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O MODO DE FALA DE LS E RS: UMA TRAJETÓRIA SOBRE PALANQUES

4.2 O pronome de 1ª pessoa na referência à pessoa que fala

Ilari et al. (2002), ao estudar os pronomes pessoais do português falado, examinam corpus do NURC e explicam a natureza fórica do elemento. Os pesquisadores consideram que, a partir dessa natureza, distinguem-se duas funções dos pronomes pessoais, interacional e textual:

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It has now often been noted that linguistic differentiation is not a simple reflection of social differentiation (or vice versa), because linguistic and social oppositions are not separate orders of phenomena. As Ferguson (1994:19) writes, “languages phenomena are themselves sociocultural phenomema and are in part constitutive of the very social groups recognized by the participants or identifield by analysts”. It is the mediating recognition and identification, together with its ideological frameworks and pressures, whose relationship with processes of stylistic differentiation I have sought to explore. (IRVINE, 2001, p.42)

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Em primeiro lugar cabe apontar a natureza fórica do pronome pessoal. É uma determinação categorial da qual decorrem duas grandes funções da classe, uma interacional e outra textual, a saber:

1) Representar na sentença os papéis do discurso (é a função que remete à situação de fala e que, segundo o quadro teórico adotado, tem sido chamada de dêitica ou exofórica);

2) Garantir a continuidade do texto, remetendo reiteradamente aos mesmos argumentos (é a função que remete ao próprio texto, genericamente chamada endofórica, sendo a anáfora sua representação por excelência). (ILARI et al., 2002, p. 75)

O princípio descrito no item (1) elucida o uso que LS e RS fazem, no discurso de palanque, da 1ª pessoa, em função dêitica. Ilari et al. (2002) esclarecem que os pronomes pessoais, na função dêitica, se remetem ao eu que discursa. Esse aspecto interessa a este trabalho porque assinala o processo de designação dêitica, no emprego do dêitico de 1ª pessoa. Mas, os pronomes não expressam, por eles mesmos, o significado. Os pesquisadores citam estudos, acerca de significados nos pronomes (Lemos,1991; Jakobson, 1957; Hjelmslev, 1975; apud Ilari et al., 2002, p.76), e concluem:

O que parece certo é que a interpretação dos pronomes (não só dos pessoais, mas de todos os fóricos) é do âmbito da semântica textual, não da semântica da palavra, embora seja verificável em cada um dos fóricos (os pessoais e alguns outros pronomes) uma instrução muito firme para interpretação. É que os fóricos incorporam uma indicação precisa de relações, seja com o discurso, seja com outras porções da peça do discurso, situando-se a variedade na possibilidade de mudanças do elemento referido ou recuperado, não na relação em si. (ILARI et. al., 2002, p. 76)

Há, pois, nos pronomes uma indicação, uma instrução que orienta a constituição do sentido, mas cabe ao interpretante perceber essa relação, constituída na interação falante-ouvinte, ou autor-leitor. Os autores consideram que os pronomes pessoais exercem uma função, representam, no discurso, os interlocutores, e evocam personas:

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De fato, uma função típica dos pronomes, certamente responsável pela qualificação “pessoais”, e a de constituir expressões referenciais que representam na estrutura formal dos enunciadores os interlocutores responsáveis pela enunciação. “Pessoal” (etimologicamente derivado de persona = “máscara”) evoca aqui a possibilidade de alternar os papéis da interlocução, o que permite compreender a noção de “pessoa” como algo mais do que um mero tecnicismo gramatical ligado à conjugação verbal. (ILARI et at., 2002, p. 82)

Partindo desse princípio, considera-se que o uso que LS e RS fazem, no discurso de palanque, de pronomes pessoais de 1ª pessoa, indica a pessoa que fala no evento, quer dizer, uma persona, um representante político.

Para descrever “os papéis discursivos que os pronomes pessoais distinguem” (ILARI et al., 2002, p. 82), os autores situam esses elementos em dois eixos:

a) o das pessoas que interagem linguisticamente, os interlocutores, os quais, na sucessão da fala, se opõem entre si nos papéis de locutor/emissor (1ª pessoa) e alocutário/receptor (2ª pessoa);

(1-1) eu vou descrever para você minha viagem

(D2-SSA-98: 3.1) b) o das entidades a que se refere a interlocução (3ª pessoa, ou não-

pessoa).

