• Nenhum resultado encontrado

Fundamentos do controle judicial de políticas públicas

A evolução do constitucionalismo propiciou profundas alterações na concepção de Estado e nos fins a que este se destina. No Estado Liberal, privilegiava-se a mínima intervenção estatal na vida dos particulares com a consagração de direitos garantidores das liberdades individuais. Por outro lado, no Estado Social, propugnava-se uma postura ativa do ente público, de modo que muitos dos direitos reconhecidos à época demandavam prestações fáticas.

O papel do Poder Judiciário também passou por profunda ressignificação. Como lembra Kazuo Watanabe (2013), o escopo do Estado Liberal era a neutralização do Poder Judiciário ante aos demais Poderes. No período, a atividade judicial era vista como a mera aplicação da lei ao caso concreto (concepção positivista). Por isso, considerava-se o juiz “la bouche de la loi”.

Posteriormente, com o desenvolvimento do pensamento jurídico, foi-se, aos poucos, abandonando as noções de completude da lei e, consequentemente, de sua aplicação mecânica. Ademais, houve o reconhecimento de uma nova categoria de norma jurídica: os princípios.

Tais fatos implicaram aumento nas atribuições conferidas aos magistrados. Tornou-se imperativo que o conteúdo das decisões judiciais esteja em conformidade com todo o ordenamento jurídico, em especial com os preceitos constitucionais. Destacando essa mudança de perspectiva, Fredie Didier Júnior (2010, p. 87) assevera que:

... o princípio da supremacia da lei, amplamente influenciado pelos valores do Estado liberal, que enxergava na atividade legislativa algo perfeito e acabado, atualmente deve ceder espaço à crítica judicial, no sentido de que o magistrado, necessariamente, deve dar à norma geral e abstrata aplicável ao caso concreto uma interpretação conforme a Constituição, sobre ela exercendo o controle de constitucionalidade se for necessário, bem como viabilizando a melhor forma de tutelar os direitos fundamentais.

No Brasil, o papel do Poder Judiciário foi consideravelmente alargado com o advento da Constituição Federal de 1988. A proteção das normas constitucionais passou a ser imperativo aos órgãos judiciais, não sendo oponível qualquer argumento contra a sua devida atuação, nem mesmo o princípio da separação dos poderes.

Não é outro o entendimento de Américo Bedê Freire Júnior (2005, p. 44) ao estatuir que: “O juiz tem a missão constitucional de impedir ações ou omissões contrárias ao texto [constitucional], sem que com essa atitude esteja violando a Constituição.”.

A tutela das normas constitucionais – em especial das veiculadoras de direitos fundamentais – é a máxima a ser alcançada por todos os órgãos judiciais e não apenas pelo Supremo Tribunal Federal, a quem compete expressamente a guarda da Constituição (Art. 102, CF/88).

Nesse sentido, sobreleva a importância do controle de constitucionalidade pela via difusa, eis que permite que qualquer órgão judicial proceda à invalidação de leis e atos normativos em desconformidade com a Carta Maior.

É, portanto, justamente com o escopo de salvaguardar a Constituição que se legitima o controle judicial de políticas públicas, mormente ao se considerar que esses programas de governo tem por escopo a efetivação de direitos fundamentais. Em igual sentido, assevera Kazuo Watanabe (2010, p. 216):

Ao Poder Judiciário brasileiro, como consequência da assunção de novas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição Federal de 1988, dentre as quais se inclui o controle de constitucionalidade das leis, atos e atividades de todos os órgãos do Estado, incumbe proceder ao controle de

políticas públicas, com o exame de sua implementação, adequação ou correção, na conformidade dos mandamentos constitucionais. (grifo original)

Dessa forma, em que pese a profunda controvérsia acerca da possibilidade de controle judicial de políticas públicas, parece que, com o advento da Carta de 1988, essa atuação não é só possível, como também, obrigatória.

Destacando importância de cada um dos Poderes estatais na implementação de políticas públicas, salienta William Paiva Marques Júnior (2009, p.103-104):

É defasada a ideia da efetivação das políticas públicas a depender apenas dos Poderes Executivo e Legislativo, com a exclusão do Poder Judiciário. O compromisso com a implementação dos direitos sociais é estatal, cabendo a cada um dos poderes constituídos a assunção do compromisso funcional em bem desempenhar as suas funções em prol dos interesses e bem estar coletivos.

Deve, portanto, ser rechaçado o argumento da ausência de legitimidade do magistrado para proceder a tal controle. Isso porque a legitimidade do juiz para dispor sobre políticas públicas não advém da votação popular – situação dos Poderes Executivo e Legislativo – mas sim da própria vontade constitucional. Nesse ponto, cumpre transcrever as palavras de Aury Lopes Jr (2004, p. 73):

A legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático da Constituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem uma nova posição dentro do Estado de Direito e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia social.

A atuação do Poder Judiciário, portanto, afigura-se lícita tão somente quando garante a intangibilidade dos direitos fundamentais. Isso implica dizer que, ainda que desagrade à vontade da maioria, não haverá qualquer mácula na postura judicial que conferir adequada proteção a direitos fundamentais. Por essa razão, diz- se que o Judiciário é um Poder contramajoriário.

Por outro lado, impende salientar que o Pretório Excelso já se manifestou acerca da legitimidade do Poder Judiciário para proceder ao controle de Políticas Públicas. Cumpre transcrever trecho da decisão proferida pelo Min. Celso de Mello:

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). (STF - ADPF: 45 DF , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 29/04/2004, Data de Publicação: DJ 04/05/2004 PP-00012 RTJ VOL-00200-01 PP- 00191) (grifos nossos).

É importante frisar, todavia, que a apreciação judicial de políticas públicas não é completamente livre. Admitir-se pensamento em sentido contrário implicaria louvor ao arbítrio, o que poderia ocasionar graves consequências, como decisões casuísticas e desprovidas de substrato jurídico.

Pode-se listar como limites ao controle judicial de políticas públicas: as teorias do mínimo existencial; da reserva do possível; da máxima efetividade e o princípio da proporcionalidade.

Em síntese, o mínimo existencial estabelece um núcleo básico de direitos fundamentais carecedor de especial proteção com base na dignidade da pessoa humana. Já a reserva do possível, propugna a ideia de limitação dos recursos estatais disponíveis para a efetivação de direitos sociais.

A teoria da máxima efetividade preconiza a plena exigibilidade dos direitos sociais dotados de assento constitucional. É, em última análise, uma técnica hermenêutica que procura conferir a maior eficácia possível às normas veiculadoras de direitos fundamentais. William Paiva Marques Júnior (2009, p. 110) estabelece os contornos básicos da teoria:

A máxima efetividade é corolário do princípio da efetividade (de caráter instrumental na interpretação constitucional). Por meio desta teoria, o dever ser que impregna a eficácia dos direitos sociais, se impregna de eficácia e deverá converter-se no ser (em seu estado de realização máxima e não apenas potencial). (grifos originais)

A técnica é condizente com o atual estágio do constitucionalismo, haja vista que não mais se admite a interpretação de normas constitucionais fundamentais como meras recomendações a serem seguidas pela Administração Pública.

A baliza da proporcionalidade, a seu turno, traduz a ideia de uma decisão que representa o equilíbrio entre os fins colimados e os meios empregados13.