• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1. ATUALIDADE MEDIÁTICA E “MODIFICAÇÃO” NO ROMBO

1.3 Evento monstro em Pierre Nora

No texto Evento monstro23, Pierre Nora faz uma caracterização do acontecimento

nas sociedades complexas que recorre a uma abordagem já demonstrada aqui: sua grandeza fenomenal e arrebatadora devido à ação dos meios de comunicação de massa. Esse estudo decorre em três partes: 1) a produção do acontecimento, 2) as metamorfoses do acontecimento e 3) o paradoxo do acontecimento. Vamos passar pelas duas primeiras partes para extrair os pontos que consideramos mais interessantes (abandonamos a terceira, por trazer uma discussão específica sobre a relação dos historiadores com o acontecimento que não nos interessa).

22 We cannot say that we are being fooled. It is not entirely inaccurate to say that we are being ‘informed’.

This world of ambiguity is created by those who believe they are instructing us, by our best public servants, and with our own collaboration. Our problem is the harder to solve because it is created by people working honestly and industriously at respectable jobs. It is not created by demagogues or crooks, by conspiracy or evil purpose. The efficient mass production of pseudo-events – in all kinds of packages, in black-and-white, in Technicolor, in words, and in a thousand other forms – is the work of the whole machinery of our society. It is the daily product of men of good will.

45

Na primeira parte, Nora evoca a produção do acontecimento (ou evento) pondo em destaque a midiatização: “imprensa, rádio, imagens, não agem apenas como meios dos quais os eventos seriam relativamente independentes, mas como a condição mesma de sua existência” (NORA, 1972, p. 162). Isso nos esclarece a respeito do significado de acontecimento não como algo que simplesmente acontece, mas como algo que de certa forma atrai atenção ou repercute na experiência: “o fato de que eles [eventos] aconteceram não os torna senão históricos. Para que haja acontecimento, é necessário que ele seja conhecido” (idem). Vamos observando aí uma distinção importante (de um lado, o fato “histórico”, que acontece; de outro, aquele que não apenas ocorre como também se transforma pela ação dos meios na sociedade) que nos permitirá minar as primeiras dúvidas a respeito do acontecimento e sua “modificação”.

O acontecimento constitui-se como tal também por uma ação dirigida ao futuro, isto é, caracteriza-se pelos seus efeitos, “pela quantidade de falas que ocasiona” (1972, p. 163). Não é, portanto, um acontecimento que já nasce pronto; mesmo quando planejado para tornar-se acontecimento (retomamos o exemplo do hotel, dado por Boorstin), aposta nas reações futuras que, elas sim, o constituem como tal.

Entramos assim no segundo aspecto detalhado por Nora, o da metamorfose do acontecimento. Neste ponto, ele esclarece que a tecnologia dos meios é uma condição necessária para esse fenômeno, mas que existe uma função importante desempenhada pela interação entre massas e mídias em dito processo:

A velocidade de retransmissão não é sem dúvida a causa suficiente da transformação do acontecimento, mas certamente sua causa necessária. (...) Abolindo os atrasos, desenvolvendo a ação incerta sob nossos olhos, a transmissão ao vivo e direta consegue retirar o acontecimento de sua condição história para projetá-lo no vivido das massas (NORA, 1972, p. 16624)

Para Nora, o interessante deste acontecimento para a história contemporânea é que

ele nos faz testemunhá-la como se “estivéssemos lá [na presença do fato ocorrido]” (idem).

Isso porque “o próprio do acontecimento moderno é desenrolar-se sobre um palco imediatamente público, de se ver fazendo-se e este voyeurismo dá à atualidade sua

24 La vitesse de retransmission n'est sans doute pas la cause suffisante de la transformation de

l'événement, mais à coup sûr la cause nécessaire. On en a vu la démonstration lors du récent match Cassius Clay-Frazier qui fut un événement dans tous les pays où la télévision le retransmit en direct, mais pas en France, qui ne connut que le différé. En abolissant les délais, en déroulant l'action incertaine sous nos yeux, en miniaturisant le vécu, le direct achève d'arracher à l'événement son caractère historique pour le projeter dans le vécu des masses.

46

especificidade, com relação à história e seu perfume já histórico” (ibidem), daí “esta impressão de jogo mais verdadeiro que a realidade, de divertimento dramático, de festa que

a própria sociedade se dá através do grande evento” (ibidem). Interessante notar também o

papel que os meios têm de projetar o acontecimento no “vivido das massas” – este ponto nos faz lembrar o aspecto de experiência que percorre toda a constituição da “atualidade” e que também embasa nossa abordagem sobre a linguagem e a realidade.

Desta rápida passagem sobre o “evento monstro” em Pierre Nora podemos resgatar os pontos que mais nos interessam: a abordagem aqui empreendida pelo entendimento de “acontecimento” não se foca no fato acontecido, mas na proporção maior que ele toma a partir do momento que, mediado pela tecnologia de comunicações, toma contato e é vivido pelas massas. Isso significa que ele pode ser intensamente comentado e acompanhado por nós, e é justamente nessa dinâmica que se torna de fato um acontecimento, ou, na nomenclatura usada por Haacke, uma atualidade.

No entanto, isso pode dar a entender que “os meios de massa têm a partir de agora o monopólio da história. Nas nossas sociedades contemporâneas, é por eles e apenas por eles que o acontecimento nos atinge” (NORA, 1972, p. 162). De fato, se os meios de comunicação são responsáveis pela constituição do acontecimento como vivência coletiva, não parece haver outro meio de esse processo vir à tona. No entanto, parece-nos perigoso afirmar que “os meios têm o monopólio da história”. Veremos nas partes seguintes, no apoio dos autores que pretendemos consultar, que, como já foi dito, além do aspecto individualizante, nossa abordagem procura superar também qualquer característica de manipulação ou monopólio no entendimento da atualidade ou do acontecimento midiático. Nosso estudo a respeito da relação entre representação e realidade no seio da semiose nos permite entender a ação dos meios de comunicação como uma ação falível, em que não pode haver controle absoluto do acontecimento e sua consequente interpretação; apesar de seu grande poder, eles não podem ter um controle absoluto da história porque sua ação

representativa é incapaz de captar tudo o que acontece no mundo – existem fatos que se

tornam acontecimentos e outros não, e por isso a importância de se demarcar o que se entende por esse conceito.

Ao que nos parece, Nora coloca – equivocadamente – os meios de comunicação em

um lugar muito privilegiado no qual fornecem às massas as informações necessárias e suficientes para a constituição de toda a história que a sociedade vive.

47

No sentido de uma finalização para este capítulo, vamos fazer uma retomada conceitual das principais ideias apresentadas aqui. Isso nos permitirá tanto reter o essencial para a nossa discussão (os pontos norteadores e aqueles que serão confrontados) quanto verificar em que direção os três autores consultados vão se alinhando na proposta de Martino para o entendimento da atualidade mediática.