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4. A CONSTITUIÇÃO DE 1824 FEITOS E ANTAGONISMOS DA CARTA

4.2. Direito Comparado: A influência norte – americana, francesa e espanhola no ideal

A influência francesa se fez sentir em todo movimento constitucionalista mundial, cujos intentos revolucionários impuseram fim ao feudalismo e ao regime absolutista, cabendo destaque nesse capítulo os princípios liberais preconizados pela Revolução Francesa.

Imbuídos dos preceitos de igualdade e liberdade aventados por Thomas Jefferson em 1776, a Declaração Francesa de 1789, dando início ao ciclo constitucional Francês, adota um

estilo “abstrato e generalizante” 585

da ideia de liberdade, aos moldes defendidos por Sieyés, representando a indignação burguesa contra os privilégios concedidos ao clero e à nobreza. Contém dispositivos protetivos às liberdades civis e políticas dos cidadãos contra os excessos estatais. Nesse sentido, foi pródiga ao diferenciar os direitos humanos – conferidos a todos indistintamente – dos direitos do cidadão – atributo de apenas alguns – argumento este utilizado nas discussões sobre a concessão da cidadania brasílica, na Constituinte de 1823, conforme anteriormente abordado.

Ainda nesse viés comparativo das Constituições norte-americana 586, francesa e brasileira, faz-se importante refletirmos sobre o posicionamento de Canotilho de que a liberdade preconizada pelo primeiro não era contrato entre governantes e governados tal qual entendia Rousseau, mas sim um acordo celebrado pelo povo e entre ele para se criar um governo vinculado à Carta Maior – figurando no cume enquanto higher law - contendo valores, princípios e direitos dimensionados racionalmente pela realidade vivenciada 587.

Assim, pondera-se que a forma de assimilação da ordem democrática foi diversa entre França e Estados Unidos, considerando, neste último caso, a superioridade do documento constitucional com relação a outras bases normativas com o condão de organizar e limitar o governo, dando ênfase à autonomia federalista, esta já abordada em capítulo pregresso. A

585

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2004.p. 129.

586

José Alfredo de Oliveira Baracho, analisando o movimento constitucionalista, destaca a expressão norte americana nesse contexto, pondo em relevo a Constituição de 1787enquanto documento responsável pela nova

utilização do uso da palavra ‘Constituição’ enquanto lei escrita responsável pela limitação da ação

governamental. Lado outro, apresenta a disposição francesa em respaldar a constituição focada na atuação geralmente renovadora do órgão constituinte que a elaborou. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria

Geral do Constitucionalismo. In: Revista de Informação Legislativa. Julho-Setembro /1986. 587

tradição francesa, por sua vez, ainda que democrática, sempre possibilitou espaço à tirania, seja da minoria burguesa, conforme ensaiado por Sieyés, ou pela massa popular, situação esta rechaçada com veemência por Constant. Uma vez que nossos jurisconsultos, assim como os Portugueses, pelos motivos já trazidos, bebiam nas fontes francesas, nossa Constituição se inebriou da formatação ideológica europeia.

A força renovadora calcada na separação de poderes foi, gradativamente, perdendo espaço internamente para a tradição absolutista por enfatizar o fim das desigualdades defendidas pelo Estado mais do que consagrar a universalidade das liberdades individuais, exigindo, desta forma, um governo centralizador para lidar com o fim da concessão de privilégios locais. 588

A condição ideológica da França no fim do século XVIII se repetiu no Brasil em meados do século XIX quando da formulação do projeto de 23 no período pós-independência. Vale dizer, desta forma, que o precursor do constitucionalismo brasileiro desejava posit ivar os privilégios da elite agrária em detrimento às concessões da aristocracia portuguesa, descuidando, também, na pulverização dos direitos individuais. A consequência, dessa forma, foi a mesma: um governo centralizador que, todavia, tomou os contornos indesejáveis do autoritarismo.

Da Carta de 1791 herdamos o caráter representativo no tocante a soberania da Nação589, a defesa da propriedade privada 590, a liberdade de opinião 591, a inviolabilidade e sacralidade do monarca592, a responsabilização ministerial 593, a gratuidade na instrução pública 594 e a limitação censitária referente ao voto ativo e os regramentos ao voto passivo595: todos respaldados por Constant , Montesquieu e Rousseau.

588

COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit.p. 132.

589

Vide artigos 11 e 12 da Constituição Brasileira em comparação com os artigos 1º e 2º do Título III, da Constituição Francesa.

590

Vide artigo 179, XXII da Constituição de 1824 em comparação com o artigo 3º do Título primeiro da Carta Francesa.

591

Vide artigo 179, IV da Constituição de 1824 em comparação com o artigo 3º do Título primeiro da Constituição Francesa.

592

Vide artigo 99 da Constituição Imperial em comparação com o artigo 2º do Título III, Capítulo II da Carta Francesa.

593

Vide artigo 133 da Constituição Brasileira em comparação com o artigo 5º do Título III, Capítulo II da Carta Francesa.

594

Vide artigo 179, XXXII da Constituição Brasileira em comparação com o artigo 3º do Título primeiro da Constituição Francesa.

