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Aplicabilidade da reserva do possível em tema de políticas públicas de

Já na hipótese de (b.2.2) o tratamento não haver sido testado pelo SUS, poderá restar configurado o direito à prestação. Isso porque a mora administrativa não pode limitar a amplitude do direito à saúde. Dessa forma, é desejável a ampla cognição judicial dos métodos terapêuticos e dos experimentos realizados para que, se for o caso, seja concedida a medida solicitada.

Por fim, é possível que haja (c) vedação legal à prestação de saúde pleiteada. É necessário que haja registro dos fármacos industrializados destinados ao consumo sejam registrados no Ministério da Saúde (Art. 12, Lei nº 6.360/76). O registro tem por escopo atestar a segurança e a utilidade do produto. Em casos excepcionais, todavia, poderá haver autorização de importação de medicamentos não registrados.

4.3 Aplicabilidade da reserva do possível em tema de políticas públicas de saúde

Formulada na Alemanha, no início da década de 1970, a teoria da reserva do possível é comumente ventilada por parte do ente estatal como óbice à implementação de políticas públicas por meio do Poder Judiciário. Em regra, costuma-se analisar a teoria sob dois prismas: o fático e o jurídico.

No aspecto fático, é rechaçada a imposição ao Estado de uma prestação quando este efetivamente não tem meios para realizá-la. Trata-se de uma inferência lógica: se não há como adimplir uma obrigação, não deverá haver imposição.

Comumente, a impossibilidade está relacionada à inexistência de recursos financeiros para custear a demanda, como se depreende da lição de Cesar Augusto Alckmim Jacob (2013, p. 252):

Do ponto de vista dos fatos, não seria possível exigir uma prestação positiva por parte do Estado, se não há, efetivamente, dinheiro em caixa. Nesses casos, a propósito, não há direito que se faça valer, já que não há Direito se não houver alternativa. Trata-se da velha máxima romana: ad impossibilia nemo tenetur ou impossibilium nulla obligatio est (Celso, D. 50, 17,185).

É possível, entretanto, que a impossibilidade fática advenha de outras causas, como por exemplo, limitações técnico-científicas. Bastante ilustrativa é a hipótese formulada por Américo Bedê Freire Júnior (2005, p. 75): “... efetivamente, um juiz não pode determinar que o Estado cure um doente de Aids se ainda hoje a doença não tem cura ...”.

A dimensão jurídica da reserva do possível, por sua vez, apregoa a necessidade de prévia dotação orçamentária para que seja realizado qualquer gasto com determinado direito. Destarte, para os defensores da ideia, a inexistência de previsão no orçamento obsta a determinação judicial de imediata implementação de políticas públicas.

Embora se assemelhem, as dimensões fática – quando relacionada à ausência de recursos financeiros – e jurídica não se confundem. Enquanto naquela, alega-se a inexistência total de recursos monetários, nesta aduz-se apenas a impossibilidade de dispêndio dos recursos existentes a fim de se prestigiar o ordenamento jurídico.

Há, ainda, outros pontos relevantes no tocante às dimensões da reserva do possível. Um deles é a exigência de que o ente estatal prove de forma robusta a escassez financeira alegada como óbice para a implementação de determinada política pública (aspecto fático). Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover (2013, p. 138):

Observe-se, em primeiro lugar, que não será suficiente a alegação, pelo Poder Público, de falta de recursos. Esta deverá ser provada, pela Administração, vigorando nesse campo quer a regra da inversão do ônus da prova (art. 6, VIII, do Código de Defesa do Consumidor), aplicável por analogia, quer a regra de distribuição dinâmica do ônus da prova, que flexibiliza o art. 333, CPC, para atribuir carga de prova à parte que estiver mais próxima dos fatos e tiver mais facilidade de prová-los.

