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EXPLÍCITOS ENGODOS Desejo e erotismo na ausência do corpo

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EXPLÍCITOS ENGODOS

Desejo e erotismo na ausência do corpo

Murilo Scoz

Comunicação e Semiótica

PUC/SP

São Paulo

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EXPLÍCITOS ENGODOS

Desejo e erotismo na ausência do corpo

Murilo Scoz

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica sob a orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

Comunicação e Semiótica PUC/SP

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BANCA EXAMINADORA

________________________________________

________________________________________

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertaçãopor processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

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Aos meus pais.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus colegas de mestrado, em especial Cláudia Garcia, Maria Adélia, Cláudia Trevisan, Luciana Chen, Artur, Ecila, Ana Amélia, Martinho, Larissa, Edson, Rafael, Paula, Val, que tornaram este trabalho uma tarefa conjunta.

À Yvana Fechine e Sandra Fischer, por terem me apontado o caminho.

À minha orientadora Ana Cláudia, pela paixão contagiante pela semiótica.

À professora Roti Nielba, que despertou em mim a curiosidade.

Ao professor Eric, pela disponibilidade e paciência.

À professora Norma, pela simpatia e pela simplicidade com que me atendeu.

Ao Diegão, Eric, Andrea, Yuri, Cida, Irene Machado, Edna, Gustavo e Luciana, pela amizade e acolhimento na conturbada passagem por São Paulo.

À Gabriela Mager e Silvana Bernardes, pela confiança no meu trabalho.

À amiga Sandra Ramalho, pelo carinho, pelo apoio, pela generosidade e por muito mais.

À minha família (os Scoz, os Xavier, os Stüpp e os Vieira), aos meus avós, meus irmãos e cunhados, cujo apoio incondicional foi meu maior incentivo.

À Nanda, que sem saber nada sobre semiótica foi minha maior orientadora.

Aos meus pais, por acreditarem em mim, por não medirem esforços, por sempre terem estado ao meu lado.

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O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixonou-se por uma donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo que o soberano, entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real, negligenciava os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O imperador mandou embalsamar o cadáver e transportá-lo para sua câmara recusando separar-se dele. O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir àquela embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonou-se então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens.1

1

Barbey d’Aurevilly in Calvino, I., Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

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RESUMO

A presente pesquisa examina a construção do erotismo nas imagens publicitárias que não figurativizam corpos e em que os enunciados não trazem uma subjetividade autêntica. Configurada esta ausência, o enunciado, que ainda assim constrói efeitos de sentido sexuais, parece fazê-lo através de elementos indiciais de um simulacro ausente, de referências a elementos sexuais, ou por um simulacro desse simulacro. Quando uma imagem publicitária presentifica um corpo autêntico (de uma

top model, por exemplo), a enunciação dá-se intersubjetivamente por um processo que

envolve a objetivação do sujeito da enunciação – o consumidor – mediante a ação objetivante do sujeito do enunciado. Este processo acontece num circuito de reconhecimento recíproco baseado na presença, e que passa por um regime de erotização dos corpos apresentados. Nesta pesquisa, estuda-se a maneira através da qual se dá a construção do simulacro do erótico na ausênc ia do corpo, e como a sintaxe do discurso semantiza sexualmente as mercadorias. As hipóteses aqui levantadas tomam a publicidade como uma linguagem dinâmica, que guarda referências concretas com textos de outros sistemas, como os das artes cênicas, da pintura e da fotografia, mas com especificidades retumbantes que caracterizam um campo de estudo singular. A base epistemológica deste trabalho está na semiótica discursiva, e a bibliografia fundamental que dá orientação à pesquisa tem origem na sociossemiótica, desenvolvida por Eric Landowski, na psicologia da percepção, nas teorias sobre a comunicação de massa, nos estudos em publicidade, e em outras perspectivas teóricas.

Para mostrar a construção do simulacro do erótico na ausência da figuração do corpo, o presente estudo analisa fotografias publicitárias veiculadas em revistas de circulação nacional e internacional. Os 110 anúncios selecionados permitiram compreender a construção do erotismo na publicidade na ausência do corpo, ora através de referências astuciosas à corporeidade, ora por construções arbitrárias de uma sexualidade ausente. Esta variação na plausibilidade dos simulacros implica regimes de interação diferenciados, tanto da ordem da junção quanto da união.