Este segundo eixo, o dos objetos, pessoas, realidades etc. a que se faz referência na fala, mas não são constitutivos da interação verbal, opõe-se ao primeiro, o dos indivíduos identificados por deterem os papéis discursivos:

(1-2) nós temos empregada [...] ela faz a feira

(DID- RJ-328: 2.51) (ILARI et al., 2002, p. 82-83)

Os linguistas consideram que os pronomes pessoais representam dois tipos de indivíduos, os que têm papel na interação (emissor - locutor; receptor- alocutário) e os que não têm papel na interação, mas são referidos no discurso. Os pesquisadores fundamentam esse princípio, explicando pressupostos delineados por Apolônio Díscolo (1987, apud Ilari et al., 2002. p.83):

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Em outras palavras, nas duas primeiras pessoas [1ª e 2ª] há, ao mesmo tempo, uma pessoa implicada no discurso e um discurso sobre essa pessoa e, desse modo, os pronomes de primeira pessoa e de segunda pessoa se interpretam por um processo de auto referência. Assim, eu designa a pessoa que fala e implica, ao mesmo tempo, um discurso sobre ela, a partir dela própria. Já a segunda pessoa é necessariamente referida pela primeira, e não pode ser pensada fora de uma situação proposta a partir do eu. Pode-se, pois, perceber, no interior das pessoas que realizam a interlocução, uma oposição discursiva entre interlocutor que instaura momentaneamente o enunciado (forma subjetiva) e interlocutor de quem não parte, no momento, a fala (forma não subjetiva). (ILARI et al., 2002, p. 83)

Os pesquisadores ressaltam, em sintonia com Benveniste (1991), a função discursiva das 1ª e 2ª pessoas, elucidando que a noção de 1ª pessoa não se restringe ao indivíduo que fala, pois a 1ª pessoa fala de si, “forma subjetiva”. Além do mais, a 2ª pessoa não se limita a pessoa a quem se fala, deve-se acrescentar que é sobre ela que se fala, “forma não subjetiva”. Partindo desse princípio, os autores descrevem os pronomes pessoais, focalizando o papel que estes desempenham na referência aos indivíduos, evocados no e pelo discurso. Ao mapear o funcionamento da forma do plural da 1ª pessoa, os autores explicam que a passagem do singular para o plural não implica apenas pluralização:

Observe-se o pronome pessoal nós: não podemos dizer que nós seja igual a eu + eu, mesmo que esse plural não inclua realmente outra pessoa que não a primeira, análise que alguém poderia aplicar a este exemplo, extraído de uma aula de história da arte:

(1-19) Nós vamos começar pela Pré-história,... hoje exatamente pelo período... do Paleolítico

(EF-SP-405:1) Afora esse tipo de emprego, em que um indivíduo institui sua fala como a de um grupo, mas nele não inclui nem a segunda nem a terceira pessoa (o tradicionalmente chamado “plural de modéstia”), o pronome nós constitui tipicamente a soma de eu + não eu. O não eu pode corresponder a uma segunda ou terceira pessoa ou ambos conjuntamente, que, por sua vez, podem ser singulares ou plurais.

(ILARI et al., 2002, p. 88)

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a) nós = 1ª + 2ª pessoa, eu + você(s):

(1-20) a natureza dentro de casa [...] do que você e eu, nós botamos (D2-RE-05:718) (ILARI et al., 2002, p. 89)

b) nós = 1ª + 3ª pessoas, eu + eles(s):

(1-22) e:: nós havíamos programado nove ou dez filhos...

(D2-SSA-98:5) (A informante fala de si e do marido)

(ILARI et al., 2002, p. 89) c) nós = 1ª + 2ª + 3ª pessoas, eu + você(s) + ele(s)

(1-25) Doc. Hum. Tá bom, tá ligado (risos)

115. ... desde que nós entramos aqui (superp) 116. ... Está vendo? Elas estão gravando.

(D2-SSA-98:13) (A informante 115 se refere a si própria, ao documentador e ao informante 116)

(ILARI et al., 2002, p. 89)

Para os linguistas, a retomada dos referentes pronominais, não acarreta ambiguidade nem vagueza, pois os referentes podem ser recuperados no contexto. Mas, eles destacam que há casos em que se pode ter mais de uma interpretação:

(1-26) agora nós vamos passar para nosso outro assunto... o outro assunto... é a região mediastínica... então nós vamos começar a nossa região mediastínica... em uma proposição... eu vou dizer pra vocês o esquema... e vocês vão copiar...

