficial, propunha que se envidassem todos os esforços para se conseguir a urgente cessação deste abuso, para o que achava conveniente que o jornal orgam da “Associação” _ A Voz do professor _ imediatamente se ocupasse do assunto: O que foi unanimemente corroborado e aprovado. - Joaquim Tristão

Estes cursos acabaram por ser sujeitos a uma inspeção, tendo sido anunciado, posteriormente, no jornal Diário do Notícias a 4 de março de 1909:

Pela ilustre inspecção escolar foram mandadas adoptar providencias, acerca do funcionamento de colégios particulares no círculo escolar de Angra do Heroísmo, afim de serem encerrados os que não estiverem legalmente inscriptos.

Noutro artigo, Ávila Júnior terá referido que, apesar do Inspetor Escolar da 1.ª Circunscrição Escolar do Reino ter mandado encerrar os cursos, estes ainda continuavam abertos ao fim de 71 dias (A Voz do Professor, 1909, n.º 8). Este acabou por agradecer à Revista Pedagógica o apoio de Evelina de Sousa e a forma criteriosa com que reforçou “a doutrina” do artigo sobre esses mesmos cursos. A Revista

Pedagógica assumiu a partir de 1906 um papel preponderante na luta pela laicização do

ensino, estabelecendo a ligação pessoal e jornalística com os colegas terceirenses, atendendo que Sebastião Ávila Júnior, Inácio Cardoso Valadão e Joaquim Machado Tristão eram seus correspondentes.

Na Terceira, a criação destas escolas foi de tal ordem que o caso foi conduzido à Associação dos Jornalistas Portugueses, acabando por chegar ao governo. O governador civil de Angra apoiou a causa da igreja, o que lhe valeu duras críticas na imprensa nacional. O jornal O Tempo teria despertado a ira do governador por lhe ser sempre

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lembrado o disposto no art.º 361 do regulamento de 19 de setembro de 1902 que determinava o encerramento imediato de qualquer escola que se encontrasse em funcionamento ilegal (O Tempo, n.º 41, 1905). Dois dos redatores terão sido chamados a Lisboa pelo ministro da Fazenda para que respondessem “pelos ataques e acusações feitos aos abusos dos jesuítas, das Irmãs da Caridade e do pessoal congreganista do Hospital de Santo Espírito”, tendo sido submetido o jornalista Belchior de Figueiredo6 a

um processo disciplinar. Em protesto envolveu-se toda a imprensa nacional republicana e apontado como um ponto forte dos discursos nos comícios e no parlamento. Faustino da Fonseca no comício realizado em Lisboa a 16 de dezembro de 1906 leu uma moção no final do discurso que foi votada por aclamação:

O povo de Lisboa, reunido em comício publico sob a presença a presidência do concidadão açoriano Theophilo Braga, protesta contra a perseguição á imprensa, realisada na ilha Terceira, em defesa da reacção clerical, que está profanando aquelle baluarte da liberdade, e delega no seu antigo deputado, o cidadão Eduardo Abreu, filho daquela gloriosa terra, a honra de transmitir aos liberaes de Angra do Heroismo a manifestação da sua sympatia e do seu apreço. (O Tempo, 1906, nº 340)

Também o deputado Alberto Navarro, na sessão de 15 de dezembro de 1907, colocou novamente à discussão a atuação irregular do governador civil de Angra e apontou o procedimento também irregular do ministro da Fazenda, bem como o “antiliberalismo do governo”, pois não considerava que tivessem sido atacadas instituições vigentes (O Tempo, 1907, n. º345). O mesmo fez o conselheiro José d`Alpoim, na sessão da câmara dos pares de 9 de janeiro, que se indignava pelo facto de um funcionário público exemplar pedir a intervenção do Presidente do Conselho junto do ministro da Fazenda.

6 Belchior de Figueiredo viveu em S. Pedro do Sul onde desempenhou o papel de escrivão de Fazenda e

de Administrador do Concelho. Aquando da acusação que lhe foi feita como redator do jornal O Tempo exercia as funções de Delegado do Tesouro, no distrito de Angra do Heroísmo e era considerado um funcionário distinto.

