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aponta semelhanças e diferenças no modo de fala e na performance de LS e RS.

Para delinear os pressupostos destacados, mostra-se, em um primeiro momento, a intervenção das práticas sociais na constituição da referência dêitica, assinalando semelhanças entre o modo de fala e a performance de LS e RS; em um segundo momento, destaca-se os usos estereotipados das formas dêiticas, apontando diferenças no estilo de fala e nos gestos dos “agentes”; em um terceiro momento, apresenta-se a interferência, no processo dêitico, de aspectos do campo social mais amplo, indicando, mais uma vez semelhanças na maneira de falarem e gesticularem no palanque.

5.2.1 A intervenção das práticas sociais na constituição da referência dêitica.

Para demonstrar que o sistema dêitico adapta-se ao campo social, Hanks (2008) analisa alguns dados e esclarece que a incorporação de práticas sociais específicas integra-se ao processo de referenciação dêitica. Recorre-se a esse postulado e analisa-se, nesta parte do trabalho, dados de discursos de LS e

RS, assinalando a interferência da prática social na constituição do processo de

referenciação dêitica em discurso de palanque.

Ao apresentar os exemplos (11) e (12) abaixo, nos quais as formas utilizadas assinalam o grau de proximidade entre o sujeito e o referente exofórico, Hanks (2008) descreve o componente básico dos dêiticos a‟ e o‟: a forma a‟, utilizada em (11), expressa proximidade entre falante e objeto; a forma o‟ empregada em (12) exprime distância entre falante e objeto.

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„in koh hé‟ elá túun k‟í‟ inam

“Meu dente bem aqui (tocando-o) está doendo.”

(12) O referente é facilmente visível tanto para o falante quanto para o destinatário, a uma distância de cerca de cinco passos. O falante pergunta,

Tz‟ axohk e liibro o‟?

„Você leu aquele livro?”. (HANKS, 2008. p. 234)

Em (13) o dado apresenta um ingrediente mais complexo. Um homem entregou uma peça de roupa da filha para que, a partir dela, Dom Chabo, o xamã, fizesse um diagnóstico da menina que não pôde comparecer à consulta. O xamã, após fazer uma oração, deu um diagnóstico sobre o estado da menina, conseguindo saber o que se passava com ela. Mesmo ela não estando diante dele, ele percebe o que se passa com a criança. Olhando fixamente para os cristais de adivinhação mantidos em suas mãos, ele fala:

(13) le chambbal a‟, chochoz y

DNOM S Pred.adj.

yoól kA „uúch tí

seu-S Comp Vb para-Ø seu coração quando (isso) ocorreu (para ela)

“Esta criança estava queimando de febre quando isso (a doença) aconteceu.” (HANKS, 2008. p.236)

Dom Chabo, mesmo não estando diante da menina, utiliza a forma, chambbal a‟, “esta criança”, pois ele consegue vê-la naquele momento nos cristais. Há uma relação correlata entre a imagem e a criança. Essa relação é ativada pelo conhecimento teológico de Dom Chabo e pelas atribuições que o senso comum estabelece acerca do papel dos xamãs. O exemplo assinala que a imagem da menina é percebida pela percepção tátil e visual, pois Dom Chabo, ao tocar na peça de roupa da menina, pôde vê-la nos cristais.

Em (14) o dêitico utilizado também é a‟, pois a percepção tátil e visual do objeto assegura a aproximação do sujeito e do seu referente.

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(14) no quarto dos fundos de dom Chabo, próximo ao altar, uma mulher explica onde a perna do marido está ferida, demonstrando em sua própria perna;

Mèn le he el a‟...bey tún uúchilih té‟ e bey a‟

“que essa uma aqui,… é bem aqui que isso aconteceu com ele” (HANKS, 2008. p.237)

Em (15) faz-se referência a um objeto que está fora da cena e que os participantes desconhecem onde está, portanto utiliza-se o‟.

(15) Dom Chabo e Lol estão repreendendo severamente Victor, que tinha tirado alguns itens da minha bagagem algum tempo antes, naquele mesmo dia. Eles têm conhecimento do furto, e Lol recuperou alguns dos itens, mas não sabem o que mais foi tirado. Ameaçando bater no menino, eles gritam,

Tu ux tatz‟ aa le bá‟ al o‟ k‟ ub e bá‟ al o‟

„Onde você colocou as coisas, devolva-as!‟(HANKS, 2008. p.238)

No exemplo (16) o uso do dêitico distal destacado, lel o – aquele - tem como referente o discurso anterior, ou seja, o enunciado (A). Utiliza-se um procedimento metalinguístico para retomada anafórica do referente, portanto a constituição do processo de referenciação é discursiva.

(16) A: hach chokow Le k‟ìin o‟ “Aquele sol está realmente quente”. B: lel o‟ hàah a t‟àan “Aquele, você tem razão (lá)”.

