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APORTES METODOLÓGICOS – A ABORDAGEM QUALITATIVA E

Foto 6 – Crianças participando de atividades socioculturais

2 A CONSTRUÇÃO DE UMA INVESTIGAÇÃO: TRILHANDO O PERCURSO

2.1 APORTES METODOLÓGICOS – A ABORDAGEM QUALITATIVA E

A abordagem histórico-cultural do desenvolvimento humano elaborada por Vygotsky (2007) concebe o sujeito como sendo constituído não somente a partir de fenômenos internos ou como produto de um reflexo passivo do meio, mas como resultante de relações sociais mediadas pela linguagem.

Como o nosso objeto de estudo envolve processos humanos – em especial modos como a criança participa em seus contextos – assumimos como referenciais para nossos procedimentos investigativos os princípios propostos por L. S. Vygotsky, no que toca à orientação de pesquisas sobre processos humanos, bem como algumas das proposições de M. Bakhtin para as pesquisas no âmbito das Ciências Humanas.

Ambos os estudiosos, dentre outros princípios, enfatizam a relevância das interações sociais e do signo (da linguagem) como instrumento, que se concebe, simultaneamente, mediador de interação social e de constituição do psiquismo, sendo um dos fatores fundamentais de desenvolvimento humano.

A compreensão da linguagem como constitutiva do sujeito é afirmada por Vygotsky (2007) ao propor que todas as funções psíquicas tipicamente humanas se desenvolvem via processo de internalização – compreendido como a transformação de processos intermentais – presentes no meio social, como modos de funcionamento social – em processos intramentais – que passam a funcionar como modo próprio e singular de cada indivíduo.

Em outras palavras, o autor descreve a internalização como a reconstrução interna-individual de uma operação externa-social, ou seja, o que é compartilhado nas relações sociais é logo transformado em processos internos de cada um. Para Vygotsky, essa operação se faz com base em signos, o que implica dizer que é pela linguagem, por uma atividade de significação, de transformação em signos do que é vivenciado pelos sujeitos, que se desenvolve o psiquismo singular de cada sujeito humano. Desse modo, o autor afirma que o desenvolvimento mental é também social e histórico, dado que se processa em relação com os contextos de vida e a história de cada, estando, portanto, em contínuo processo de transformação.

Numa perspectiva semelhante, M. Bakhtin (2015) também afirma a centralidade da linguagem, dos signos, das palavras, na constituição da atividade mental, da consciência humana. A linguagem é, segundo o autor, não somente a forma de expressão da atividade mental, mas a sua própria substância. Assim, os signos são a matéria da atividade psíquica e seu instrumento de expressão. A partir desses pressupostos, os autores propõem orientações para as pesquisas que se voltam para o estudo dos processos humanos, o que impõe certas características diferentes, determinadas pelo objeto – o homem, o ser humano – seja ele criança ou adulto.

2.1.1 Princípios da abordagem histórico-cultural propostos por L. S. Vygotsky

Diferentemente das concepções empiristas e idealistas para compreensão do psiquismo humano, Vygotsky propõe uma nova metodologia de investigação. Segundo Vygotsky (1991 apud FREITAS, 2009, p. 3), na compreensão da atividade psicológica, “o método é, simultaneamente, pré-requisito e produto, o instrumento e o resultado do estudo” e manifesta sempre a visão, o entendimento que se tem das questões a serem estudadas.

Para Vygotsky (2007), nessas investigações, é preciso considerar que o que se analisa não são objetos prontos, acabados e isolados. Por serem humanos, estão sempre em transformação, são históricos e, portanto, são processos, em permanente movimento de construção; não sendo isolados, mas mediados por contextos, condições que intervém para a sua constituição. Assim, ao estudar um aspecto do funcionamento humano, logo nos debruçamos sobre um processo mediado e em movimento, permeado por sua história e pela linguagem. Na contramão de outros estudiosos da época que veem na história os eventos do passado, para Vygotsky (2007), estudar algo historicamente baseia-se em entendê- lo no processo de mudança, o que significa descobrir sua natureza, sua essência.

Ainda conforme o referido teórico, outro princípio a ser observado nas pesquisas que tematizam processos humanos relaciona-se à necessidade de, mais que descrever os processos, buscar interpretar, explicar, dar sentido ao que é captado. Isso significa que os eventos observados não devem ser considerados por meio da descrição de sua aparência externa, mas analisados com vistas a apontar

sua origem. Ao dar destaque para esse aspecto, Freitas (2002) defende que, quanto mais se conserva a essência da qualidade de uma análise, mais é possível a aproximação dos fatores que determinam sua existência.

Foi a partir dessa compreensão contextualizada que, na análise realizada na pesquisa, não consideramos apenas o objeto de estudo à parte de outras situações, mas associado a todos os outros fatores que o envolviam. São exemplos desses fatores as motivações que deram origem ao estudo, o locus escolhido e seu contexto, os sujeitos, as concepções teóricas e metodológicas que iluminaram o processo de análise, bem como o contexto histórico no qual a pesquisa foi realizada, dentre outros aspectos.

A atenção à participação das crianças foi transversalizada, também, pelo olhar cuidadoso ao desenvolvimento do currículo, tanto através da ação, das atitudes e dos discursos das crianças, como também da professora A e da Coordenadora Pedagógica, fatores esses que foram fundamentais na construção dos dados.

Com base nesses princípios, os eventos de uma pesquisa não devem ser observados apenas a partir do que é aparente aos olhos imediatos do pesquisador. Um olhar mais cuidadoso deve existir na análise dos dados, de modo a se compreender o objeto na sua inteireza e em suas peculiaridades, o que implica tanto a descrição rigorosa dos eventos como sua interpretação. Por esse viés, o papel da linguagem – da produção de sentidos – é crucial.