Palavras-chave: semiótica greimasiana, publicidade, erotismo, sintaxe da união, enunciação.

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ABSTRACT

The present research examines the construction of the erotic message in advertising images which do not show bodies and do not bring an authentic subjectivity. If an absence is configured, the image, that still has sexual effects, seems to do it through clues of an absent simulacrum, through references to sexual elements, or through a simulated simulacrum. When there’s an authentic body on the image (a top model, for instance), enunciation works between subjects through a process that implies the enunciation subject – the consumer – as the enunciate subject’s object. This recognition process is reciprocal and based on presence, depending on the erotic values of the presented bodies. This research investigates the construction of erotic simulacrum when there’s no body, and how speech syntax applies sexual connotation to products. The hypotheses pointed in this study take advertising as a dynamic language, with substantial references from other systems, like scenic arts, painting and photography, although with major specificities that configure a unique theme. The epistemological base of this work is the discursive semiotics, and its fundamental bibliography comes from social semiotics, developed by E. Landowski, psychology of perception, mass communication theories, advertisement researches, and others theoretical perspectives.

In order to show how the erotic simulacrum is built without the figuration of the body, this study analyses ad pictures from national and international magazines. The 110 selected ads allowed a comprehension of the eroticism construction in advertisement when the body is omitted, through clever references to corporeity, or through arbitrary constructions of an absent sexuality. This variation in the believability of simulacra implies differentiated interaction regimes, junction as much as union.

Key-words: discursive semiotics, advertising, eroticism, union syntax, enunciation.

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1 PRELIMINARES: O corpo suprimido ... 2

2 A AUSÊNCIA SIGNIFICANTE... 11

2.1 A semiótica como episteme para a visualidade ... 11

2.2 Percepção e Sintaxe da Linguagem Visual... 14

2.3 Anúncios, enunciados e enunciação ... 16

2.4 Semiotizando o desejo... 21

2.4.1 Olhar e ser olhado ... 25

2.5 Intersubjetividades ... 29

O corpo objeto ... 29

O corpo sujeito ... 30

3 DE SIMULACROS DE PRESENÇA À ASÊNCIA ERÓTICA... 33

3.1 Insinuações e iniciativas ... 33

3.2 Simulacros de presença ... 38

3.3 O sex appeal do inorgânico... 55

3.4 O erotismo e a corporeidade ... 63

4 CONSUMAÇÃO DO (HI)ATO... 90

BIBLIOGRAFIA... 95

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1

PRELIMINARES: O corpo suprimido

Sexo causa gente.

(Millor Fernandes)

A publicidade, indústria de simulacros2 extremamente dinâmica, em consonância com as transformações do meio social em que se insere, há muito se libertou da necessidade de uma argumentação racional em consonância com a lógica utilitária daquilo a que se refere, produtos que busca vender, ou, colocando de uma maneira mais tácita e cautelosa, apresentar. De fato, a publicidade pode – ou mesmo assume que deve – levar ao incremento da demanda de um dado produto, mas a medida de seu sucesso não pode encontrar-se associada meramente aos demonstrativos estatísticos das vendas capitalizadas. A publicidade não somente aguça os sentidos dos consumidores para os produtos, como ajuda a formular o simulacro do produto que é percebido, e, em última análise, a redefinir aquilo mesmo que se toma como o papel do indivíduo na sociedade. Os efeitos de sentido que é capaz de criar são concebidos num discurso que se formaliza de maneira oscilatória, ora mais informativo, ora mais lúdico. Através deste comportamento pendular, a publicidade reforça estereótipos, ratifica valores, recupera arquétipos, ressalta, exagera, sublinha, atenua e, sobretudo e em última instância, diz. Entre controvérsias e contratos, a publicidade está, como sempre esteve, buscando novas e mais incisivas formas de fazer-se ouvir. Sendo assim, a venda propriamente dita de um determinado produto, resultado dos efeitos persuasivos do enunciado publicitário, não é ela que encerra em si a razão de ser da publicidade. Em outras palavras, pode-se dizer que levar o consumidor a comprar é uma das muitas conseqüências do anúncio publicitário; sob o delicado véu deste “compre”, “beba”, “consuma”, observa-se, aquém e além dos enunciados, uma profusão de efeitos de sentido que transcendem este determinismo da lógica mercadológica. Lógica esta que,

