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Aplicando a Teoria de Campo Religioso na Organização da Igreja Internacional da Graça de Deus

2.1 – AQUÉM DO CIDADÃO KANE, MAS DO LADO DE JESUS

2.5 Aplicando a Teoria de Campo Religioso na Organização da Igreja Internacional da Graça de Deus

Em 2006, o movimento pentecostal completou cem anos. Nascido no subúrbio de Los Angeles, esse movimento chega ao Brasil, por volta de 1910, estrutura-se, multiplica-se e desemboca no movimento neopentecostal. O movimento pentecostal no Brasil, com suas três ondas, por si só é um campo religioso, no entanto, nesse trabalho o recorte teórico recai na Igreja Internacional da Graça de

Deus, reconhecendo que ali também há um campo religioso. Nessa etapa do

trabalho, serão analisados alguns aspectos do nascimento e da organização da igreja acima mencionada na tentativa de enquadrá-los na teoria de campo religioso desenvolvida por Pierre Bourdieu.

O missionário RR Soares é um líder carismático que tem um histórico de rompimentos com as estruturas tradicionais. Soares era no início um profeta no sentido weberiano:

“Por ‘profeta’ queremos entender aqui o portador de um carisma puramente pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandamento divino. Não queremos distinguir fundamentalmente entre o profeta que anuncia de novo uma revelação antiga (de fato ou suposta) e aquele que reivindica para si uma revelação totalmente nova, isto é, entre o ‘renovador’ e o ‘fundador’ de uma religião. Ambas as coisas podem estar entrelaçadas...”. (WEBER, 2004, p.303)

Convertido aos 06 anos de idade na Igreja Presbiteriana de Muniz Freire no Espírito Santo. Logo em seguida foi para a Igreja Batista ficando lá até os 16 anos, quando mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 1968 ingressou na igreja Nova Vida, ali casou-se e aprendeu os rudimentos do movimento neopentecostal, do qual ele

seria um dos iniciadores. Em 1975, foi consagrado pastor na igreja Casa da

Bênção e juntamente com Edir Macedo, Roberto Lopes e os irmãos Samuel e

Fidélis Coutinho fundaram a igreja Cruzada do Caminho Eterno. Graças a desentendimentos com os irmãos Coutinho, no ano seguinte, juntamente com seu cunhado Edir Macedo e Roberto Lopes, fundaram a Igreja da Bênção que em 1977 teve seu nome alterado para Universal do Reino Deus. Percebe-se fortemente o movimento da ruptura, do cisma, em todos esses homens citados, eles não enquadram-se na figura de sacerdotes, eles são profetas que têm um projeto de descontinuidade, seus carismas falam mais alto que burocracia

religiosa, a continuidade ordinária. Nesse momento inicial, RR Soares era o

grande líder da Universal e seu principal pregador. Inclusive em entrevista à revista Veja, RR Soares declarou que no começo da Universal, Edir Macedo fora seu assistente. (ROMEIRO, p.53). Devido a impasses com outro líder carismático muito forte (Edir Macedo), RR Soares sai da Universal e funda em 1980 a Igreja

Internacional da Graça. Ricardo Mariano registrou da seguinte forma esses

impasses:

“No princípio, o missionário Romildo Soares era o líder da Universal e seu principal pregador. Sua liderança, contudo, logo começou a ser atropelada pelo estilo autoritário e centralizador de Macedo, bem como por seu carisma, dinamismo e pragmatismo. Soares aos poucos foi perdendo terreno no controle da denominação para Macedo, seu cunhado, que adquiria crescente destaque entre os fiéis e pastores da igreja por meio de um programa (alugado inicialmente com doações de uma fiel curada na igreja) de 15 minutos que apresentava na Rádio Metropolitana, do Rio. Em fins, dos anos 70, os dois chegaram a um impasse. Macedo, então, para decidir qual deles permaneceria à frente da igreja, propôs que a disputa se resolvesse por meio de votação do presbitério. Macedo venceu o pleito. Soares, compensado financeiramente, desligou-se da Universal para fundar, em 1980, nos mesmos moldes de sua antecessora imediata, a Igreja Internacional da Graça”. (MARIANO, p.56)

Essa disputa entre esses dois líderes carismáticos, sem sombra de dúvidas, é uma disputa pelo capital religioso. Essa é uma das tensões que ocorre no campo

religioso, onde os produtores de bens religiosos rivalizam-se na expectativa de atender às demandas dos leigos. Da costela da Universal nasceu a Internacional

da Graça de Deus, falando para o mesmo público e usando as mesmas táticas.

