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2. O LIBERALISMO DE JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA

2.1 Apontamentos para a Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil

“Antes de nos inquirir o que devemos fazer da

descoberta dessa diversidade das culturas, é de importância compreender o que ela significa e captar-lhe as múltiplas raízes. E não é tão fácil quanto parece aceitar irrestritamente a afirmação de que, no pano de fundo de nossa modernidade, nas camadas que embasam nossa cultura, existe uma competição, uma polêmica primigênia, que condiciona qualquer conscientização daquilo que a história tem feito de nós. A história nos gerou múltiplos e diversos: essa conscientização deve ser levada até ao ponto em que ela se torna

embaraço radical, aporia sem recurso aparente”.

368

‘Apontamentos para a Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil’ foi um

Projeto elaborado por Bonifácio e apresentado aos deputados da Assembleia Constituinte de 1823, tendo por escopo apresentar propostas de catequização e aldeamento dos índios bravos residentes no Brasil. Essa era mais uma parte do planejamento Andradino em buscar a

366 Ibid., p.175 367 Ibid., p.188. 368

unidade e o desenvolvimento nacional 369. Tanto índios como escravos exerciam papel dificultador na estruturação e crescimento do país por se encontrarem na barbárie civilizacional e em estado de selvageria.

Do ponto de vista do estadista, a raça indígena era vagabunda, preguiçosa 370, belicosa371, promíscua, irracional 372, melancólica, apática 373, dada a roubos e destituída de freios religiosos ou civis capazes de coibirem as vis paixões que possuíam ou de conseguirem subjuga-los à lei 374. Lado outro, apontava a parcela de responsabilidade da sociedade por não dar o suporte necessário aos índios, tratando-os mal, explorando-os e transmitindo os vícios e moléstias ao invés de propagar as virtudes que o contato com a civilização poderia apresentar375.

Podemos dizer que a educação, a catequização e o trabalho por meio do aprendizado

das “artes e ofícios” 376

eram os pilares do santista para educar o índio bravo. Era necessária a mudança de costumes, adquiridos por meio do contato com a civilização que, por sua vez, também deveria alterar sua conduta de forma a não mais afastá-los.377 Reconhecia no indígena

um ser primitivo “autômato”, cujas ações poderiam ser modeladas pelo “exemplo, educação e benefícios” 378

.

369 Nos dizeres de Bonifácio “O governo do Brasil tem a sagrada obrigação de instruir, emancipar, e fazer dos

índios e brasileiros uma só nação homogênea, e igualmente feliz”. SILVA, José Bonifácio de. Op. Cit.. p.147.

370

Justificava a preguiça do índio em virtude das inexpressivas necessidades que possuíam, já que eram raça simples e sem ambição ou frivolidades da sociedade, sobrevivendo da agricultura de subsistência, em uma terra

abundante de recursos naturais. “Demais uma razão sem exercício, e pela maior parte já corrompida por

costumes, e usos brutais, além de apático, o devem também fazer estúpido. Tudo o que não interessa imediatamente à sua conservação física, e seus poucos prazeres grosseiros, escapa à sua atenção, ou lhe é

indiferente”. SILVA, José Bonifácio de. op. cit., p.92.

371

Explica o sentimento constante de guerrilha na inevitável necessidade de sobrevivência, na disputa pela força bruta, despertando ódios e sentimentos de vingança.

372

A ausência de civilidade ou sequer de uma sociedade política organizada, colocava o índio em situação quase

animalesca, cuja razão embrionária muito se aproxima do “instinto dos brutos”. SILVA, José Bonifácio de. Op.

Cit.. p.93. 373 Ibid., p.126 374 Ibid., p.90. 375

Sobre o tratamento vil concedido aos índios escreveu: “Segundo nossas leis os índios devem gozar dos privilégios da raça branca: mas este benefício é ilusório; a pobreza em que se acham, a ignorância por falta de educação e as vexações dos diretores e capitães – mores os tornam abjetos e mais desprezíveis que os mulatos

forros”. SILVA, José Bonifácio de. Op. Cit.p.126.

376

Ibid., p.109.

