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1. A CONSTRUÇÃO DE ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS E ESPORTIVAS

2.2 Apolíticos, apartidários e para todos os portugueses

Esclarece que tendo sido portuguezes todos os fundadores desta associação, elles se lembravam de conservar-lhe sempre o cunho de nacionalidade portugueza e dahi a razão do título de Portugal Club. Refere-se depois ao motivo escolhido para a bandeira do club, o qual está ainda em harmonia com os seus fins. Faz ainda salientar que o Portugal Club não tem qualquer inclinação partidaria relativamente á politica portugueza, nem permittirá dentro do seu recinto a pratica de qualquer jogo de azar. (PORTUGAL..., 1921, p. 5)

O relato, referente a um discurso proferido na solenidade de inauguração do Portugal Clube, é um exemplo claro de um tipo comum de discurso que circulava em alguns meios associativos, mesmo antes do golpe militar em Portugal (1926) e de sua posterior evolução para o Estado Novo (1933). O clube deveria ser um espaço para todos os portugueses, sem declarar inclinações partidárias – a República portuguesa enfrentava, em 1921, um cenário conturbado de problemas sociais e econômicos, além de grave instabilidade política –, regra pragmática e moral igualada à proibição dos jogos de azar no recinto. Tal projeto não parece ter tido sucesso. Como pudemos ver anteriormente, tanto um quanto o outro, qual seja, a atividade política e a jogatina, ocorreram em maior ou menor grau ao longo da história do Portugal.

O quase gêmeo Clube Português seguia, contemporaneamente, no mesmo sentido, sob a distinta e erudita tutela de Ricardo Severo que, em discurso inaugural de 1921,

afirmava: “[...] no grêmio que hoje se inaugura é acentuada a idéia primordial de reunir numa só assembleia todos os compatriotas, sem distinção de seitas ou partidos, a fim de que sejam na mais fraternal convivência, como entre família, em torno do lar natal” (SEVERO apud O CLUBE..., 1967, p. 121). As práticas da associação, evidentemente, também caminharam em outro sentido. Entretanto, esse discurso de apartidarismo não ficou restrito aos primeiros anos do Português, persistindo em outras ocasiões posteriores, como quando da inauguração de sua biblioteca, em 1929, “[...] cujas portas se vão abrir, de par em par, a todos que desejem consultal-a, sem indagar da nacionalidade nem das crenças politicas ou religiosas dos que nella ingressem” (CLUB..., 1929, p. 4). Na publicação do primeiro número da Revista Portuguesa, editada pelo clube e dirigida por Ricardo Severo, qualquer desconforto em relação a partidarismos era prontamente solucionado já nas primeiras páginas.

Esta publicação não tem um propósito dogmático, nem resulta de qualquer combinação particularista, ou partidária, dentro dum determinado quadro social, político, filosófico ou religioso. É tão sômente uma revista literária, abrangendo a universalidade dos assuntos que ocupam a vida mental da modernidade, na máxima amplitude e liberdade de pensamento e de expressão. [...]

A REVISTA PORTUGUESA acompanhará, pois, o movimento scientífico, literário e artístico dos dois países, estabelecendo mais um elo de conjunção no campo da vida espiritual, nesse infinito arraial para onde convergem as peregrinações de todos os ideais, onde não existem fronteiras políticas, e onde as almas dos povos se irmanam na mais ampla liberdade. (SEVERO, 1930, p. III)

A consistência discursiva do apartidarismo no Clube Português talvez se devesse ao idealismo de Severo que, de longa data, almejava a criação de uma Casa de Portugal que pudesse agregar todos os lusos em terras paulistas. Na ocasião da efetivação do projeto da Casa, em 1935, num momento em que o Estado Novo português já buscava ingerir nos rumos do associativismo luso-brasileiro, a ideia também era demarcada no âmbito da nova instituição, inclusive via declarações de uma de suas primeiras lideranças, Dr. Rebelo Gonçalves. Ao Correio Paulistano, o intelectual afirmou que

Todos terão nesta o seu lugar, desde que sejam esforçados e animosos. A mesma attitude de espirito que nos levou a abater bandeiras de credo religioso ou politico, quando ao programma minimo da "Casa de Portugal", repete-se agora, para que nos trabalhos de estudo, de organização e de propaganda entrem todos aquelles em que só se reclama uma qualidade - a de serem portuguezes bons e activos. (A CASA..., 1935, p. 2)