Como um profeta bem-sucedido, apesar do desentendimento com outro grande profeta, Soares caminha para a organização de sua própria comunidade, sua própria congregação. Esse é o processo natural para profeta marcado pelos históricos de rupturas. Ele rompe e organiza sua própria instituição.

“...quando e onde possível, [os administradores de culto, ou profetas precisam] passar para a formação de uma congregação, isto é, de uma relação associativa duradoura entre os adeptos, com direitos e deveres fixos. A transformação da adesão pessoal de uma congregação constitui, portanto, a forma normal em que o ensino dos profetas entra na vida cotidiana, como função de uma instituição permanente”. (WEBER, 2004, p.p.311-312)

É lógico que o carisma de profeta tem que ter sido aflorado, porque se não o novo empreendimento não dará certo. Por que Soares conseguiu romper com Macedo e constituir a sua própria congregação religiosa? Porque ele foi um profeta bem-sucedido. Ele reuniu em torno de si um séqüito de discípulos.

“O profeta, quando sua profecia tem êxito, atrai acólitos permanentes,... os quais em oposição aos sacerdotes e adivinhos que se encontram numa relação associativa estamental ou hierárquica, de cargo, juntam-se a ele de modo puramente pessoal. [...] E ao lado desses acólitos permanentes, que colaboram ativamente em sua missão, na maioria das vezes também carismaticamente qualificados de alguma forma, existe o círculo de adeptos que o apóiam com alojamento, dinheiro e serviços, e esperam de sua missão a salvação”. (WEBER, 2004, p.310)

Com um grupo de acólitos permanentes, com uma leva de apoiadores dando suporte econômico, Soares organiza a sua igreja e vai, pouco a pouco, assumindo a forma de sacerdote. Com uma liderança personalista, “o missionário” como é chamado, lidera uma organização religiosa e midiática de sucesso. Tudo passa por seu crivo, nada se faz sem o aval do missionário (idem, p.65). Na figura de

sacerdote, RR Soares tem que lutar pela manutenção da ordem; tem que reproduzir e perenizar um sistema de crenças e ritos sagrados e precisa zelar pela

organização da classe sacerdotal. Na Igreja Internacional da Graça de Deus, o corpo sacerdotal é constituído por homens e mulheres que são inicialmente observados pelo pastor da igreja local. Quando uma pessoa é escolhida, mediante observação desse pastor local e da revelação de Deus, torna-se então, um obreiro

voluntário (faz limpeza do salão, distribui literatura usada no culto, prepara

cafezinho, etc), executando bem essas tarefas, o obreiro será convidado a abandonar suas atividades profissionais para se dedicar exclusivamente às atividades da igreja, recebendo uma pequena ajuda de custo. É um período de privações e de testes para verificar a fidelidade do obreiro, nesse período ele tem que viver única e exclusivamente pela fé. Tendo o obreiro sua vocação confirmada, torna-se um evangelista (este já dirige reuniões e prega) e, se continuar fiel, será indicado para a ordenação ao ministério pastoral, tornando-se então, um pastor. Vale ressaltar que na Igreja Internacional da Graça de Deus somente o missionário RR Soares tem autonomia para ordenar alguém ao pastorado (idem, p.67). E é interessante perceber que há poucos pastores ordenados nessa igreja, pois o missionário leva a sério a recomendação do apóstolo Paulo, registrada em 1Tm 5.22 – “A ninguém imponhas precipitadamente

as mãos”. A hierarquização do corpo sacerdotal na Igreja Internacional da Graça de Deus é a seguinte: obreiro voluntário, obreiro, evangelista e pastor. Acima de

todos eles, comandando a classe sacerdotal, o missionário RR Soares.

Outro elemento que aponta para a burocratização do serviço sacerdotal é que há alguns anos foi criada a AGRADE (Academia Teológica da Graça de Deus), onde a classe sacerdotal da Igreja Internacional da Graça de Deus recebe formação teológica, afinal de contas é necessário preservar aquilo que foi