As observações, as entrevistas, os registros em diário de campo, em áudio e em vídeo não foram, desse modo, compreendidas e analisadas, essencialmente, a partir da descrição da linguagem indireta do pesquisador sobre os acontecimentos, mas, sobretudo, através do detalhamento de como se deram os fatos diante dos processos que o envolveram, às dinâmicas que o propiciaram. Para isto foi dada atenção minuciosa às situações pontuais vivenciadas pelos sujeitos, e também ao conjunto das ações circunstanciadas no âmbito do locus investigado.

2.1.2 Proposições de M. Bakhtin para as pesquisas nas Ciências Humanas

Concebendo o sujeito como um ser constituído em sua relação com a cultura e mediado pela linguagem, compreendida como interação verbal-social, como atividade de produção de sentidos que tomam forma em textos, Bakhtin (2015)

propõe uma série de considerações relativas à pesquisa que se realiza nas Ciências Humanas, a começar pelo objeto de estudo, que não se define, como em outras ciências, como seres inertes, mas como um sujeito que fala, que tem voz.

Assim, considera que o objeto das pesquisas que se voltam para questões humanas, é o texto, pois o que se capta, se descreve e se interpreta existe como textos, como produção de sentidos – o que chama atenção para o papel e responsabilidade do pesquisador e da pesquisa como agente e ação não neutros, mas impregnados de ideologias, de valores e visões de mundo que impregnam o “objeto” e sua compreensão.

Além disso, destaca a relação entre o pesquisador e seu “objeto” – os sujeitos humanos em suas ações, relações e eventos como sendo de interação, de coprodução, mediada pela linguagem, situada historicamente e marcada pelas posições de ambos nas relações sociais mais amplas e imediatas das situações de pesquisa, pelos seus valores e concepções.

Considerar o campo da pesquisa qualitativa – que se preocupa com os significados que os sujeitos produzem implica, portanto, compreender que o contexto investigativo envolve sujeitos e seus enunciados marcados por suas histórias, estando os seus enunciados relacionados com outros sujeitos e suas relações sociais.

Segundo Alves (2011), a compreensão do enunciado, para Bakhtin, é um sustentáculo na concepção de linguagem como interação, pois esta não é só expressão de pensamento, de um sujeito individual, monológico isolado de outros sujeitos, nem tampouco é apenas um código, uma estrutura. Sendo a linguagem interativa, ninguém a utiliza sem uma relação dialógica, nem que o mediador seja o próprio sujeito, através de suas vozes internas. Ela também é mediada não somente pelo interlocutor imediato, mas também por vozes que o constituíram no passado e que o circundam no entorno do contexto ora vivido. Assim, “[...] eis porque a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados dos outros” (BAKHTIN, 2015, p. 294).

Nesse sentido, Dantas (2016, p. 48) enfatiza que, considerando a relação do pesquisador com o contexto da pesquisa, há uma “interação que envolve movimentos de idas e vindas; de aproximação e distanciamento, constituindo-se

como uma posição exotópica”. Compreendemos desse modo que, na situação de pesquisador, próximo ao objeto pesquisado,

[...] sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver [...]. Esse excedente de visão ocorre porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim. (BAKHTIN, 2015, p. 21).

Isso significa também que, estando próximos do outro, nos distanciamos para vê-lo, assim também ocorre conosco na condição de pesquisador(a), que precisamos afastar-nos de nós mesmos, das nossas concepções construídas a priori sobre o objeto, para reconstruir a forma como o percebemos.

Nesse contexto, a nossa relação como pesquisadora requereu o exercício da alteridade e responsividade, quando nos tornamos responsáveis por aquilo que vivenciamos e pelo discurso produzido pelos/para os outros, aspectos esses que resultam da nossa pesquisa, através da finalização do conhecimento elaborado. Conforme nos esclarece Bakhtin (2003 apud SOUZA; ALBUQUERQUE, 2012, p. 114),

[...] o lugar ocupado pelo pesquisador é marcado pela experiência singular, única e irrepetível do encontro do pesquisador e seu outro, na busca de produzir textos que revelem compreensões, ainda que provisórias, para dar sentido aos acontecimentos na vida.

Envolvida com os dizeres e aproximação com o objeto, necessitamos porém, preservar a dimensão da ética, materializada diante dos enunciados analisados e produzidos pelos sujeitos, contextualizados pelos discursos existentes e observados nas diversas situações da pesquisa, como ressalta Bakhtin (2010, apud OLIVEIRA, 2012) “a questão da ética não se coloca como normas morais, válidas por si mesmas, o que existe, é um sujeito ético com determinada consciência”.

Considerando essas proposições, também nos referenciamos, em nossos procedimentos metodológicos, na síntese construída por Freitas (2002) a partir da consideração das proposições de Vygotsky e Bakhtin para a pesquisa, relacionando- os com os princípios da abordagem qualitativa e de orientação sócio histórica. Para a autora, é preciso considerar a seguinte ponderação:

A fonte de dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento emerge [...]. As questões formuladas para a pesquisa não são estabelecidas a partir da operacionalização de variáveis, mas se orientam para a compreensão dos fenômenos em toda a sua complexidade e em seu acontecimento histórico [...]. A ênfase da atividade do pesquisador situa-se no processo de transformação e mudança em que se desenrolam os fenômenos humanos, procurando reconstruir a história de sua origem e de seu desenvolvimento. O pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa. O critério que se busca numa pesquisa não é a precisão do conhecimento, mas a profundidade da penetração [...]. (FREITAS, 2003, p. 27)

Tomando esse conjunto de orientações como aporte, construímos nosso percurso metodológico – os procedimentos adotados, os passos de construção e a análise de dados.