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2.1 – AQUÉM DO CIDADÃO KANE, MAS DO LADO DE JESUS

2.4 RR Soares: Profeta, Sacerdote e Mago

Para analisar as atividades de Soares à frente da Igreja Internacional da Graça

de Deus, é necessário usar como referencial teórico os conceitos desenvolvidos

por Pierre Bourdieu. Para tal, primeiramente, será realizada uma breve explanação da importância de Bourdieu como uma referência no campo das ciências sociais e a importância dos conceitos de habitus e de campo, na obra do sociólogo francês, logo após, serão aplicados os conceitos de profeta, sacerdote e mago em relação à atividade de Soares.

A obra de Pierre Bourdieu (1930-2002) é uma referência para várias disciplinas das chamadas Ciências Humanas. Ele escreveu sobre arte, ciência, educação, alta costura, televisão, religião com profundidade e rigor acadêmico.

O que interessa para este trabalho, dessa grande versatilidade de Pierre Bourdieu, são seus escritos sobre religião.

Um de seus grandes méritos em matéria de religião foi partir dos pressupostos das três grandes tradições clássicas (Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber), ou como ele mesmo se referiu, dos três “círculos mágicos” (BOURDIEU, 2005, p.27). Vale ressaltar que essa tentativa de compatibilizar as contribuições das três tradições clássicas não vale somente para a religião, mas tem um aspecto mais amplo. Na verdade, Bourdieu apropria-se das três tradições clássicas na tentativa de elaborar uma teoria dos fatos culturais e isso não pode ser visto como um trabalho de simples bricolage. Paulo Miceli na Introdução brasileira da obra de Bourdieu – A Economia das Trocas Simbólicas – deixa isso bem claro:

“Diante da tentativa de elaborar uma teoria regional dos fatos culturais capaz de compatibilizar as contribuições dos fundadores – (...) Marx, Weber, Durkheim – num esforço de compensar as carências e omissões derivadas da perspectiva unilateral que assumiram, muitos poderiam, apressadamente, qualificar tal projeto de “eclético”, “pluralista”, “sincrético” e, até mesmo, pensar em bricolage. Na

verdade, o que Bourdieu pretende é retificar a teoria do consenso por uma concepção teórica capaz de revelar as condições materiais e institucionais que presidem à criação e à transformação de aparelhos de produção simbólica cujos bens deixam de ser vistos como meros instrumentos de comunicação e/ou de conhecimento”. (MICELI, Paulo (2005), “Introdução: A Força do Sentido”. In: A

Economia das Trocas Simbólicas. p.XII).

Apropriando-se como ninguém dos círculos mágicos, Bourdieu ampliará muitos conceitos desenvolvidos inicialmente pelos “pais fundadores”. No carreadouro de Durkheim, quando Bourdieu refere-se à religião, ele trata-a como linguagem, como um sistema simbólico de comunicação e pensamento e em função disso a religião passa a ser interessante para a sociologia, tendo em vista que ela oferecerá a um determinado grupo social a ordenação lógica entre o mundo natural e social integrando-os numa ordem cósmica.

“Seguindo Durkheim, que define a religião como um conjunto de práticas e representações revestidas de caráter sagrado, Bourdieu trata a religião como linguagem: sistema simbólico de comunicação e de pensamento. É enquanto sistema de pensamento que a religião interessa à sociologia, uma vez que ela opera para uma dada sociedade a ordenação lógica do seu mundo natural e social, integrando-o num cosmos. Ou seja, para a religião tudo o que existe ou venha a existir tem sentido porque se integra numa ordem cósmica. Ao enfatizar a produção de sentido (assumindo a contribuição de M. Weber), Bourdieu descarta a crítica iluminista da religião (como se ela fosse um sistema explicativo, equivalente à filosofia ou à ciência) e aponta sua especificidade: unir cada evento particular à ordem cósmica”. (OLIVEIRA, Pedro A.Ribeiro de ( 2003). “A Teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: Sociologia da Religião – Enfoques

Teóricos. p.177).

