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Apontamentos para entender a sociedade de massa: premissas

CAPÍTULO 2. MODIFICAÇÃO DO ACONTECIMENTO COMO SEMIOSE

2.1 Apontamentos para entender a sociedade de massa: premissas

Vamos começar ilustrando em linhas gerais o esquema de sociedade e de

comunicação que pensamos poder sustentar uma tal “modificação do acontecimento” como

semiose. Partimos de uma crítica ao modelo de comunicação “Emissor → Mensagem →

Receptor” em que a mensagem é enviada unidirecionalmente ao receptor – e aceita, não questionada, etc.

Essa crítica aparece na opinião de Umberto Eco quando ele se opõe ao assombro e à opinião radical em torno da cultura de massa e dos meios de comunicação que rondaram

o cenário teórico dos anos 60–70. No livro “Apocalípticos e integrados”, por exemplo, Eco

situa que o cenário da cultura de massa não é tão dicotômico – “a cultura de massa é boa

ou ruim?” – quanto parece. A partir desse cenário, “Eco ‘desconstrói’ os modelos unidirecionais da comunicação aplicados a partir das ciências sociais e a sociologia da comunicação ‘oficial’ para ressemantizar o valor das leituras não previstas pelos códigos do emissor” (MANGIERI, 2006, p. 19). Esse ponto de vista é notável em um autor que faz

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questão de incluir uma lógica dialética por cima ou junto da lógica estrutural da cultura (MANGIEIRI, 2006, p.18). “A cultura intervém nos textos e nas mensagens: efetua leituras e usos ‘aberrantes’, muda os códigos do emissor, desloca e transforma as estruturas. A cultura reorganiza continuamente o campo semântico global” (idem).

Essa episteme é inclusive visível, isto é, materializa-se no fio condutor básico de

várias obras de ficção de Eco. Sua opinião é a de que “os textos artísticos produzem ou

induzem a formular novas visões de mundo: provocam, seduzem, convidam o leitor, o espectador, a exercer um trabalho interpretativo complexo que reordena sua visão sobre as coisas” (MANGIERI, 2006, p.48). Nesse âmbito, a participação do receptor, em algum

nível, é tanto pressuposta quanto necessária. “O texto como artifício requer

inevitavelmente a participação do leitor para construir o sentido. As relações autor-texto- leitor são consideradas como espaços de jogos interpretativos sobre a base de uma ou mais fábulas (ou história fundamental) que devem ser finalmente reconhecidas atravessando todas as tramas ou intrigas tecidas pelo narrador” (MANGIERI, 2006, p.49).

Para além do âmbito literário ou fictício, Eco se opõe à divisão da cultura entre os três níveis high, middle e low (que supostamente representam três graus de complexidade ou valor culturais) porque confia em uma liberdade dos sujeitos no consumo e na fruição de bens culturais:

(...) As histórias em quadrinhos são um produto cultural fruído e julgado por um consumidor, que, naquela ocasião, está especificando sua demanda naquela direção, mas leva para aquela experiência de fruição a sua experiência inteira de homem educado também na fruição de outros níveis (ECO, 2001, p. 59).

Isso leva a que Eco dê outra caracterização aos três níveis, não para hierarquizar a

cultura, mas para entender como os produtos e os valores aí presentes podem circular à medida que os receptores – leitores, espectadores – ativamente estão em um regime de apreciação que também faz parte da dinâmica da indústria cultural.

Os três níveis não coincidem, portanto, com três níveis de validade estética. Pode-se ter um produto high brow, que se recomende por suas qualidades de vanguarda, e reclame para ser fruído certo preparo cultural (ou uma propensão à sofisticação), e que, todavia, mesmo no âmbito das apreciações próprias daquele nível, venha a ser julgado “feio” (sem que, por isso, seja low brow). E pode haver produtos low brow, destinados a serem fruídos por um vastíssimo público, que apresentam características de originalidade estrutural tais e tamanha capacidade de superarem os limites impostos pelo circuito de produção e consumo em que estão inseridos, que nos permitam julgá-los como obras de arte dotadas de absoluta validade (ECO, 2001, p.56).

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Essa liberdade dos sujeitos frente às dinâmicas da cultura de massa permite pensar em reconfigurações ou mudanças nos dois polos do modelo “Emissor → Mensagem → Receptor”, bem como sustentar a crítica a modelos rígidos:

Uma suspeita desse gênero deve permanecer como pano de fundo para qualquer pesquisa sobre os mass media que tenda a enrijecer-se em conclusões definitórias. Dentro da situação antropológica “cultura de massa”, mediações e reviravoltas estão na ordem do dia, o polo da recepção pode configurar-se de maneira tal que mude a fisionomia do polo da emissão, e vice-versa. (ECO, 2001, p.125).