2 Na abertura de Da imperfeição, Greimas lembra seu leitor das refrações da linguagem. Se o parecer é, de fato, imperfeito, muito se deve aos filtros na leitura2. Partir deste pressuposto é admitir que o ser é a categoria intangível por natureza, sempre além, sempre alhures, sempre à sombra de um parecer e de seus desvios. O que se alcança, o que é minimamente tangível, configura o simulacro, cujas implicações semânticas perfazem o objeto de estudo da semiótica. Este parecer, esta face postiça e diáfana a pairar diante dos olhos, é a soma dos aspectos sempre aquém da totalidade, que mantém o semioticista alerta das coerções dos sistemas de representação.

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arbitrariamente, a partir de um olhar menos ponderado – e portanto e em certo sentido, mais crítico – é recorrentemente retratada como impositiva e totalitária. Para Lipovetsky (2004), esse discurso apocalíptico da crítica contemporânea à publicidade e às ferramentas persuasivas do marketing (de guerrilha ou não, pouco importa) é sintomático de um ufanismo que, ressentido no fracasso dos movimentos anti-capitalistas, ignora inocentemente os limites da persuasão. Segundo o autor, é a própria predisposição do indivíduo para ser seduzido que determina de maneira peremptória a dimensão dos efeitos persuasivos dos argumentos publicitários. Efeitos proporcionais à suscetibilidade, sedução proporcional à “libido”.

Deve-se observar, contudo, logo após esta argumentação preliminar, algo que parece bastante claro – e que curiosamente, com grande recorrência, é deixado de lado nas análises da linguagem publicitária – que diz respeito ao fenômeno em si da interação entre os anúncios publicitários e os consumidores (fenômeno este sobre o qual se debruça a presente pesquisa): o pressuposto comunicacional da troca, do qual a publicidade não pode, de maneira alguma, prescindir. É necessária a existência de um enunciador, de um enunciado e de um sujeito em condição de ser interpelado – constatação um tanto evidente e inócua, porém apresentada a título de ilustração da situação que se pretende estudar. Em outras palavras, é pré-requisito fundamental que as partes estejam presentes, ou melhor, façam-se presentes. Por ser comunicação, a publicidade engendra, no ato da interação com o consumidor, uma relação que responde aos regimes da articulação dos estados de presença descritos por Landowski3. Nesta perspectiva, no “confronto” com um anúncio publicitário, identidade e alteridade regem a interação. Na enunciação que se faz realizada, cada indivíduo assume seu papel. Isto é o que permite que sujeito da enunciação e sujeito do enunciado reconheçam-se reciprocamente. Entretanto, este regime de presenças reciprocamente percebidas leva a uma questão estrutural, que é a definição do lugar do produto anunciado neste diálogo estabelecido entre sujeitos. Pode-se concluir que, a rigor, os anúncios publicitários, do tipo que aqui são estudados, não podem tornar presente o produto em si. Pelo contrário, ao perceber a inviabilidade de tal presentificação, valem-se de sua ausência no enunciado para reconfigurá- lo semanticamente no processo da enunciação. A publicidade, então, figura um sujeito dentro do enunciado que supostamente experimenta o produto. Esta encenação é a própria mediatização da apreensão pelo

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consumidor do poder dos objetos encenados. Retomando Lipovetsky, longe do culto da objetividade das coisas.

