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1.1. As faces do liberalismo europeu e sua influência no Brasil

1.1.1 Um capítulo da história Portuguesa

Em virtude da situação de subordinação brasileira à Portugal, parte da nossa história caminha paralelamente com a da Metrópole, senão vivendo momentos coincidentes pela direta interferência de uma sobre a outra. Assim, para falarmos do movimento constitucionalista no Brasil, precisamos trazer certo recorte da historia portuguesa.

O século XVIII foi um período de pleno movimento. A guerra contra a monarquia absolutista tomou conta do cenário europeu, atingindo esta crise a Península Ibérica. As frentes libertárias do liberalismo seriam assimiladas tardiamente em Portugal 172, encontrando na Revolução do Porto de 1820 sua maior reverberação.

A nação lusitana margeava a gabaritada produção intelectual europeia muito em virtude das profundas vivências da Inquisição, que fiscalizavam toda produção e controlavam a pobre educação dos jesuítas. Vicente Barretto173 relata que a reação antiescolástica portuguesa na busca do Iluminismo ocorrera apenas nos séculos XVII e XVIII, representativa de um pensamento elitista implementado pelas instituições absolutistas.174 As argumentações

171

A representatividade postulada por Sieýes era restrita, dado seu receio de conferir igualdade eleitoral à massa popular, fazendo a distinção entre cidadania ativa e passiva; teoria esta que também foi explorada na Constituinte brasileira com relação aos escravos e índios selvagens.

172

Hélio Jaguaribe chega a reporta-se à Península Ibérica como situações de democracias de desenvolvimento tardio. JAGUARIBE, Hélio. O experimento Democrático na História Ocidental. In: Brasil, sociedade democrática. Org. Afonso Arinos de Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.p. 82

173

BARRETTO, Vicente, Ideologia e Política no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.p, 83.

174Afonso Arinos esposa o mesmo entendimento de Vicente Barreto, considerando que “o estreito absolutismo

monárquico e a forte influência da Igreja sobre a sociedade e sobre o Estado” devem ter sido os maiores responsáveis pelo cerceamento de divulgação do pensamento político iluminista. ARINOS, Afonso. O

liberais seduziam todas as classes, indistintamente, e, ao mesmo tempo em que corporificavam intensas Revoluções como a ocorrida na França de 1789, também serviram ao

Reformismo, tal qual na Península Ibérica, “onde a reestruturação do poder a partir dos impactos das novas ideias engendrou uma forma de governo consagrada como ‘absolutismo ilustrado’, ou ‘despotismo esclarecido’”. 175

Vale dizer, desta forma, que o pensamento ilustrado português foi desenvolvido pela monarquia, o que justifica a sua manutenção por tanto tempo, contrariando o resto da Europa que objetivava o fim do ancien régime. 176“O conhecimento seria um instrumento de

afirmação nacional” 177

e a monarquia conseguiu desenvolver esse pensamento na mentalidade da elite portuguesa consolidada sob seus alicerces.

A interessante figura do absolutismo ilustrado, que bem representa a situação portuguesa e o imperialismo brasileiro, mescla o poder do monarca à sujeição das leis e a preocupação com o progresso e o bem comum. Mayos considera “despotismo ilustrado” aquele capaz de conjugar grande poder conferido aos reis e aos Estados, tanto quanto estes são obrigados a desenvolver a Administração Pública, dotando-a de eficácia e aptidão à promoção do progresso econômico, cultural e educacional do país, garantindo a expressão popular. 178Apesar de o autor expressamente enquadrar este conceito ao período vivido pela França setecentista das décadas de 20 à 50, as características e decisões são as mesmas encontradas e desenvolvidas por Pombal, em Portugal e por D. Pedro I e Bonifácio, no Brasil.

A reestruturação político-social portuguesa ficou sob a incumbência de Sebastião José de Carvalho e Melo - Marquês de Pombal - haja vista filiar-se aos liberais revolucionários, modificando o conteúdo dogmático das bases educacionais. Apesar de não ser considerado o primeiro gênio da ilustração lusitana - o caráter reformista pode ser encontrado em Alexandre

175

SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na

crise do antigo regime português (17509 – 1822). São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2006.p.33. 176

No mesmo sentido, destacamos apontamento de Paulo Ferreira da Cunha relatando que a Revolução de 1820 era liberal, portanto antagônica ao absolutismo, conforme preconizado pelos franceses, mas não levantaram a bandeira contra a monarquia tradicional portuguesa de D. João VI, eis que esta cuidava de proteger as liberdades individuais do povo lusitano. O movimento liberal não pretendia a restauração das cortes tradicionais, formada pelo clero, nobreza e povo, mas sim uma monarquia constitucional estabelecendo uma assembleia representativa cuja convocação obedecia ao modelo prescrito pela Constituição de Cádiz. CUNHA, Paulo Ferreira; SILVA, Joana Aguiar; SOARES, Antônio Lemos. História do Direito Romano à Constituição Europeia. Coimbra: Almedina, 2005.p 586-587.