O sistema de Eco contempla um olhar sobre “o que poderíamos denominar um espaço aberto de novas possibilidades e combinação e articulação” (MANGIERI, 2006,

p.21). Isso nos permite entender as dinâmicas de “modificação do acontecimento” de que

vamos tratar mais à frente trabalhando no confronto entre visões epistêmicas diferentes sobre esse fenômeno.

Vamos assim explicitando o cenário que compõe nossas premissas. Ainda na esteira dessa crítica, encontramo-nos com a opinião de Braga (2006) que nesse sentido é semelhante ao que já foi exposto aqui: “partimos da hipótese de que a abrangência dos processos midiáticos, na sociedade, não se esgota nos subsistemas de produção e de recepção” (BRAGA, 2006, p.21).

Essa hipótese permite discordar da polarização “emissor – mensagem – receptor” bem como sugerir outros modelos para entender a comunicação midiática.

Discordamos da perspectiva de que só agora, com as redes informatizadas, verdadeiros processos bidirecionais ocorrem. Ao invés disso, desde as primeiras interações midiatizadas, a sociedade age e produz não só com os meios de comunicação, ao desenvolvê-los e atribuir-lhes objetivos e processos, mas sobre os seus produtos, redirecionando-os e atribuindo-lhes sentido social (BRAGA, 2006, p.22).

Um modelo comunicacional assim tão polarizado expõe, na verdade, uma incoerência com a própria ideia de cultura e o seu funcionamento: “Sem a interação social- midiática (sobre mídia e seus produtos), a circulação geral não se completa; teríamos, na verdade, uma incoerência de funcionamento cultural em uma sociedade na qual determinados processos se passariam sempre em uma única direção (o que é difícil de aceitar)” (BRAGA, 2006, p.33).

Nesse sentido, o modelo de midiatização pensado por Braga se constrói no pressuposto de que, para além dos meios tecnológicos, a comunicação (interação) entre sujeitos se dá também por outros processos que reconfiguram aqueles dos meios de massa: “(...) Importa que várias pessoas, tendo lido o mesmo livro ou apreciado um mesmo tipo de

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música e tendo alguma informação sobre tais materiais, ‘conversem’ sobre tais objetos e interajam com base nesse estímulo” (BRAGA, 2006, p.28).

Assim se evidencia que a comunicação não termina no receptor, mas continua em processos posteriores à recepção. “As proposições circulam, evidentemente trabalhadas, tensionadas, manipuladas, reinseridas nos contextos mais diversos” (idem). Essa dinâmica tem uma “necessidade lógica” dentro da relação que vamos pensando entre meios de comunicação e sociedade, uma vez que sem essa dinâmica “uma série de ações sociais perfeitamente discerníveis não encontra localização na processualidade da ‘sociedade midiatizada’” (BRAGA, 2006, p.33), como, por exemplo, a própria modificação do acontecimento.

Para além disso, outros processos são sintomáticos de uma “sociedade que enfrenta sua mídia”: crítica, retorno (feedback), militância social, controles da mídia, sistematização de informações, circulação comercial, processos educacionais e formativos, processos de aprendizagem em público (ver: BRAGA, 2006, p.38). Essas diversas manifestações demonstram “que a sociedade não apenas sofre os aportes midiáticos, nem apenas resiste pontualmente a estes. Muito diversamente, se organiza como sociedade, para retrabalhar o que circula, ou melhor: para fazer circular, de modo necessariamente trabalhado, o que as mídias veiculam” (BRAGA, 2006, p.39). Nessa direção poderemos entender a modificação do acontecimento na lógica de uma “organização social”.

Essa visão coloca o meio de comunicação em outro lugar. Sujeito ele também às dinâmicas sociais de “ressemantização”, torna-se veículo de ideias que apontem também contra os meios: “os dispositivos socialmente gerados para organizar falas e reações sobre a mídia utilizam, com frequência, a própria mídia como veiculador” (BRAGA, 2006, p.40). Isso nos permite sair do cenário simplesmente “acusatório” que enxerga na mídia um terrível demônio; ao contrário, vamos percebendo que a interação social sobre a mídia é um “sistema de resposta socialmente desenvolvido dentro da mesma dinâmica histórica que move a sociedade em sua midiatização” (BRAGA, 2006, p.45): os meios estão inseridos em relações que lhes dão sentido, e é para aí que nossa discussão vai apontando.

Ainda:

Superamos já uma percepção (vigente pelo menos até os anos 1980) de que os usuários dos meios ditos “de massa” seriam homogêneos, passivos e, portanto, facilmente manipuláveis. Reconhece-se hoje uma possibilidade de resistência (baseada em mediações culturais extramidiáticas) do “receptor”. Mas, se o “receptor” resiste, isso não significa necessariamente que faça as melhores interpretações, os melhores usos (BRAGA, 2006, p.61).