Ora, dada a importância dos interesses em questão (direitos fundamentais), não se pode tolerar a mera alegação genérica de falta de recursos. Entendimento em contrário torna a teoria da reserva do possível mera retórica jurídica. Ademais, o dever de demonstrar tal impossibilidade deflui do princípio da publicidade a que está submetida a Administração Pública (Art. 37, caput, CF/88).

Por outro lado, como observa Américo Bedê Freire Júnior (2005, p. 74), se os valores existentes em caixa “... não são suficientes para cumprir integralmente a política pública, não significa de per si que são insuficientes para iniciar a política publica.”.

Outra questão importante é a relação existente entre a dimensão jurídica da reserva do possível e o orçamento público. Esse instituto foi originalmente desenvolvido com o escopo de manter o equilíbrio econômico-financeiro das atividades desempenhadas pelo ente estatal.

A noção de orçamento apresentada se coadunava com os desígnios do Estado Liberal – garantia da liberdade individual e mínima intervenção estatal no campo socioeconômico – haja vista que o sistema tributário era idealizado para financiar um pequeno rol de atividades públicas.

O paradigma clássico da estabilidade financeira, entretanto, não deve mais prevalecer na atualidade. É que a efetivação de direitos sociais, dentre eles o direito à saúde, não pode ficar relegada a segundo plano. Aqui, cabe colacionar as palavras de Osvaldo Canela Junior (2013, p. 230):

Em um Estado Social, o conceito clássico de orçamento não mais subsiste, posto pressupor uma estabilidade econômico-financeira para a concessão de direitos, o que é inadmissível em um Estado intervencionista. O orçamento, no Estado Social, há de servir-se como instrumento para a realização dos fins estatais e não como anteparo à concessão de direitos sociais.

Ora, é inegável que os direitos sociais, justamente por demandarem prestações fáticas, ensejam um dispêndio bastante considerável. No caso do direito à saúde, os montantes expendidos podem chegar a patamares estratosféricos, mormente ao se considerar os valores de alguns medicamentos e procedimentos médicos.

Todavia, entender que a efetivação de determinada Política Pública não pode desequilibrar o orçamento, significa subverter completamente a razão da existência do Estado. Em outras palavras, significa defender que os meios devem se sobrepor aos fins. A assertiva é ainda mais evidente ao se considerar que todo e qualquer direito, seja de cunho positivo seja de cunho negativo, pressupõe gastos.

Para sanar esse pensamento descabido, surgiu a ideia de orçamento programa. A definição do instituto é apresentada por Osvaldo Canela Junior (2013, p. 230):

... o orçamento programa representa a evolução do conceito de orçamento à luz do Estado social. A sua compreensão permite concluir que eventual insuficiência de recursos não pode constituir elemento de estagnação na concessão de direitos fundamentais, mas vetor de conduta das formas de expressão do poder estatal para a prospecção futura de recursos.

Dessa forma, em um Estado intervencionista, como o brasileiro, não se deve justificar a inação estatal através da máxima da estabilidade financeira. Não se olvida que o respeito ao orçamento público é de extrema importância, entretanto, confere-se maior importância aos fins estatais.

Destarte, o orçamento há de ter um caráter impositivo, destinado à formação de receita futura, a fim de possibilitar que as políticas públicas concretizadoras de direitos fundamentais sejam desenvolvidas de forma satisfatória.

Isso implica dizer que, ainda que verificada a insuficiência atual de recursos para realização de uma determinada política pública, não se exime o Poder Público de efetiva-lá no futuro. Assim, devem os Poderes Executivo e Legislativo pautar suas atividades para que possam ser efetuados gastos futuros com determinados direitos fundamentais.

A concepção de orçamento programa acarreta, quando muito, apenas uma dilatação do prazo conferido para que o Poder Público realize determinada Política Pública. Isso implica que a dimensão jurídica da teoria da reserva do possível não deve mais subsistir como óbice completo à efetivação de quaisquer direitos fundamentais, dentre eles o direito à saúde. Nesse sentido, a lição de Eduardo Braga Rocha (2011, p. 160):

A ausência de previsão orçamentária não constitui limite à justiciabilidade do direito fundamental à saúde, não podendo servir de fundamento para que o Estado se exima de fornecer medicamentos, de realizar exames médicos, etc.