Ao se apropriar desse efeito imediato do produto sobre o sujeito do enunciado, a publicidade pode interpelar seu destinatário da maneira que lhe é mais conveniente. É freqüente a encenação de situações em que modelos aparecem possuídas pelas sensações despertadas pelo produto – seja um perfume, um vestido ou uma jóia – pois é esperado que a reação do destinatário seja de um arrebatamento proporcional. A publicidade pressupõe interação, e neste sentido, o sujeito da enunciação (um “eu”), quando apresentado a um anúncio publicitário onde figura um segundo sujeito (o do enunciado, um “tu”), reconhece sua própria presença. Em tal situação, ao observar um anúncio, o consumidor objetiva a si mesmo, tornando-se então sujeito-objeto da enunciação. Nestes termos, o anúncio encerra um diálogo manifestado num circuito sobre o qual o consumidor percebe a si mesmo ao reconhecer-se no simulacro apresentado. Tendo-se notado a si mesmo, o sujeito do enunciado agora interage com o sujeito da enunciação, ambos objetivados pelo olhar do outro, ambos presentificados pela imagem apresentada, pelo anúncio em questão. O contato visual, ou seja, o momento inicial do reconhecimento da presença do outro é o pressuposto inicial4. Se a encenação presenciada traz a figurativização de “sujeitos possuídos”, este é o simulacro. Assim se vê o sujeito da enunciação: possuído pelo produto, seduzido pela imagem.

A impregnação – declarada ou dissimulada – de peças publicitárias visuais com elementos gráficos que despertam efeitos de sentido de natureza sexual é recorrentemente verificável. Seja na TV, nos outdoors, nas revistas ou nos jornais, referenciar o erótico é praxe, e tal constatação sugere que a indústria publicitária parece crer na efetividade desta prática. A psicanálise problematizaria de forma bem mais sistemática esta questão, mas parece razoavelmente seguro inferir que a temática sexual é assunto que interessa à maior parte da população. Sendo assim, e somando-se à questão os preceitos católicos, os cânones morais e os estigmas culturais aqui implicados, não seria de se esperar que a expressão da sexualidade na publicidade e a erotização das imagens passassem à revelia de olhares indiferentes e desinteressados. Na realidade, o mais crível é o contrário. É culturalmente problemático abordar a temática sexual: sexo é profano, subversor, vulgar. A censura tácita da cultura sobre o profano tem efeito proibitivo. Falar de sexo – ou melhor, através do sexo – é sussurrar

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lascivamente ao interlocutor: “não escute o que direi se não estiver preparado para um pouco de rubor!”.

A recorrência do sexo no discurso publicitário é ponto pacífico. Roupas, cosméticos, jóias, automóveis, eletrodomésticos, computadores, chocolates, sorvetes e até pães são passíveis de erotização. Nestes termos (e esta já é uma hipótese bastante atraente), a publicidade realiza esta operação discursiva de produção enunciativa de sentidos por entender que o uso de erotismo nos anúncios traz vantagens efetivas, seja pela possibilidade de conferir ao produto de que se fala um valor lúdico, uma sensualidade, um sex appeal que transcende seu fim pragmático, seja pelo interesse pulsional que desperta em seu interlocutor.

O mecanismo persuasivo que se estabelece no uso de tal recurso para veicular um dado produto pode ter o intuito de instigar seu destinatário – o consumidor – a manifestar um tipo de comportamento fetichista de consumo, instintivo e impulsivo, pois tal produto se apresenta como um desiderato. Refém servil de sua castração simbólica, de sua falta constitutiva, o consumidor consome. E o consumo, a aquisição de um produto “sexualmente enriquecido”, ofereceria ao indivíduo a possibilidade de explorar uma nova sensação de satisfação e saciedade, de natureza similar a sexual. É uma nova necessidade fisiológica, tão nova quanto primária, na medida em que já não pode ser atendida objetivamente, senão pela subjetivação do produto em si, simulacro daquilo que falta, daquilo que completa, e que é da ordem do gozo. Seria, por conseguinte, inalcançável?

Como foi colocado, o erótico está presente em anúncios de produtos de naturezas diversas; por adequação a cada tipo de produto anunciado, este erótico, tomado aqui como a colocação da relação interactancial no plano do “desejo”, é construído de maneiras diferentes. Nos termos apontados por Landowski, na publicidade, a figurativização de um “outro” entregue aos prazeres da experiência sexual coloca o espectador-consumidor em “flagrante delito de indiscrição”5, processo anteriormente descrito, e que será retomado de maneira mais aprofundada nos capítulos seguintes. O “flerte” assim simulado é a evidência do erótico.