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Não vamos aqui entrar no mérito do que seriam “os melhores usos” – isto levaria o debate para outros rumos que não os propostos por este trabalho. Vamos nos ater ao fato de que há uma “possibilidade de resistência” e que as leituras propostas pelos receptores estão impregnadas de outras mediações (“culturais extramidiáticas”).

Nesse mesmo eixo, Riesman (1961) enxerga uma expansão das possibilidades interacionais entre mídia e sociedade já nos processos de urbanização e em seus efeitos, como o crescimento da alfabetização. Esse fato

afeta não apenas o estilo e o conteúdo dos gêneros literários e jornalísticos, mas também sua recepção pela audiência. O incrementado fluxo quantitativo de conteúdo provoca enorme crescimento da capacidade seletiva de cada criança, relativamente à época da direção-traditiva. Como resultado, mais e mais leitores começam a ver mensagens que não são dirigidas a eles. E eles as leem em situações não mais controladas e estruturadas pelo narrador – ou por sua própria participação. Este aumento no número, variedade e “disseminação” das mensagens, juntamente com a despersonalização geral das publicações, que induz estes efeitos específicos, torna-se um dos fatores poderosos da mudança social (RIESMAN, 1961, p.155).

Ele se aproxima de Umberto Eco na visão de que os sentidos trabalhados pela recepção podem escapar daqueles pretendidos pelos códigos do emissor. Além disso, alerta para o fato de que às vezes esperamos e antecipamos tanto do receptor que caímos no obstáculo epistemológico de não perceber os deslizes inerentes à recepção:

Por exemplo, estamos propensos a não ver a audiência involuntária, porque é sempre mais fácil supor que certo meio foi deliberadamente visado na audiência que de fato conseguiu atingir. Todavia, não há prova de que os meios de comunicação jamais tenham sido tão precisos em seu alvo. A própria impessoalidade da situação na qual a publicação é absorvida serve para aumentar as probabilidades da sub-recepção ou super-recepção (idem).

Expondo assim a abertura e a indeterminação no processo de recepção – no sentido

de que a mensagem não se esgota em um caminho automático do emissor ao receptor –,

Riesman questiona qualquer modelo totalizante, tornando “razoável supor que o impresso contém mais ruído em seus canais do que a transmissão oral que se faz face a face” (RIESMAN, 1961, p.156).

Ele observa também as situações de recepção nos hábitos de leitura infantis. Os contextos de leitura e audição de histórias para crianças expõem uma interatividade que contradiz o sujeito isolado na massa. “Temos hoje o grupo de crianças deitadas no chão, lendo e trocando histórias em quadrinhos e preferências entre estas, ou ouvindo o Zorro” (RIESMAN, 1961, p.165). Nesse ambiente coletivo, a apreciação em grupos permite “amortecer” o efeito das mensagens, no sentido de estabelecer “uma certa margem em

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relação aos meios de comunicação” (RIESMAN, 1961, p.173); esses grupos criam seus próprios padrões de críticas da mídia e de seus produtos.

Nesse eixo, “a pergunta com respeito, por exemplo, à comunicação televisiva e seus efeitos e significações não deve ser tanto ‘o que produz a televisão em nossas pobres e inocentes crianças?’, mas sim ‘o que fazem as crianças com a televisão?’” (MANGIERI, 2006, p.19). Na fruição, a criança navega com certa liberdade e escolhe suas preferências,

adapta-se: “e embora os heróis (...) não tenham idade, havendo descoberto o segredo da

eterna juventude, a criança em crescimento pode mudar de um herói para outro que melhor se ajuste às suas próprias necessidades e aspirações cambiantes” (RIESMAN, 1961, p. 169).

Caminhamos em um entendimento contrário a um “determinismo mediático” possível apenas no cenário que não suponha uma separação entre meios e sociedade (RUSSI; NETO, 2010, pp. 81-82). Ainda, essa não-separação deve ser posta igualmente nos termos de uma ambiência levada por uma massa ativa, que seja influenciada e absorva muito do que é transmitido, mas que também consiga reagir, responder e fazer que os efeitos circulem na cultura (BRAGA apud RUSSI; NETO, 2010, p.81).

Essas são algumas condições pelas quais pensamos a sociedade midiatizada. Elas mostram como se pode pensar a “modificação do acontecimento” relativamente ao funcionamento mesmo dessa sociedade, e assim confrontam as ideias descritas no primeiro

capítulo, como os assustadores “muros de irrealidade” que se interpõem entre a sociedade e

o mundo (“realidade insípida”), de que fala Boorstin. Esses confrontos, porém, vão ficando mais claros ao longo do capítulo.

Podemos, a partir disso, prosseguir no entendimento da modificação do acontecimento como semiose.