177

BARRETTO, Vicente Op.cit..p, 86.

178

de Gusmão, Diego de Mendonça Corte Real, Padre Carbone e Cardeal da Mota 179 - seu destaque se deve porque o efetivo rompimento com a estagnação deu início com sua forma de estruturação do Estado.

Passou vários anos em contato com as cortes europeias, no fenômeno de

“estrangeiramento” 180

, constatando o atraso cultural, político e econômico português com relação às potências do restante da Europa. A reforma estatal implicava em possuir na sua estrutura pessoas com conhecimento do tecnicismo desejado, ao mesmo tempo em que a ampliação econômica significava fortalecimento da economia nacional, gradativa independência dos ingleses e rompimento com os dogmas clericais que impediam imiscuírem cristãos novos - ex- judeus, detentores das riquezas – e cristãos velhos. A nobreza permaneceria dentro do novo contexto, dada sua relevância política na manutenção da monarquia, regime este que permaneceria intacto. Podemos concluir, assim, que promoveu

em Portugal uma “modernização conservadora, atualizações sem tocar no sistema propriamente dito de força das classes dominantes”. 181

Consta que foi no seu governo que o despotismo centralizador atingiu seu apogeu, dando os contornos revolucionários do século XIX. Foi ele o responsável pela modernização estatal portuguesa. “Todas as reformas do Marquês tinham como objetivo último o fortalecimento do Estado, visando reforçar o absolutismo, e assim ele agiu, mesmo em

detrimento da burguesia, de uma parte da nobreza e do clero”. 182

Desenvolveu políticas públicas que fortalecessem a centralização administrativa e o poder real e recuperassem a prejudicada economia portuguesa, ainda dependente da Inglaterra. Investiu, também, na formação educacional, abrindo várias cadeiras de Direito, com o objetivo de facilitar a interpretação e, consequentemente, a execução das leis.

Olvidou, todavia, que trazendo luz às trevas da ignorância, também disseminaria o liberalismo que preconizava o desenvolvimento da nação livre das peias do autoritarismo,

179

SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op.cit.p. 42.

180

Ibid. p. 44

181

CHACON, Vamireh. A grande Ibéria: convergências e divergências de uma tendência. São Paulo: Unesp,2005.p.131.

182

abrindo espaço, assim, para a profícua Revolução de 1820. O caráter dicotômico por ele desenvolvido tentou conciliar a ideia iluminista concomitantemente ao recrudescimento das

rédeas centralizadoras do absolutismo. “Não via que dava luzes aos Povos para conhecer por

ellas que o Poder soberano era unicamente estabelecido para bem comum da Nação e não do

Príncipe”. 183

Veremos, mais à frente, que as reformas supra descritas também estiveram presentes nas considerações de Bonifácio, haja vista que a ex - colônia portuguesa, no início do século XIX, estava em condição análoga a encontrada por Pombal um século antes, ambos em busca

da “hegemonia política estatal”. 184

É possível identificar o pensamento pombalino na reforma bonifaciana, eis que o brasileiro também delineou uma máquina administrativa composta por pessoas doutas, planejava a expansão da economia nacional – o que significava absolutamente o fim do monopólio português – e voltou toda sua força contra o poder isolado dos jesuítas.

Pombal reformou a Universidade de Coimbra nos moldes ilustrados, atingindo, diretamente, os brasileiros que ali estudaram, dentre eles, José Bonifácio e seus irmãos. As medidas do Marquês no tocante à educação concretizaram-se apenas após a expulsão dos jesuítas, responsáveis que eram pela educação dos portugueses e símbolo do clero absolutista. Bonifácio, por sua vez, desenvolveu suas teorias políticas nesse contexto de academicismo liberal distorcido, que tentou amalgamar autoritarismo com liberdade, ao mesmo tempo em que se desenvolvia a união indissolúvel Brasil – Portugal. A expansão das bases educacionais brasileira, sugerindo a criação de universidades e a violência na defesa dos interesses do Estado também foram características pombalinas absorvidas pelo Santista.

Conta Alberto Sousa 185 que desde a segunda metade do século XIV Portugal se resumia a sua Capital, haja vista suas demais províncias terem se tornado improdutivas, sobrevivendo Lisboa à custa dos tesouros brasileiros e das Índias, situação essa que agravou no fim do século XVIII. O Estado estava falido e depende das duas colônias, o que desencadeou revoltas internas e despertou o interesse renovador nos brasileiros que ali se encontravam.

183

DIAS, Luis Fernando Carvalho. Algumas cartas do Doutor Antônio Ribeiro dos Santos” In: Separata da Revista Portuguesa de História. Tomo XIV. Coimbra. 1974.p. 447.

