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A partir deste momento, concentraremos nossos esforços no estudo de imagens eloqüentes com grande referência ao sexual, que nos seduzem, ou melhor, buscam nos seduzir, através de encenações em que esta subjetividade está ausente. Trataremos agora de simulacros de sujeitos que nos convocam sem se revelar a si mesmos. Sujeitos fugidios, invisíveis, incompletos ou inexistentes, cuja imanência sensível pode ainda nos surpreender.

No apagar da co-presença sensível entre actantes sujeitos, ou da encenação desta co-presença (como é o que ocorre através da fotografia publicitária), o simulacro erótico é agora um simulacro “simulado”. Aos olhos de seus destinatários, estas encenações insopitavelmente sexuais ganham forma na ausência de corpos legítimos, através da capciosa construção de “corpos de papel” (falsos, parciais, ilegítimos...), que

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O título desta seção é tomado emprestado do livro homônimo de Mario Perniola, em que é descrita uma forma de sexualidade transversal, entre os sujeitos e os objetos.

deflagram nossa libido aquiescente em busca de pequenos prazeres visuais, como se desmascarassem embaraçosamente nossas perversões adormecidas. Estes corpos somente tornam-se operantes (desejantes) mediante a referência a uma subjetividade plausível (por conseguinte, verdadeira). Entretanto, o sentido de erotismo vinculado a tais simulacros experimenta um esmorecimento proporcional ao “comedimento” de sua iconicidade. Em outros termos, é como se o sexual perdesse a propriedade de nos falar diretamente, de “apresentar” aqueles sujeitos a nos comover, para nos interpelar através de “representações” de corpos privados de sua subjetividade, o que configuraria um regime de interação da ordem da junção. Tomemos o exemplo abaixo a partir deste ponto de vista.

Figura 15 – Subjetividades construídas

La Olla Caliente, Arena, 2003

Não podemos apontar na imagem acima nenhuma estratégia enunciativa que busque remeter a um simulacro de corpo pela iconicidade plástica no plano da expressão. Pelo contrário, a construção do sentido sexual, que no exemplo da figura 6 se dá através de uma metáfora visual de um seio e de um recurso metonímico de linguagem, na figura 15 passa por uma simulação de subjetividades de outra ordem. O anúncio é de um restaurante erótico espanhol chamado “La Olla Caliente”. Traz a imagem de um prato retangular, decorado com ramos verdes e sementes vermelhas, sobre o qual o encaixe engenhoso de dois camarões faz alusão a uma posição sexual. O

que está figurativizado, portanto, não é mais da ordem de um corpo estético que se dá a ver ao enunciatário, na certeza de sua desejabilidade. O simulacro apresentado é o da intersubjetividade real, narrativizada pelo comportamento libidinoso dos actantes. Em outros termos, o enunciado personifica duas subjetividades pela simulação da volição dos camarões, animando-os a manifestar um desejo que autoriza uma espécie de “metamorfose” semiótica. Eis ali, deitados sobre o prato, dois indivíduos aprazendo-se reciprocamente. Entretanto, tal é o desvio figurativo, a restringir qualquer vínculo com corpos reais, que o sentido erótico resultante somente torna-se operante numa dimensão cognitiva. É o ardil insólito do preparador que está sendo revelado pelo prato, uma apimentada e excitante iguaria. Tais encantos gustativos convocam diferentes ordens sensoriais, remetendo a uma desejabilidade sinestésica que já não é somente da ordem do paladar, mas do prazer sexual. A deleitosa refeição resultante é o objeto de valor oferecido pelo anúncio, um simples quitute que acaba por se tornar afrodisíaco no fazer competente do restaurante.

Diferentemente da imagem 14, a imagem 15 apresenta um arranjo actancial sexual dentro do enunciado. O destinatário é o espectador interessado do espetáculo, e seu papel actancial é similar ao apresentado no esquema 12a. Contudo, a erotização deste enunciado passa necessariamente por um fazer cognitivo do enunciatário, ciente tanto da provocação que lhe esta sendo feita quanto do distanciamento figurativo que atenua o impacto da conotação sexual.

Esta intersubjetividade enunciada é um simulacro rasteiro da presente, por exemplo, na imagem 1, que ilustrava a reciprocidade do desejo, operando de maneira contundente na presença figurada de dois corpos autênticos, cálidos, sensíveis. Como já foi colocado, na ausência de tais qualidades contagiantes, o sentido de erotismo e a construção de um simulacro de sexualidade passam a ocorrer mais proeminentemente numa dimensão cognitiva. O mesmo tipo de intersubjetividade pode ser observado na imagem 16, anúncio que personifica actantes sujeitos através de objetos subjetivados discursivamente. É na atribuição de uma qualidade intelectiva a estes actantes objetos (inanimados por natureza) que o simulacro de erotismo deste enunciado ganha sentido.