Dois conceitos em Pierre Bourdieu são fundamentais para quem estuda religião, o conceito de habitus e o conceito de campo. Em relação ao conceito de

“Habitus surge como um conceito capaz de conciliar a oposição aparente entre a

realidade exterior e as realidades individuais. Capaz de expressar o diálogo, a troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades. Habitus é então concebido como um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir cotidiano. Pensar a relação entre indivíduo e sociedade com base na categoria habitus implica afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente orquestrados. O habitus é uma subjetividade socializada. Dessa forma, deve ser visto como um conjunto de esquemas de percepção, apropriação e ação que é experimentado e posto em prática, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam”. (SETTON, Maria da Graça Jacintho, 2002, p.63).

Quanto ao conceito de campo, este pode ser definido da seguinte forma:

“Campo seria um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e jogo de poder. Segundo Bourdieu, a sociedade é composta por vários campos, vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias” (ibid, p.64).

Como se pode perceber pela citação acima, Bourdieu acredita na existência de vários campos que compõem a sociedade. O que importa nesse momento é compreender a noção de campo religioso. Noção esta que tem possibilitado grandes avanços aos estudiosos do fenômeno religioso.

No entanto, não se pode promover uma redução do trabalho acadêmico de Bourdieu, ele não é especificamente um sociólogo da religião, ele pode ser definido como um teórico da cultura e a sua importância para a religião decorre da especificidade do seu trabalho em relação à noção de campos que compõe a sociedade, o que acabou desembocando no conceito de campo religioso, termo

este amplamente utilizado pelos pesquisadores de religião. É isso que afirma Lísias Negrão:

“Sua escolha, (Bourdieu) não obstante sua obra exígua na área de meu interesse (religião), decorre da qualidade de seu trabalho e de sua criatividade conceitual: a noção de campos diferenciados de relações sociais, genericamente por ele utilizada em suas análises, conduziu, em sua aplicação às relações religiosas, ao conceito de campo religioso, largamente utilizado pela sociologia da religião, mesmo em contextos teóricos distanciados da referência inicial”.(NEGRÃO, 2005, p.24).

Segundo o Professor Steven Engler (2003), Bourdieu inicialmente elabora este conceito de campo religioso em dois artigos em 1971, onde ele repensa a distinção entre sacerdote e profeta; problemática inicialmente desenvolvida na sociologia da religião de Max Weber. (ENGLER, p.446).

Com uma linguagem de cunho econômico, Bourdieu estrutura o campo

religioso. No campo religioso as contendas e as disputas sociais entre os diversos atores sociais que o compõem, marcam a tônica desse espaço. Hugh B. Urban diz o seguinte: “Como outros campos sociais, o campo religioso é para Bourdieu um mercado competitivo”. (URBAN, 2003, p.362).

Nesse mercado competitivo, é fundamental acumular capital religioso, capital sagrado, as contendas se dão para se definir quem administrará os bens de salvação e quem exercitará o poder dentro do campo. Assim como uma sociedade, divide-se em classes e hierarquiza-se, no campo religioso ocorrerá fato semelhante.

“Em uma sociedade dividida em classes, a estrutura dos sistemas de representações e práticas religiosas próprias aos diferentes grupos ou classes, contribui para a perpetuação e para a reprodução da ordem social (no sentido de estrutura das relações estabelecidas entre os grupos e as classes) ao contribuir

para consagrá-la, ou seja, sancioná-la e santificá-la”. (BOURDIEU, 2005, p.p.52- 53)