184

SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op.cit..p.85.

185

A briga na Europa travada pela expansão do império Napoleônico acabou por auxiliar no processo de Independência do Brasil. Dividido entre apoiar a Inglaterra ou a França, D. João VI decidiu-se pela primeira, transferindo, em 1808, a sede da monarquia para a sua colônia americana, com a ajuda da frota naval inglesa.

A instalação da sede do governo português no Brasil aboliu com as “velhas engrenagens da administração colonial”. 186

D. João precisava de expressivo aparato político e administrativo, o que conferiu novos ares ao Brasil, dotando-lhe de grande autonomia. Faz-se interessante registrar que esse mesmo contingente de portugueses que permaneceu na Administração Pública brasileira influenciou D. Pedro, anos depois, na manutenção dos lisboeses no governo, após a Independência187. Este esvaziamento de Portugal dos seus principais setores de produção acarretou severa crise econômica, porquanto o país já tinha se habitado, ao longo dos séculos de exploração, a desenvolver sua economia em cima dessa situação parasitária.

A aversão a este contexto da relação da Coroa Portuguesa com o Brasil desencadeou a Revolução do Porto, em 1820, francamente contrária ao absolutismo de D. João VI e à crise que ele permitiu instaurasse no Reino Português, repercutindo expressivamente no Brasil 188, destacando a adesão incondicional e maciça dos portugueses, liberais ou não.189 Tão coincidentes são os fragmentos desse episódio, que Sérgio Buarque de Holanda considera a

186

JÚNIOR, Caio Prado. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.p.143.

187

Segundo informação de Anselmo Macieira, D. João trouxe consigo cerca de 15.000 portugueses, retornando à pátria natal em 1821 apenas 3.000. MACIEIRA, Anselmo. Constituição de 1824 – um fato na História do

Brasil. In: Revista de Informação Legislativa: abril-junho, 1976. p.145-167. 188

Antônio Lemos Soares considera injusta a forma com que D. João VI foi muitas vezes retratado pela história

quando do seu governo no Brasil. Entende que o monarca “legou à posteridade um vasto complexo de medidas garantísticas que integramos no domínio das liberdades ibéricas tradicionais.”, embora respeitando a precária

sociedade brasileira da época que o impedia de proporcionar igualdade jurídica a toda a sociedade. Destacou o tratamento protetivo conferido aos indígenas, preocupado com a educação e bem estar dos mesmos, evitando tratamento discriminatório. Preocupou-se também com os escravos negros, atenuando, mediante Alvará de 20 de

setembro de 1808, “as penas a aplicar aos escravos encontrados com objectos destinados à mineração. Ou, no

mesmo sentido da proteção da população escrava, o diploma de 26 de janeiro de 1818 – Alvará com força de lei

– em que se preveem penas de vulto para o tráfico ilegal de escravos, e, do mesmo ano, com data de 18 de agosto, o Decreto que cria uma comissão sobre o comércio ilícito de escravos com sede no Rio de Janeiro”.

Ainda no tocante a ações voltadas à dignidade humana, apresenta por condutas liberais preconizadas por D. João VI o perdão concedido a presos e desertores e promulgação de medidas conferindo melhores condições aos reclusos. CUNHA, Paulo Ferreira; SILVA, Joana Aguiar; SOARES, Antônio Lemos. História do Direito

Romano à Constituição Europeia. Coimbra: Almedina, 2005.p 589-591. 189

Comentando sobre o inconformismo dos portugueses com o distanciamento da Coroa, ver CUNHA, Paulo Ferreira; SILVA, Joana Aguiar; SOARES, Antônio Lemos. Op.cit..p 571-572.

independência brasileira enquanto “simples episódio de uma guerra civil de portugueses”, 190 referindo-se à Revolução Liberal de 1820.

Justifica o historiador que o movimento antiabsolutista também era, de certo modo,

“antibrasileiro” 191

, eis que se opunha frontalmente a posição de destaque ocupada pelo Brasil. Continua sua argumentação afirmando que esta divergência perpetuaria no momento da junção dos dois Reinos, segundo veremos adiante, sob o guante de uma única Constituição

tendente a criar um modelo unificado, “compacto e homogêneo”, desrespeitando as

inevitáveis discordâncias e desigualdades entre as nações.

Veremos, mais tarde, que antevendo essa conduta dos portugueses, Bonifácio elaborou um documento a ser entregue pelos parlamentares brasileiros, demonstrando a necessidade de observar e aceitar as diferenças entre as nações, na medida do possível, colocando-as em igualdade de condições e tratamento.

Feitas essas considerações, analisaremos, doravante, a impactação do liberalismo no Brasil e como ele foi incorporado à cultura política brasileira, reverberando na Constituição de 1824.