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Por analogia, relativamente à laicização do ensino em África, a igreja assegurava que, na prática, o ensino laico se identificava com o chamado “livre pensamento”, cujo postulado básico consistia em não existir causa transcendente do Homem nem do Mundo. Posição que entraria, à partida, em conflito com a mentalidade e cultura tradicionais, relativamente à crença da sobrevivência da alma. No discurso religioso a influência direta da igreja além de respeitar esta crença, por exemplo, poderia reforçá-la e até enriquecê-la. Ao organizar-se ou reformar-se a instrução e a educação nos princípios do “livre pensamento” ia, evidentemente, tomar a posição diametralmente oposta à da mentalidade e cultura tradicionais (Revista Brotéria, 1950, vol. LI, p.100). Segundo a igreja, nesta perspetiva, a escola laica iria cortar todo o contacto com as convicções religiosas, destruindo a própria cultura do Homem.

Em S. Miguel, ao contrário da Terceira, o discurso da imprensa assumiu outras dimensões. A iniciativa particular era incentivada e considerada a única forma de combater, eficazmente, os serviços burocráticos que eram “impeditivos da concretização de ideias” no dizer de Inácio de Arruda. Luiz Francisco Bicudo, livre- pensador e materialista por educação, não hesitou em trabalhar com Inácio de Arruda e recorrer ao clero propondo-lhe o que designou de “pacto de solidariedade” (Revista

Micaelense, 1920, p. 888). Assim, democratas e livres-pensadores micaelenses viram no

clero uma força poderosa e eficaz para o combate ao analfabetismo e para a expansão da instrução popular em S. Miguel. Apesar de na discussão pedagógica o anticlericalismo e os restantes princípios republicanos estarem sempre presentes nos periódicos religiosos e republicanos micaelenses não se verificou entre estas grandes contendas que impedissem o desenvolvimento do projeto da Liga de Instrução Micaelense. Esta constituía uma filial da Liga Nacional de Instrução com ligação à maçonaria, mas não impediu a colaboração de alguns párocos. Entre ambos procuraram fazer-se esforços na

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tentativa de convergência a favor da alfabetização do povo micaelense, aliando-se as duas fações opostas na luta pelo ideal de propagação e vulgarização da instrução popular. Saliente-se, por exemplo, que a criação da Liga Micaelense de Instrução Pública e outras instituições beneméritas, como as sociedades de beneficência e a instituição das caixas escolares só teria sido possível, no distrito de Ponta Delgada, graças ao contributo e colaboração direta dos párocos das freguesias.

Na Terceira, a implementação do método João de Deus através de cursos noturnos e diurnos e de conferências impulsionadas pela imprensa e com o apoio da iniciativa particular não teve tão boa aceitação por parte da igreja devido à ligação da Sociedade Promotora com a maçonaria e com a Liga Nacional de Instrução como anteriormente já se fez referência. A imprensa ainda procurou fazer algumas tentativas de unificação com os párocos e um articulista do jornal O Dia chegou mesmo a sugerir que a melhor forma de contribuir para a redução do número de analfabetos na ilha seria “os professores e também os padres habilitados com o método João de Deus se alternassem em cada paróquia regendo cursos noturnos por um período de 4 meses (O

Dia, 1906, n.º 518). Verificou-se na Terceira uma ténue tentativa para a aproximação e

junção de esforços com organismos da igreja a favor do ensino público que não obteve sucesso.

A Constituição de 1911 veio reforçar o poder estatal ao afirmar que nos estabelecimentos públicos e particulares fiscalizados pelo Estado, o ensino passaria a ser neutro em matéria religiosa e visava garantir a neutralidade ou laicidade do ensino (Pintassilgo, 2013, p.19). A inspeção fiscalizava as escolas sempre que se registavam denúncias e acabava por encerrar algumas, mas outras deram continuidade à sua ação educativa por consentimento das autoridades locais. Ao longo do tempo, as lutas

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relativamente à abertura destas escolas, ter-se-á desvanecido e, ao longo da década de vinte, já a imprensa não fazia qualquer referência ao facto.

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