Pressupunha-se que os portugueses bons e ativos mantivessem-se sem atritos políticos e sustentassem a adesão à associação que, sob a máscara – consciente ou não – do apartidarismo, tinha poder de influência sobre a colônia e propunha-se a representá-la em sua totalidade. A complexidade do contexto político a níveis local, nacional e internacional nos permitem imaginar que, no entanto, tal homogeneidade projetada talvez tenha enfrentado dificuldades para se concretizar. É provável que tenha havido conflitos e dissidências, tanto na Casa de Portugal como nos clubes. Esse fato, porém, é difícil de ser constatado de maneira precisa: há um considerável silêncio na imprensa no que diz respeito aos atritos e, ao que nossa interpretação das fontes indicou, a mesma parecia adotar, em certas ocasiões, discursos de apartidarismo de teor semelhante em suas publicações sobre as associações da colônia.

Houve, de certo, alguns raros momentos de exposição de embates, como foi o caso do conflitivo processo que levou à formação da União Trasmontana de São Paulo a partir de uma cisão do Centro Trasmontano. Embora existissem, aparentemente, questões étnicas e pessoais envolvidas na dissidência – cabe frisar, dissidência aguda que ganhou expressão na forma de cadeiradas e bengaladas durante assembleia do dia 13 de janeiro de 1935 (TUMULTOS..., 1935, p. 1) –, havia também um declarado componente partidário, conforme vemos em carta aberta do dissidente Pinto Ribeiro.

[...] devem os trasmontanos ser dirigidos por trasmontanos ou por pessoas que nem portuguezes são? devem os trasmontanos dar apoio a uma collectividade que conta, no meio de seus conselheiros, creaturas analphabetas? devem os trasmontanos silenciar deante do desbaratamente do patrimonio social conseguido á sombra do patriotismo portuguez? devem os trasmontanos calar a sua revolta deante da attitude de um Centro que chega ao auge de, por intermedio do seu presidente capitão da Força Publica Paulista, assignar um telegramma ao sr. general Carmona, felicitando-o pela posse da presidencia da Republica, esquecendo-se que os Estatutos védam manifestações politicas e que deveria ter mais respeito pelos seus representados? devem os trasmontanos lançar para o olvido a noção dos seus deveres para com a Patria ou elevar cada vez mais alto o nome de Portugal? Não! A rudeza dos serranos sempre soube acalentar no escaninho mais intimo do seu coração, o culto e amor pela Patria distante. Por isso nasceu a "União Trasmontana" para revidar a afronta. (RIBEIRO, 1935, p. 7)

Neste caso, o apoio ao Estado Novo português configurou um dos eixos de ruptura entre dois grupos de trasmontanos de São Paulo. Ponto de ruptura que, na fala de Ribeiro, é colocado como um afronte à pátria e, importante destacar, um descumprimento estatutário de um centro que não deveria possuir quaisquer inclinações partidárias.

A querela se prolongou por meses nas páginas dos jornais, notadamente na Secção Portuguesa – espaço destinado às notícias sobre a vida portuguesa em São Paulo – do Correio de S. Paulo. Contudo, representa uma exceção em meio à tendência geral da imprensa em aderir ao discurso da homogeneidade apartidária, reforçando a imagem coesa das associações.

A análise das fontes nos dá indícios de que a ideia de um caráter apolítico ou apartidário das associações, voltadas a todos os portugueses e sem nenhuma forma de sectarismo, tenha sido relativamente duradoura na trajetória de algumas das principais instituições paulistanas, inclusive o Clube Português e o Portugal Clube. Embora saiba- se que o ideal de unidade tenha sido um dos recursos utilizados pelo salazarismo nos anos 1930 para vigiar e ingerir na atuação das associações no Brasil (PAULO, 2000; SCHIAVON, 2007), é possível pensar que ele tenha sido mobilizado também para outras finalidades, já que esteve presente no início dos anos 1920. Talvez tenha sido uma necessidade para o estabelecimento e consolidação das associações em seus primórdios, cuja fragmentação de sócios poderia levar ao fracasso da iniciativa. Por outro lado, poderia haver de fato um interesse legítimo, politicamente compromissado, por parte de intelectuais como Ricardo Severo, em se buscar uma unidade cultural e identitária acima das diferenças políticas. De qualquer modo, o aspecto contraditório entre um discurso que se dizia apartidário e um conjunto de práticas que iam na contramão dessa proposta, dadas no decorrer das trajetórias das associações, parece ser um elemento importante para a compreensão geral do associativismo luso em São Paulo.