Entretanto, a este mesmo espectador pulsional, dirigem-se também enunciados construídos no apagar da intersubjetividade. Certos anúncios, mesmo na

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ausência total de qualquer fragmento de um corpo, ou de vestígios que sugeririam sua presença, fazem referência, seja figurativa ou temática, a efeitos de sentido eróticos. Esta construção “não humana” de certos simulacros pode estar diretamente ligada à capacidade humana de transferência e de abstração, entretanto não se resolve somente à luz da teoria psicanalítica. Tanto presença quanto ausência expõem efeitos de sentido, comunicam, significam. Contudo, em certos casos, como os estudados a seguir, ausência e presença dobram-se uma em direção à outra, rompendo a contrariedade fundamental e dando origem a antíteses discursivas extremamente sofisticadas. Falamos, agora, de simulacros de presença, ent re os quais observamos aqueles em que através da figuratividade busca-se remeter justamente a uma presença de fato.

Esta expressão da sexualidade é tema bastante problemático, gerador de controvérsias e desencontro de opiniões, o que por si traz bastante relevância à investigação de tais questões. No Brasil, tendo em vista a multiplicidade cultural, a diversidade de religiões e credos, as características sócio-geográficas do país, bem como a singular formação multi-étnica de sua população (combinação de ma trizes européias, africanas, americanas...), a sexualidade e suas manifestações são, curiosamente, reféns de coerções moralistas bastante pronunciadas, mas sistematicamente questionadas. Pode-se observar uma grande preocupação com a aparência física, um culto exacerbado ao corpo e ao “parecer”, em detrimento do “ser”, que se manifesta na maneira de se vestir, no modo de dançar, no comportamento em grupo, nos rituais festivos (como as grandes festas populares)... Numa pesquisa do Royal College of Physicians da Inglaterra, publicada em 2000 pelo Atlas Penguin do Comportamento Sexual Humano, revela-se que os brasileiros têm relações sexuais com maior freqüência, mais duração e com maior diversidade de parceiros que os amantes de outros países. Esta efervescência libidinal aparece nas manifestações culturais, como o carnaval, nas telenovelas, no cinema brasileiro, na literatura, na legislação e, como não poderia deixar de ser, na publicidade. De carros a dentifrícios, são inúmeros os produtos que se vêem vinculados ao sexo em anúncios publicitários.

A exploração do sexo na propaganda, entretanto, não é restrita à terra do carnaval. No livro Sexo & Marketing, o professor Marcos Cobra, da Fundação Getúlio Vargas, ironiza que o primeiro gesto de marketing partiu da serpente de Adão e Eva6, e que desde então a publicidade tem explorado de maneira crescente e sistemática o

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erotismo e a sexualidade. Para o autor, é difícil dissociar desejo, publicidade e consumo, pois se a publicidade mediatiza, de alguma forma, a realidade do cotidiano da sociedade – e isso parece pressuposto do próprio mecanismo publicitário, no sentido de garantir sua efetividade – não há como deixar de lado a temática da sexualidade.

Entretanto, como instrumento discursivo de persuasão e conquista, o sexo é causa recorrente de controvérsia, para começar, por sua eficácia. Nos Estados Unidos, um estudo realizado pela Universidade de Iowa, questiona a eficácia da propaganda com recursos eróticos ou violentos. A pesquisa, divulgada em 2004, no Journal of

Applied Psychology, comparou a fixação de marcas através de anúncios televisivos. Os

entrevistados (324 homens e mulheres, de 18 a 54 anos) foram distribuídos em três grupos e expostos, respectivamente, a comerciais com teor sexual, violento ou neutro. Cada grupo assistiu a nove anúncios de produtos como refrigerantes, salgadinhos e sabão em pó. O que a pesquisa constatou foi que, apesar dos participantes lembrarem vivazmente dos anúncios que exploravam a questão sexual logo imediatamente após a exibição dos filmes, no dia seguinte, contudo estas marcas são menos lembradas que as exibidas em anúncios considerados neutros. A conclusão dos responsáveis pelo estudo, Brad Bushman e Angelica Bonacci, foi que sexo e violência podem atrair mais audiência, mas desviam a atenção da marca anunciada7.