Ocorre dentro do campo religioso uma divisão social do trabalho, quando os produtores de bens religiosos tornam-se especialistas sendo, portanto, dispensados do trabalho material. Esses especialistas serão responsáveis por produzir, gerenciar e distribuir os bens religiosos, ou em outras palavras, produzir, gerenciar e distribuir o capital religioso. Como qualquer capital, esse capital religioso depende da demanda religiosa e da oferta religiosa (Ibid., p.57). Se há demanda e oferta, é porque existem consumidores e estes são os “leigos”. Destituídos de capital religioso e ignorantes de sua própria destituição, os leigos precisam se encarregar do trabalho material e prover sustento “espiritual” para os produtores de bens religiosos. Essas relações entre os especialistas religiosos (produtores de bens religiosos e os detentores do capital religioso) e os leigos (consumidores de bens religiosos e destituídos de capital religioso) criam um

habitus e constituem o campo religioso. No entanto, esse campo religioso será

marcado por conflitos, uma vez que alguns leigos tentarão uma autoprodução de bens religiosos desafiando o poder concentrado nas mãos dos especialistas. Essa é uma primeira tensão observada dentro do campo. Uma segunda tensão pode ser verificada entre os especialistas que se rivalizarão na tentativa de atender às expectativas das demandas leigas. Para entender a essas tensões e à própria dinâmica do campo religioso, é necessário examinar os diferentes tipos de agentes religiosos e suas relações com os “leigos” organizados em diferentes grupos e classes sociais (OLIVEIRA, 2003, p.186).

Valendo-se da tipologia weberiana, Bourdieu classifica os agentes religiosos como sacerdotes, profetas e magos.

O sacerdote é o agente da continuidade, da burocracia religiosa; ele procura manter a religião estabelecida, a ordem instituída doutrinando os fiéis e cumprindo fielmente os ritos praticados por esse grupo religioso. O sacerdote tem como área de atuação a igreja. Ele não deve criar nada novo, ele deve reproduzir e perenizar

um sistema de crenças e ritos sagrados. Tudo o que fugir dessa ordem tradicional, conservadora deve ser rotulado como “pecado”.

O profeta, por sua vez, é o agente da descontinuidade, que, em momentos de crise, portanto, em situações extraordinárias, produzirá, através de seu discurso ou de sua atuação prática, uma nova concepção religiosa. O profeta é legitimado pelo carisma que lhe é socialmente atribuído. O profeta pode surgir dentro de uma organização religiosa estabelecida (igreja), mas essa figura do profeta será combatida pelo corpo sacerdotal, levando o profeta e seus seguidores a criar um movimento cismático, criar uma nova seita. É interessante perceber que a morte do profeta abrirá a possibilidade de seu carisma ser apropriado pelos discípulos mais próximos, que tentarão dar continuidade à obra iniciada pelo profeta, gerando um grau de institucionalização que desembocará num novo quadro de sacerdotes, por isso todo movimento sectário acaba se organizando numa nova

igreja, que, no futuro, será objeto de contestação de novos profetas, num processo

histórico-social interminável.

O mago é o agente religioso prestador de serviços sagrados que atua de forma autônoma, valendo-se dos bens simbólicos produzidos por sacerdotes e profetas. Ele não se vincula a uma igreja ou a uma seita, ele não cria uma comunidade, mas sim uma clientela. A tendência é que o mago seja combatido tanto pelo sacerdote, como pelo profeta, que consideram que a magia realiza uma apropriação indevida dos bens religiosos.

Interessante perceber que todas as ações desses agentes religiosos têm como alvo o grupo social dos leigos, que se vêem nesse emaranhado de ofertas religiosas. Essas relações de concorrência interna, de demandas e ofertas religiosas constituem o campo religioso.

“Essas relações de transação ligam os diferentes agentes especializados a grupos ou classes sociais com diferentes interesses objetivos. Numa sociedade de classes, encontraremos aí as classes dominantes, que pedem à religião que legitime sua dominação e seu bem-estar material, bem como as classes dominadas, que pedem à religião a esperança de libertar-se de sua opressão, ou, ao menos, uma forma de compensação (agora sofreremos, mas no futuro

gozaremos). No cruzamento dessas duas relações reside a lógica do campo religioso: agentes especializados competindo entre si para conquistar o monopólio do atendimento às demandas das diferentes classes de ‘leigos’ e, assim assegurar sua existência material”. (Ibid., p.190).

2.5 Aplicando a Teoria de Campo Religioso na Organização da