Há de se ressalvar, entretanto, que a solução judicial poderá ser diversa a depender do grau de importância e de urgência da prestação pleiteada. Como regra, em caso de comprovada insuficiência de recursos financeiros, o Judiciário deverá determinar que o Poder Público inclua a verba necessária para a implementação da política pública pleiteada na próxima proposta orçamentária.

Ocorre que, no casos de pleitos relacionados ao mínimo existencial, não há como se alegar a teoria da reserva do possível com o viso diferir a prestação,

mormente se a medida requerida for de urgência. Nesse sentido, dispõe Kazuo Watanabe (2012, p. 218):

Admitir-se que em relação ao “mínimo existencial” possa o Estado alegar qualquer espécie de obstáculo ou dificuldade de ordem material, invocando a cláusula da “reserva do possível” será o mesmo que admitir que alguém possa continuar vivendo em estado de indignidade, o que afrontatia um dos fundamentos da nossa Constituição que é a dignidade da pessoa humana (Art. 1, III). (grifo original).

Ora, por certo não é razoável que um indivíduo que necessita, por exemplo, de determinado atendimento medicamento ou atendimento médico de urgência para que sua vida seja preservada, aguarde a boa vontade dos gestores públicos em implementar políticas públicas de saúde satisfatórias.

Os tribunais pátrios também tem sustentado a tese da não oponibilidade da teoria da reserva do possível aos casos de direitos componentes do mínimo existencial15. A título ilustrativo, veja-se o seguinte julgado:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SOLIDARIEDADE ENTRE OS ENTES FEDERATIVOS. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. PRINCÍPIO DA SEPARAÇAO DOS PODERES. PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL. MÍNIMO EXISTENCIAL. PROIBIÇAO DO RETROCESSO SOCIAL. 1. A omissão da autoridade coatora em fornecer o tratamento médico vindicado pela impetrante processual afigura-se como um abuso do Poder Executivo, suficiente a autorizar a atuação do Poder Judiciário, uma vez que o direito à saúde, consagrado no art. 196, da Constituição Federal, é direito fundamental que integra o mínimo existencial, não podendo, sua concretização, ficar discricionária ao administrador. 2. A cláusula da reserva do possível não pode ser invocada pelo Poder Público, com o propósito de frustrar e de inviabilizar a implantação de políticas públicas definidas na própria Constituição, pois encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial. 3. O princípio da proibição do retrocesso impede o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à saúde) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. 4. Segurança Concedida. (TJ-PI - MS: 201100010018683 PI , Relator: Des. José Ribamar Oliveira, Data de Julgamento: 24/05/2012, Tribunal Pleno) (grifos nossos)

Nesses casos em que a parcela do direito à saúde está contida no mínimo existencial, a satisfação do pleito pode ser imediata, não constituindo motivo apto a ensejar a sua postergação a inexistência de previsão orçamentária.

O entendimento de que há políticas públicas de saúde que demandam implementação imediata – geralmente medidas componentes do mínimo necessário – é, também, encampado por Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 13). Veja-se:

Embora tenhamos que reconhecer a existência de limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orçamentária) implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto, acabam conflitando em si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para o atendimento de todos os direitos sociais básicos, sustentamos o entendimento [...] no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho emergencial cujo indeferimento acarretaria comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais, notadamente – em se cuidando da saúde – da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo.

A medida é condizente com o escopo intervencionista do Estado Democrático de Direito, haja vista que o equilíbrio financeiro não pode se sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana e nem ao direito à vida.

4.4 Vias processuais adequadas ao controle jurisdicional de políticas públicas