(EF-SSA-49: 244) (...) [1. O professor inclui no nós os alunos (= eu + vocês); 2. O professor fala apenas de si mesmo (“plural de majestático”)].

(ILARI et al., 2002, p. 90)

Os estudiosos da linguagem acrescentam ainda que o nós pode ser empregado, também, como terceira pessoa indeterminada, e apresentam o seguinte exemplo:

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(1-28) então nós vamos (ter)... Altamira... que é um nome que vocês... vão encontrar em muitos lugares

(EF-SP-405-46)

(A informante faz um mapa na lousa e localiza Altamira)

(ILARI et al., 2002, p. 90)

Os linguistas mostram que o a gente, assim como nós, corresponde a eu + não eu (1ª + 2ª + e/ou 3ª):

(1-29) taxionomia de quem que vocês conhecem? Bloom, exatamente. Mesmo que seja só de nome a gente já ouviu falar nessa taxionomia.

(EF-POA-278:42) (A informante, dando uma aula, se refere a si própria e a seus alunos, que são seus interlocutores no momento.)

(1-30) aliás quando a gente vai fazer uma jantinha

(D2-POA-278:42) (A informante se refere a si mesma e ao marido, uma não pessoa do discurso)

(ILARI et al., 2002, p. 90)

Além disso, o a gente também pode ser empregado referindo-se ao eu, a pessoa que fala:

Por outro lado, da mesma forma que nós, a expressão a gente também pode referir-se ao indivíduo que fala (a gente = eu). É o que está na ocorrência abaixo, parte de uma aula de arte pré-histórica.

(1-32)... então tudo o que a gente vai dizer a respeito desse período... é baseado em pesquisas arqueológicas

(EF-SP-405:85-25) (ILARI et al., 2002, p. 91)

Ao comparar o emprego de nós e a gente, em um conjunto de dados (D2-SP-360) do corpus do NURC, os pesquisadores observam que:

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(...) nós constitui a escolha para uma indicação mais definida, enquanto a gente pode efetuar uma referência mais indeterminada, mesmo que essa expressão continue sendo usada, claramente, em referência a primeira pessoa:

(1-39) L1 acarreta mais trabalho para vocês...

L2 acarreta...mas muitíssimo... a gente trabalha...

(D2- SP-360:176) (ILARI et al., 2002, p. 93)

Eles elucidam que a indeterminação de a gente torna-se mais perceptível quando as formas, nós e a gente, alternam-se:31

(1-42) Então, quando nós fazemos, por exemplo, uma pesquisa, quando nós fazemos uma consulta bibliográfica, a rigor, eu tenho que dizer que é a rigor, porque normalmente a gente tira exatamente o pedaço do livro que [...] a gente tira retalho

(EF-POA-278:330)

(ILARI et al., 2002, p. 94)

O caráter de indeterminação pode ser observado, também, com relação ao eu:

Resta apontar a possibilidade de o próprio pronome eu (maximamente determinado, já que indica, exatamente, a pessoa que fala) adquirir caráter de referenciação indeterminada. Assim, uma pessoa que não está (e pode até nunca ter estado) na Suíça pode perfeitamente dizer: “Na Suíça, eu não preciso ficar em sobressalto, esperando um novo pacote econômico a qualquer momento”. (ILARI et al., 2002, p. 97)

Ao examinar os papéis discursivos que os pronomes pessoais distinguem, os estudiosos da linguagem mostram que o processo de designação referencial dêitica é dinâmico, pois o sentido do elemento exofórico é atualizado na retomada do referente. Para examinar o emprego das formas de 1ª pessoa, no discurso de palanque, proferidos por LS e RS, se levam em conta os princípios descritos por Ilari et al. (2002), ou seja, a função exofórica dos pronomes de 1ª

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Estudos realizados por Omena e Braga (1996) e Lopes (1998) mostram, também, que se usa a gente, normalmente, na referência a um grupo indeterminado e usa-se nós, geralmente, na referência mais determinada.

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pessoa. Além disso, considera-se que o emprego que LS e RS fazem da 1ª pessoa, no palanque, evoca personas que encenam diversos papéis na constituição da representatividade política.