O estudo é recente, mas bastante relevante. Isto porque os efeitos de sentido que sugerem sexo na publicidade e a erotização de produtos de diferentes naturezas parecem lugar comum na agenda do mercado. Em quase todos os suportes, seja nos veículos impresso, na televisão ou nas ondas do rádio, o discurso publicitário recorre de forma insistente à temática sexual para dar seu recado. Na impossibilidade de fazer o sujeito sentir o produto, a publicidade simula sua experimentação, e neste simulacro do uso se percebe, com enorme freqüência, o erótico manifestando-se. Ao apresentar, por exemplo, um modelo (sujeito do enunciado), utilizando um produto, sendo apreendido pelo seu uso, possuído por qualidades inomináveis, absorto num mar de sensações arrebatadoras, a publicidade lança mão de um expediente que é da ordem do sensível, em que a apreensão dos sentidos não se dá apenas cognitivamente. Em outras palavras, uma dimensão estésica está implicada, um sentir o estado do outro, de forma imediata e recíproca, segundo o regime do ajustamento8. Nestas encenações, percebe-se de maneira

7

Revista Amanhã: Especial: Sexo vende? em http://amanha.terra.com.br/edicoes/193/2especial.asp 8

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recursiva o sentido de intimidade que marca o anúncio de certos produtos, o que faz necessária uma atenção à dimensão sensível dos enunciados, buscando dar conta destes efeitos de erotismo.

A fotografia publicitária não se encerra em si mesmo. Subentende um momento amplo – um antes e um depois, além do “durante” congelado – e uma encadeação semântica com outras imagens publicitárias que, como coloca Landowski, parecem se pensar entre si, remetendo umas às outras. Este paralelismo sugere que cada imagem publicitária assume o papel de promessa de uma outra, “ainda ausente, mas já configurável”9. O universo dinâmico de signos, que leva à resignificação dos produtos, configura o modus operandi da publicidade, e a concatenação entre diferentes anúncios resulta numa espécie de cadeia de mitos que perfazem o fazer publicitário. Esta iconografia acompanha a própria estrutura do imaginário, através da discursivização repetitiva de estereótipos como o do amante vigoroso, do idoso experiente ou do esportista jovial. Esta concordância temática, que em última análise euforiza valores como a juventude, a sabedoria, a família, toma a questão da desejabilidade e da conquista de forma não menos recorrente. É evidente que a temática sexual fala de um consumidor suscetível ao erotismo, ou seja, “interessado” em tais valores. Entretanto, o que há de inusitado nesta erotização disseminada dos enunciados publicitários é o papel narrativo dos próprios produtos, que são agora objetos a se desejar. A conjunção oferecida, prometida pela publicidade, não é mais somente da ordem do objeto modal que qualifica o enunciatário à realização de uma performance. É o fim em si, o próprio objeto de valor. Sua falta implica uma ausência somaticamente manifestada, um desejo frustrado, pulsional, e esta é a prerrogativa que caracteriza o apelo sexual da publicidade.

Conforme coloca Landowski, as encenações publicitárias muitas vezes trazem o simulacro do “corpo desejante”, ou seja, do corpo dado a ver expondo sua subjetividade. Esta subjetividade convoca o sujeito da enunciação, ou seja, o consumidor, a também presentificar-se, pois agora se coloca diante de um actante sujeito numa interação recíproca. Entretanto, a ausência de tal simulacro, justamente o interesse desta pesquisa, não parece criar obstáculo à tematização erótica na publicidade. Pelo contrário, encontramos diferentes formas de enunciado elaboradas no sentido de dar visibilidade aos atributos “desejáveis” que o produto pode apresentar por