Figura 16 – “É você?”

Mont Blanc, Vogue, 2005

Como alguém que pressente a chegada de seu amante, antecipando o contato entre seus corpos, captando suas vibrações sensíveis, seu perfume e seu calor, o actante sujeito pressuposto no enunciado verbal “é você?” é projetado na corporeidade objetal do primeiro relógio. O amante anunciado, ainda a revelar sua presença total, é o simulacro que o segundo relógio materializa. A estratégia se assemelha à utilizada no anúncio da figura 15, em que já tínhamos ensejados dois sujeitos dotados de uma intelecção volitiva; aqui e lá, podemos tomar estas subjetividades construídas como simulacros de um actante sujeito que presentifica o enunciatário, envolvendo-o no universo iconográfico de cada texto, como se ocupassem contingentemente o lugar e o papel que lhe cabem. Nestas condições, os argumentos colocados parecem indicar que a subjetividade do enunciatário é que se encontra figurada em cada um destes simulacros de intersubjetividade.

A partir dos exemplos 14, 15 e 16, amostras bastante representativas dos simulacros de subjetividade engendrados no discurso publicitário, podemos acrescentar ao modelo da figura 12, as categorias ilustradas abaixo. Nestas, ao contrário do que

verificamos naquele modelo, os actantes sujeitos no enunciado são subjetividades construídas, simulacros de subjetividade que capitalizam esta não autenticidade. Estes simulacros de presença convocam o enunciatário a significar os enunciados na “ausência” dos corpos (processo semiótico que implica uma referência a um actante externo) e despertam aqueles efeitos de intersubjetividade identificados nas demais figuras.

Na presença de um actante sujeito simulando um estado “debreado”, vimos que o enunciatário pode ser convocado de várias formas: como parceiro pressuposto deste actante (figura 10a e 10b), como seu objeto de fantasia e parceiro imaginário (figura 11), etc. Contudo, na ausência deste actante sujeito em enunciados eróticos (17b e 17c), o que verificamos são simulacros de presença no lugar daqueles sujeitos autênticos anteriormente identificados. Estes efeitos de intersubjetividade podem acontecer, assim como indicado no modelo da figura 12, entre dois actantes enunciados ou entre um actante enunciado e o enunciatário (17c). Neste caso, temos um simulacro de sujeito provocante dando-se a perceber como corpo desejável a um outro actante, o enunciatário.

Desta feita, a partir da proposta de Landowski acerca dos regimes de visão enge ndrados pelos actantes, observamos no corpus analisado que os estados embreados e debreados dos actantes figurativizados dão forma a intersubjetividades que podem se resolver tanto no enunciado quanto na enunciação.

No percurso das análises até aqui desenvolvidas, observamos modos de presença plenamente resolvidos, precipitando subjetividades postas em relação tanto no enunciado quanto na enunciação. Progressivamente, estes sujeitos deram lugar a simulacros de presenças que, ainda construindo uma temática erótica, remetiam a subjetividades efetivas. Estes simulacros de presença operam segundo o mesmo estatuto apontado na oposição acima, sem, contudo, fazerem uso de actantes sujeitos autênticos. Pelo contrário. Os corpos de que se valem parecem eximir-se de uma responsabilidade intelectiva, como se buscassem justamente apresentarem-se como meros corpos desejantes, actantes “sujeitos” reprimidos, exauridos de suas falibilidades, de suas indulgências, subsumidos a seu “sex appeal” residual, este derradeiro atributo quintessencial que os torna desejáveis e que melindra uma intersubjetividade parca, mas irrefutável.

Na figura 18, observamos uma situação singular. Os objetos utilizados não têm vida, volição ou outra qualidade intelectiva destacada pelo enunciado. São dois artefatos inanimados colocados lado a lado, quase como resultado dos caprichos do acaso. O enunciado destaca os atributos pragmáticos do produto, referentes à lubrificação dos órgãos sexuais (temática de difícil abordagem, que poderia dar origem a um anúncio agressivo e vulgar), lançando mão de uma figuratividade absolutamente inócua. Entretanto, o sentido sexual deste enunciado se baseia na eminência da conexão entre o tubo e a embalagem, elementos que metaforizam, respectivamente, os órgãos sexuais masculino (o que penetra) e feminino (que é penetrado).