construído. A AGRADE é uma instituição que, apesar de ser anunciada como uma instituição teológica que forma pastores para a IIGD e de arvorar-se de possuir várias extensões em todo o Brasil, na verdade e na prática ela não funciona tão bem assim. O currículo teológico da AGRADE apresenta matérias como, por exemplo, “Histórias do Missionário RR Soares”, e outras tão estranhas, quanto essa, que de alguma forma maculam a imagem de uma instituição que pretende ser minimamente acadêmica. Apesar de apresentar no seu quadro docente professores com um nível aparentemente bom no que concerne à formação acadêmica, estes são apresentados como baluartes de um conhecimento instituído, que na prática não pode ser aplicado devido às limitações teológicas impostas pela liderança sacerdotal. No site da AGRADE anuncia-se que há extensões da AGRADE, em sua maioria no interior de São Paulo e os endereços indicados são os das próprias igrejas. Somente para citar como exemplo, o endereço da AGRADE em Campinas é o mesmo de funcionamento da Igreja, e para quem conhece as acomodações da IIGD em Campinas sabe que não há infra-estrutura para acomodar uma instituição de ensino naquele local. Esse fenômeno ocorre em outros lugares de funcionamento da AGRADE. O que se percebe é essa preocupação em apresentar-se como uma instituição que forma seus quadros dentro de uma lógica minimamente acadêmica é mais uma jogada de marketing ou uma resposta à demanda de um mercado religioso evangélico que está em expansão nesse segmento de criação de cursos teológicos. Jogada de marketing ou resposta mercadológica, o fato é que criação da AGRADE corrobora a idéia de uma preocupação: criar uma infra-estrutura burocrática de serviço sacerdotal, caracterizando bem a atual fase de Soares, como um sacerdote que pretende manter os bens simbólicos criados dentro de seu campo religioso.

Soares perpassou por essas duas funções: ele foi profeta e rompeu com as estruturas vigentes dentro do universo protestante onde foi criado e depois tornou- se um sacerdote da nova igreja que fundou e que procura manter. Como Weber bem aponta,

“A profecia e o sacerdócio são os dois portadores da sistematização e racionalização da ética religiosa. Além disso, tem grande importância... a influência daqueles sobre os quais, os profetas e os sacerdotes procuram influir eticamente: ‘os leigos’”. (WEBER, 2004, p.303)

A profecia e o sacerdócio estão intimamente ligados ao ambiente de uma religiosidade racionalizada, sistematizada e ética, entendida aqui, principalmente como uma ética basilar, como um elemento central que determina, corrobora ou funciona como testemunho de uma salvação religiosa.

Num ambiente assim, de religiosidade racionalizada parece não haver lugar para a magia. No entanto, o que se pode perceber é que esses agentes religiosos (sacerdote, profeta e mago), que atuam no campo podem transitar entre as funções. Vale lembrar que esses conceitos foram desenvolvidos inicialmente por Weber, que não os tomava como conceitos estanques, mas previa uma relação, um intercâmbio entre os mesmos. Por isso, é possível entender que um único líder assuma ora uma função, ora outra função. Em outras palavras, um profeta, pode vir a ser um sacerdote e agir de maneira tal, que sua ação possa ser enquadrada como um ato mágico. O líder carismático pode ser profeta, sacerdote e, simultaneamente aos dois, ser um mago. Por isso, pode-se dizer que Soares foi profeta, tornou-se sacerdote devido às demandas institucionais e em momentos específicos de sua prática cúltica, assume a função de mago.

Soares também pode ser definido como um mago. Nesse caso, apesar de estar vinculado a uma igreja, ele age no serviço religioso com os fiéis, como se estes fossem clientes. Não há no trabalho de Soares, aquilo que ficou caracterizado no meio do protestantismo histórico como o serviço pastoral. Sua relação com os freqüentadores da IIGD é uma relação, mago-feiticeiro, que oferece serviços para uma clientela sedenta.

Como um free-lancer do sagrado, Soares não oferece disponibilidade de tempo para atendimento pastoral para seus fiéis. Não há esse tipo de trabalho na agenda de Soares. Esse trabalho cabe aos religiosos de escalões menores.

Soares nunca usou o título de pastor, que dentro da cosmovisão do protestantismo, seja ele de cunho histórico ou pentecostal, dá a idéia de uma pessoa que exerce uma função numa comunidade local, e relaciona-se com as pessoas dessa comunidade enfrenta com elas as agruras da vida e as labutas da existência.

Ele sempre usou o título de Missionário, tomando como referência as imagens bíblicas de pregadores itinerantes, que não se fixavam numa determinada comunidade, mas cumpriam o papel de propagar a mensagem das boas-novas. Seu aparecimento num culto ou numa reunião especial (culto da libertação, festa do céu, dia da Decisão) sempre é marcado por uma grande expectativa, e nunca ele cumpre o papel de ter uma relação corpo-a-corpo com os fiéis. Ele simplesmente aparece, “ministra” as curas, dirige a solenidade, “administra” as bênçãos, verifica os resultados (testemunhos que dão credibilidade ao seu discurso religioso) e retira-se protegido por seguranças.

Estes são alguns poucos elementos, que comprovam a aplicabilidade da teoria de campo religioso de Pierre Bourdieu no universo pentecostal brasileiro. Essa teoria do campo religioso é uma excelente ferramenta para estudar o fenômeno religioso pentecostal no Brasil.