377

O temor indígena contra os portugueses era plenamente justificável. Conta Bonifácio que, segundo informações do Padre Vieira, em aproximadamente trinta anos foram mortos mais de dois milhões de índios. A catequização dos Jesuítas também foi um implicador no isolamento dos silvícolas, uma vez que promoviam aldeamentos preservando as matrizes culturais. Ibid., p.98

378

Criticou os jesuítas que durante o processo de catequização apartou a convivência com os brancos portugueses, construindo uma sociedade teocrata que reputava interesseira. Acusava os religiosos de atitudes embusteiras para moldar o caráter silvícola e assim conseguir usufruir dele como melhor lhe aprouvesse 379, mas foi obrigado a ceder aos resultados positivos dessa atuação que, por meio da catequização branda, conseguiram levar o silvícola à civilidade 380.

Ponderava que a catequização dos índios bravos era assunto de sumo interesse do Estado, porquanto permitia o desenvolvimento nacional por meio da agricultura e da pecuária ao mesmo tempo em que moralizava a raça por meio de uma educação cristã.

Com o intuito de atingir seus objetivos, apresentou diversos meios de se alcançar um contato profícuo com os nativos brasileiros, iniciando com um acolhimento justo com relação às terras de propriedade dos indígenas, que deveriam, doravante, ser compradas ao invés de esbulhadas. O tratamento conferido ao autóctone deveria ser brando381, sem leva-los a sofrimentos desnecessários. Fomentou o comércio na base de trocas e o matrimônio entre os brancos e os mulatos 382, desde que os índios não fossem por eles maltratados.

O temor de retaliação e morte por envenenamento ou canibalismo fez com que Bonifácio pedisse prudência no tratamento com o indígena, não devendo confiar cegamente logo de início.

379

A aversão de Bonifácio aos eclesiásticos e sua atuação em questões de estado era manifesta. Acusava-os de atávicos por não desejarem mudanças, falando dos horrores que as revoluções poderiam causar. Rebatendo esse argumento, escreveu o ministro o antagonismo da questão dizendo que “os horrores das revoluções talvez sejam menores que os da matança de São Bartolomeu; e todavia esta matança não acabou com o catolicismo; e por que

quererão acabar hoje com as verdades que patenteou e inculcou a Revolução francesa?”. SILVA, José Bonifácio

de. Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil. In: Projetos para o Brasil. Organização: Miriam Dolhnikoff, São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.197.

380

Ponderava a facilidade do indígena em aceitar os assuntos pertinentes à fé por serem destituídos de lei ou culto, não necessitando modificar nenhum entendimento nesse sentido, aceitando de boa vontade as questões de ordem religiosa. Ibid., p.141.

381

Vale observar que o tratamento conferido ao índio era bem mais brando e cuidadoso àquele dado ao negro. Compreendia-se com mais facilidade sua fragilidade e dificuldade de adaptação com os trabalhos pesados da

lavoura e da agricultura, rogando “paciência e contemplação” para com eles. Ibid., p.111.

382

Não estimulava o matrimônio entre índios e negros, por considerar que o mestiço entre aqueles e os mulatos produziam raças melhores, mais laboriosas e fortes.

Preocupando-se com o desenvolvimento de ordem econômica, fomentou, também, a

criação de uma “caixa pia de economia” 383

para que pudessem guardar parte do dinheiro ganho com os eventuais trabalhos prestados. O Andrada preocupou-se inclusive com questões pessoais como o asseio e até mesmo o tempo de amamentação que, se prolongada, prejudicaria a saúde e diminuiria a procriação. Mais uma vez observamos a oratória humanista atrelada aos interesses do estado.

Unidade nacional e civilização dos índios são assuntos que se entrecortam, pois esbarram na política inclusiva de Bonifácio. Esta, por sua vez, com relação aos índios foi, por várias vezes, demasiado invasiva, desrespeitando a autonomia e costume da raça. Pregava o

banimento da “língua da terra” 384

sob o argumento de a portuguesa “acabar com a separação

e isolamento” 385

; tomava por preguiça e indolência o cultivo para simples subsistência, não os compreendendo como uma civilização nascente, destituída ambições.