A icônica Constituição de Cadiz 596, por sua vez, insere a Espanha no marco do constitucionalismo liberal. O momento histórico Espanhol de maior relevância para nossas pesquisas é o século XVIII e o movimento revolucionário cuja expressão ideológica mais inspiradora foi a mencionada Carta Constitucional, compreende os anos de 1810 a 1812.

Agesta nos alerta que “em pocas ocasiones se há precipitado la historía española com un movimento tan vertiginoso”.597

A Monarquia absolutista, seguindo o rumo do restante da Europa, cede espaço a uma monarquia constitucional, com tendências democráticas e liberais. O império napoleônico atingiu as fronteiras espanholas, encontrando ali uma monarquia decadente e corrupta que desarticulou a economia. Bonaparte prometia ser, por intermédio de uma nova Constituição,

“el nuevo instrumento de la reforma económica y social iniciada em el último tercio del siglo XVIII”. 598

Os espanhóis concordavam com a caducidade do absolutismo, mas jamais com a

opressão francesa. Almejavam melhoras políticas, entretanto sem a “ajuda” de estrangeiros.

Em movimento antagônico ao expansionismo, cuidaram de convocar as Cortes que se reuniriam em Cadíz para elaborarem uma nova Constituição, com caráter reformador e implicitamente revolucionário, respaldado pela soberania nacional. Esta última, justifica Agesta, foi um dos pontos culminantes da Revolução de Cadiz, porquanto retira a titularidade do poder soberano das mãos do monarca, apto que este estava a ceder às exigências de Napoleão em virtude do princípio da soberania monárquica. “La afirmación de la sobenanía nacional destruye por su base ese pretendido derecho y priva de toda legitimidad al governo

de José Bonaparte y a la Constitución de Bayona”. Afirma, ainda, em que pese essa brusca

mudança de titularidade, longe da tradição espanhola, encontrou fundamento na necessidade de expressivas e violentas mudanças na esfera política.

595

Vide artigos 91 a 96 da Constituição Imperial em comparação com os artigos 1º e 2º do Título primeiro, da Constituição Francesa.

596

A Constituição de Cadíz serviu de modelo e inspiração a várias Cartas europeias e americanas, merecendo lugar de destaque, em virtude do cunho liberal e democrático dos seus dispositivos, ao tom da Constituição Francesa de 1791. Exatamente por essa similitude recebeu duras críticas de ser uma compilação, criando uma Constituição ideologicamente democrática, mas afastada da realidade espanhola, tornando-a inexequível.

597

AGESTA, Luis Sanchez. Historia del Constitucionalismo Español. Barcelona:Talleres, 1957.p. 45.

598

A Constituição de Cadiz trouxe como princípios uma nova visão de liberdade, respaldada pela divisão de poderes; a liberdade, no aspecto revolucionário francês; um governo monárquico centralizado à moda do absolutismo ilustrado; o fomento à agricultura, à indústria e ao comércio; a proteção à propriedade individual, à organização da administração local, sugerindo uma maior autonomia às províncias; desenvolvimento da educação nacional; criação de um corpo legislativo; a soberania nacional e, por fim, a reorganização da Fazenda Pública e do exército.

Observando a disposição formal e a fundamentação principiológica da Constituição Espanhola, verificamos pouca diferença estrutural do Projeto de 1823, ao mesmo tempo em que é possível identificar o motivo pelo qual diversos conceitos foram mitigados tanto no mencionado Projeto quanto na Constituição de 1824, destacando nesse contexto o caráter popular, democrático e, em alguns aspectos, demagógico que emoldurou as revoluções espanhola e francesa.

Nesse sentido, torna-se compreensível porque os artigos responsáveis por trazer a separação de poderes se inspiraram no modelo norte-americano, com o monarca detendo a prerrogativa de iniciativa legislativa e o direito de veto, ao invés do texto da Constituição Francesa de 1791. Desta forma, mantinha a titularidade do poder soberano em mãos populares e fracionavam o exercício desse poder, com o objetivo de equilibrá-lo, com o rei, com as cortes legislativas e com os tribunais de justiça. “El Rey pasaba a ser um órgano constituído, establecido por la Constitución; las Cortes Constituyentes exaltaban el caráter primário de

su soberania el espirito de los constituyentes”. 599

As Cortes representavam a vontade na nação espanhola. Esse, inclusive, foi um discurso muito especulado pelos deputados da Constituinte de 23, anteriormente assinalado, em que se discutia nas entrelinhas mais a legitimidade do que a democracia institucionalizada.

Ponto emblemático na Constituição de Cadiz, que também refletiu no Brasil, foi a unidade religiosa, ou seja, o Estado adotar uma religião oficial, impedindo o livre culto externo das demais religiões. A repercussão desse dispositivo, na Carta Espanhola,

599

AGESTA, Luis Sanchez. Op. Cit.p. 81. Não é demasiado relembrar que esse entendimento foi objeto de franca discórdia entre os constituintes de 23, porquanto neste tocante paira a divergência sobre legitimidade dos poderes conferidos à Assembleia e a D. Pedro I.

significava, na opinião de alguns, ressuscitar o tribunal de Inquisição, instituto este antagônico com o individualismo preconizado em toda Constituição, levantando posteriores questionamentos sobre a tolerância religiosa e a liberdade de pensamento. 600

600

Para maiores apontamentos sobre o tema, vide AGESTA, Luis Sanchez. Historia del Constitucionalismo