(HANKS, 2008. p.239)

O elemento dêitico a‟ em (11) estabelece a noção de proximidade e o‟ em (12) estabelece a noção de não proximidade. Mas essa oposição não esclarece o uso de dêiticos em (13), (14), (15) e (16). Para dar conta do que acontece nesses exemplos, o autor mobiliza a noção de correspondência: “Uma correspondência é uma equivalência prática por meio da qual um tipo de contexto vale por - é praticamente equivalente a – outro” (Hanks, 2008. p. 239). Em (13) e (14) a percepção visual-tátil faz com que o falante utilize a‟, assegurando a noção de proximidade. Portanto, ocorre uma correspondência entre tátil, visual e proximal. Já nos exemplos (15) e (16) o falante recorre à memória para fazer

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referência ao objeto. Utiliza, então, o dêitico o‟, a correspondência que ocorre aqui é entre a associação distância e memória.

Mas o pesquisador ressalta que a noção de correspondência não pode ser confundida com as relações correlatas. Em (13), por exemplo, a relação entre a imagem nos cristais e a criança determina a identidade entre dois objetos, há, pois, uma relação correlata. O mesmo procedimento se observa em (14), onde há uma relação entre o corpo do falante e o corpo de outro sujeito. A correspondência é estabelecida pelos diferentes procedimentos que os falantes têm para ter acesso ao objeto, ou seja, o que está fora de cena, distante.

Em síntese, enquanto os correlatos se ancoram em convenções estabelecidas previamente por acordos tácitos na comunidade, as relações de correspondência são estabelecidas por analogias presumíveis entre as situações.

Hanks (2008) esclarece que só foi possível a Dom Chabo enunciar (13), por ser um xamã, ou seja, um especialista legitimado pela comunidade. Ele se preparou por meio da oração para fazer uso de um recurso tecnológico sofisticado, os cristais de adivinhação, e diagnosticar uma patologia. Nesse contexto foi possível referir-se à menina, utilizando uma forma dêitica proximal. Outra pessoa em seu lugar não poderia fazer isso, pois não teria a autoridade necessária. A compreensão da relação entre a imagem da menina nos cristais em (13) deve ser estabelecida pela incorporação de atributos sociais à prática dêitica. Hanks (2008, p. 241) explica:

A relação correlata conta, para sua inteligibilidade, com o encaixamento do enunciado em um campo dêitico estabelecido. Não há nada na língua nem no Zeigfeld que possa ancorar essa ideia. Meu argumento, então, é o de que a referência sempre se apoia em relações correlatas como essa em (13), ou naquela do exemplo (14), apoia-se, desse modo, na incorporação social que autoriza o estabelecimento de uma referência deslocada [grifo meu].

Em (13) e (14) a relação de correspondência esclarece a atuação da percepção e da memória na constituição do procedimento dêitico. Assim, as

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relações correlatas incorporam ao procedimento dêitico os acordos tácitos constituídos na comunidade.

Nos exemplos apresentados até aqui, o autor investiga os diversos tipos de acesso do falante aos referentes, mostrando que cada situação favorece o uso de uma forma dêitica em detrimento de outra. Ele mostra como o sistema dêitico pode adaptar-se às diferentes condições do campo social, porque ocorre a incorporação de práticas sociais específicas ao processo de referenciação dêitica. Apresentam-se dados de discursos de LS e RS, assinalando a interferência da prática social na constituição do processo de referenciação dêitica, produzido em contextos de discurso de palanque.

Durante a campanha eleitoral, os candidatos procuram fortalecer sua campanha, buscando apoio político. Os acordos e alianças eleitorais realizados no período de campanha transformam adversários em aliados e estes sobem no palanque para mostrar o apoio ao candidato da coligação. Em (17) e (18), LS está discursando em um comício, no Rio de Janeiro, durante o segundo turno da campanha eleitoral de 2006. No segundo turno, os eleitores votaram para presidente e governador. LS dirige-se a Sergio Cabral e aos demais participantes do evento e explica a aliança política que se consolidou, no Rio de Janeiro, para apoiar, no segundo turno eleitoral, Cabral. Destaca-se em (17) a presença do dêitico aqui na fala de LS:

(17)

74 LS [... quero dizer para você Sergio e quero fazer uma homenagem aqui 75 Plateia [((aplausos)) *--- 76 LS ao Senador Crivella pelo tratamento especial que ele deu à necessidade

--- 77 Uma pessoa [((aplausos))

78 LS [de fazer aliança com você...

---▫* ((neste momento LS vira-se para o lado esquerdo, parece olhar para Sergio Cabral. LS Começa a gesticular com as mãos para baixo e prossegue com esse gesto até falar “aqui”. Depois, se vira um pouco para direita, em seguida para frente.))47

47 Esse excerto faz parte do Video 57, parte 1. A referência está na Lista de Vídeos nas referências.

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