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Aplicação das Ideias de Paulo Freire ao Direito à Educação

2 TUTELA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO BÁSICA VIGENTE

2.4 Aplicação das Ideias de Paulo Freire ao Direito à Educação

Observou-se que a educação possui no âmbito da Constituição de 1988 um conteúdo humanista, voltado para o desenvolvimento individual e coletivo de todos e, portanto, vislumbra-se o direito à educação como direito com potencial transformador.

Nota-se que as ideias de Paulo Freire sobre a educação são fundamentais para a compreensão desta como um fenômeno que apresenta o referido potencial.179

Conforme expõe o autor, a educação decorre de uma necessidade humana de superar a si mesmo:

Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um quefazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade.180

Assim, ela deve ser um processo de aproximação do mundo e de si mesmo: um verdadeiro processo de conhecimento. Nota-se que conhecer, para Paulo Freire, não é algo automático e nem realizável de forma unilateral:

Conhecer, na dimensão humana, que aqui nos interessa, qualquer que seja o nível em que se dê, não é o ato através do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe, dócil e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá ou impõe. O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sôbre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sôbre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe

179 Há diversos outros pedagogos que poderiam ter sido citados como referência. A escolha deste

deu-se por identificação da autora da pesquisa com as ideias do autor, bem como pela indicação inicial de leitura realizada pela orientadora desta Dissertação.

180 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 83. O termo

o ‗como‘ de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato.181

Conhecer é, portanto, uma atividade exclusivamente humana, pois só o homem tem a capacidade de apropriar-se do que lhe é apresentado, transformá-lo em apreendido e, consequentemente, dominando o conteúdo, reinventá-lo: refletir sobre o objeto.

De outro lado, ―... aquele que é ‗enchido‘ por outro de conteúdos cuja inteligência não percebe; de conteúdos que contradizem a forma própria de estar em seu mundo, sem que seja desafiado, não aprende.‖182

Deste modo, Paulo Freire apresenta a educação não como um processo mecânico de repetição com o resultado de, segundo sua terminologia, ―adestramento‖ das pessoas ou sua ―domesticação‖; e sim como forma de libertação e autonomia, afirmando a própria condição de homem a partir do diálogo183, ou seja, a partir da

comunicação e do respeito para com o outro.184

A educação deve implicar ―na superação da contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos.‖185

181 FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. 7. ed. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 27.

182 Ibid., p. 28.

183 ―O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo o ‗pronunciam‘, isto

é, o transformam, e transformando-o, o humanizam para a humanização de todos.‖ (Ibid., p. 43.).

184 Sobre respeitar o outro no processo de educação Paulo Freire expôs: ―Respeitar o conhecimento

do povo para mim é uma atitude política consistente com a escolha política que o educador se ele ou ela pensa sobre um tipo diferente de sociedade. Em outras palavras, eu não posso lutar por uma sociedade mais livre se, ao mesmo tempo, não respeitar o conhecimento do povo.‖ (In FREIRE, Paulo; HORTON, Myles. O Caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social. BELL, Brenda; GAVENTA, John; PETERS, John (orgs.). Tradução de Vera Lúcia Mello Josceline. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2003. p. 114). Complementa essa afirmação a explicação dada pelo autor para a ―alienação da ignorância‖: segundo Paulo Freire constata -se na sociedade ―uma inegável descrença no homem simples. Uma subestimação do seu poder de refletir, de sua capacidade de assumir o papel verdadeiro de quem procura conhecer: o de sujeito desta procura. Daí a preferência por transformá-lo em objeto do ‗conhecimento‘ que se lhe impõe. (...) Esta descrença no homem simples revela, por sua vez, um outro equívoco: a absolutização de sua ignorância. Para que os homens simples sejam tidos como absolutamente ignorantes, é necessário que haja quem os considere assim. Êstes, como sujeitos desta definição, necessàriamente a si mesmos se classificam como aquêles que sabem. Absolutizando a ignorância dos outros, na melhor das hipóteses relativizam a sua própria ignorância (...) Realizam deste modo o que chamamos ‗alienação da ignorância‘, segundo a qual esta se encontra sempre no outro, nunca em quem a aliena.‖ (Extensão ou Comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. 7. ed. Rio de Janei ro: Paz e Terra, 1983. p. 46-47).

Como tornar efetivo este modelo de ensino no nível básico de ensino? A dúvida surge porque é difícil imaginar, por exemplo, uma educação infantil que seja efetuada do professor para o aluno e também do aluno para o professor, como se a criança não tivesse meios de contribuir a não ser ouvindo e repetindo o ensinado. Paulo Freire explica que todo tema pode ser problematizado. Isto implica em que qualquer nível educacional deve ser construído a partir desta formulação. Nas escolas primárias, por exemplo, não é correto dizer que é impossível dialogar que 4 x 4 não pode ser igual a 15:

De fato, 4 x 4, sem uma relação com a realidade, no aprendizado sobretudo de uma criança, seria uma falsa abstração. Uma coisa é 4 x 4 na tabuada que deve ser memorizada; outra coisa é 4 x 4 traduzidos na experiência concreta: fazer quatro tijolos quatro vezes. Em lugar da memorização mecânica de 4 x 4, impõe-se descobrir sua relação com um quefazer humano.‖186

Somente dessa interação entre estudo científico e prática social é que será possível a construção da educação transformadora. Isso exige que o professor não só saiba conteúdo, mas também como o ensinar. Deve, portanto, saber a história de seu objeto de ensino e não exclusivamente o conteúdo.187

O conceito apontado prevê ainda a possibilidade de verificar como as pessoas podem modelar o Estado na questão educacional, já que se entende o processo educacional não ser realizado apenas como um dado do Estado (ou de entidades particulares que atuem em seu nome): a educação transformadora e libertária deve resultar de trabalho conjunto de todos.

A educação não é, conforme exposto, um processo que ocorre como um fenômeno dado, de cima para baixo, devendo ser bilateral e como forma de aprimorar e desenvolver o ser humano, sem que seja menosprezada a capacidade de qualquer um de se manifestar e contribuir para as mudanças que se fizerem necessárias.

186 FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. 7. ed. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 52. O termo ―quefazer‘ refere-se a qualquer atividade a ser cumprida.

187 Idem; HORTON, Myles. O Caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social. BELL, Brenda; GAVENTA, John; PETERS, John (orgs.). Tradução de Vera Lúcia Mello Josceline. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2003. p. 120.