Figura 18 – Sexualidade metafórica

Johnson & Johnson, Playboy, 2003

Um princípio guestáltico argutamente utilizado dá sentido ao anúncio. Alinhados à mesma altura, um tubo de KY gel e uma emb alagem do produto buscam mostrar a capacidade lubrificante da fórmula anunciada pela alusão a uma penetração que se consumará apesar da incompatibilidade patente. É evidente que temos muito conteúdo para pouco continente, e que tal movimento magoaria a frágil embalagem cartonada. Contudo, ao sugerir a possibilidade da operação pela contigüidade dos objetos, o enunciado revela um atributo da ordem do extraordinário que o produto apresenta: a competência de viabilizar esta improvável penetração. Não se fala aqui de subjetividades que se constroem ou de corpos mimetizados realisticamente na dimensão figurativa do anúncio. A ênfase está numa penetração subentendida, que é arquitetada de maneira simples, quase ingênua. Ainda assim, indubitavelmente, o que está em jogo é uma valorização eufórica do prazer, do conforto no ato sexual e do gozo, aspectos mais abstratos de um erotismo que se revela na semântica fundamental do enunciado. Esta estratégia discursiva se assemelha à apresentada no anúncio dos relógios que se aproximam, pois constrói, de maneira análoga, um simulacro de intersubjetividade enunciada: dois sujeitos que se encontram e se relacionam no enunciado. Entretanto, nesta imagem do lubrificante, a analogia fica inteiramente por conta da dimensão visual. Sem um enunciado verbal que a corrobore, a imagem ganha sentido de forma similar a que observamos em 7b, 8a e 8b, ou seja, pela identificação de uma relação

semissimbólica de construção do masculino e do feminino implícita na forma dos objetos utilizados. A conotação sexual do anúncio se dá pela soma de um novo sentido (de um novo conteúdo) ao plano da expressão existente na imagem, através de uma relação de intersecção entre dois significantes que compartilham um traço comum: a penetração. Um significante, o tubo, está figurado. O outro, o falo, é referenciado. Esta construção metafórica do significado do texto é bastante recorrente na literatura, que explora amplamente a função poética do discurso. Para tanto, é necessário que haja uma relação entre o significado que se acrescenta e o significado já presente na dimensão denotativa do signo utilizado64.

Neste caso citados no parágrafo anterior, os objetos inanimados são alçados a condição de actantes sujeitos do enunciado. Articulam, desta forma, um simulacro de intersubjetividade enunciada. Neste tipo de arranjo, como já foi colocado, o enunciatário é convidado a experimentar tais posições actanciais por se reconhecer no simulacro. Seja o relógio, o parafuso ou o tubo de lubrificante, todos estes objetos presentificam o enunciatário e figuram- no como beneficiário de suas promessas mirabolantes. Nestes exemplos, as estratégias discursivas parecem passíveis de uma semiotização centrada na dimensão cognitiva dos textos. Contudo, nem todo anúncio recorre a estas mesmas estratégias para a edificação de um sentido erótico. Ao preencher uma ausência, estas imagens de objetos “animados” constroem um tipo de subjetividade, e em certos casos, a semiotização do resultado destas operações exige uma atenção aos aspectos sensíveis implicados. Isto porque, eventualmente, alguns anúncios formalizam estes sentidos de subjetividade por meio de metáforas da ordem do ilusório, que conduzem mais incisivamente à corporeidade, revestindo os objetos utilizados (ausências) no véu figurativo de uma presença real. No exemplo do anúncio anterior, o acréscimo metafórico de um sentido fálico ao tubo (ExCxC), não constrói uma imagem cuja iconicidade revela um significado sexual explícito. Pelo contrário, é justamente o distanciamento figurativo entre falo e tubo que atenua a “abrasividade” da imagem. Entretanto, lá está o sentido sexual, garantido pelo traço comum aos dois significantes. Neste ponto, deparamos com uma questão sistemática em nosso estudo: qual seria, em termos semióticos, a diferença entre o “sexual” o “erótico”? O anúncio do lubrificante pertence a um grupo de imagens que nos fala de uma sexualidade inicialmente “muda”,

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J. L. Fiorin. Metaphore et métonymie: deux processus de construction du discours. In:

J. M. Gressin (org.). Dictionnaire international de termes littéraires. Limoges, Association Internationale de Littérature Comparée/ Université de Limoges, http://www.ditl.info/arttest/art8000.php.

que se manifesta, torna-se operante, nos sensibiliza por meio de um processo cognitivo de identificação dos significantes. As imagens de um outro grupo, ainda na ausência da intersubjetividade, falam-nos desta mesma sexualidade ao recuperar sentidos de presença – indispensáveis ao mecanismo dialógico do erotismo – e instauram uma relação interactancial da ordem do desejo. A conotação sexual parece patente nos dois grupos. De uma forma ou de outra, fala-se de sexo, de êxtase, de conquistadores e conquistados, de aprazer e comprazer-se. Entretanto, o sentido erótico parece depender da instauração de um vínculo entre o sujeito do enunciado e o da enunciação, baseado num desejo recíproco. Neste sentido, a construção metafórica da figura 18, evidentemente sexual, não chega, contudo, a caracterizar aquilo que tomamos como um sentido erótico entre actantes.

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