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si só, e que, portanto, seriam da ordem do sexual. Desta forma, esta investigação pergunta como é viabilizada esta temática do erotismo na ausência do corpo? Sendo o próprio produto colocado, em certos casos, como articulador da reciprocidade erótica de que falávamos, ou seja, na condição de simulacro de um “sujeito desejante”, de que tipo de intersubjetividade estamos tratando? Em outra perspectiva, aquela temática erótica de que se apropria a publicidade seria um apanhado de impropérios metalingüísticos, cabendo um sentido de legitimidade somente àquele sentido erótico de que falávamos, dependente de fato da intersubjetividade? Ou o próprio objeto anunciado estaria por fim viabilizando um desejo erótico? Apostando que a construção do erotismo neste tipo de anúncios publicitários de corpos ausentes estaria vinculada a um processo de resignificação do produto, quais os mecanismos que garantiriam estes atributos sexuais? Neste sentido, investigamos os mecanismos semióticos deste sentido erótico na ausência do simulacro do corpo que, em termos contratuais, pretende produzir efeitos de sentido de parecer tão autêntico quanto na presença do mesmo. Para tanto, faz-se inicialmente necessário adotar uma única acepção para os termos desejo e erotismo, repetidamente empregados neste estudo, e a partir dos quais a problemática é investigada. Somente desta forma poderemos contornar os inconvenientes da abrangência destes termos, cuidado que concomitantemente permite às imagens do corpus guardarem entre si uma coerência temática mais rigorosa.

As hipóteses apresentadas demandam uma abordagem analítica da construção do simulacro do erótico na ausência do corpo, bem como da sintaxe do discurso que semantiza sexualmente as mercadorias. Neste âmbito, cabe também problematizar: quais os regimes de erotismo vigentes na publicidade? Quais os tipos de ausência de que falamos? Ainda falamos de erotismo e de sentido sentido na ausência do corpo, tal como define Landowski? Que efeitos de sentido são gerados a partir destas estratégias? Quais os vestígios de presença do corpo que dão origem ao erótico no enunciado? Como somos levados a interagir com tais simulacros e como o sujeito da enunciação se presentifica na ausência do sujeito do enunciado?

A fotografia publicitária como corpus

O presente trabalho põe à prova um modelo semiótico de análise em anúncios veiculados em revistas de circulação nacional e internacional, para investigar os mecanismos de construção do simulacro erótico na ausência da figuração do corpo.

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Entender o fenômeno da enunciação publicitária passa por um processo complexo de análise de produção de sentido, resultante da relação dialética entre enunciador e enunciatário, e seus múltiplos desdobramentos. Nestes termos, avaliar as especificidades da retórica publicitária num recorte reduzido, mas ainda assim representativo enquanto corpus, requer um aprofundamento efetivo das noções de simulacro envolvidas, bem como um rigor metodológico que, para muito além do determinismo superficial da análise do discurso, dê conta das diversas camadas interpostas entre (e além das) partes envolvidas. A semiótica greimasiana e, sobretudo os notáveis avanços no campo do discurso publicitário desenvolvidos por Jean-Marie Floch e Eric Landowski, reforçam a tese de que o anúncio, assim como toda forma de enunciação, é um processo de produção de sentido que ganha vulto e relevância no contato interativo entre as partes envolvidas, e buscar dar conta de tal relação pressupõe tratar tanto de sua dimensão cognitiva quanto dos aspectos sensíveis implicados.

Para o presente estudo, foram selecionadas cerca de 110 imagens obtidas em revistas de circulação nacional e internacional, que apesar de atenderem tanto ao público feminino quanto ao masculino, poderiam ser classificadas como “revistas de variedades”. Foram elas: Vogue, Cosmopolitan, Elle, Esquire, GQ, TPM, Trip, Arena,

Vizoo, Máxima, Marie Claire, Playboy e Vip, entre os anos de 2003 e 2006. A seleção

dos anúncios baseou-se em dois critérios: em primeiro lugar, os anúncios deveriam ser veiculados em mídia impressa e, em segundo, fazer algum tipo de referência à sexualidade na ausência de corpos, seja através da figuratividade, da tematização, ou mesmo somente através do enunciado verbal. Como era necessário reunir um número significativo de anúncios, e como estas duas condições inviabilizavam fechar o corpus numa única publicação (ou Vogue ou Marie Claire, por exemplo) pela maior prevalência verificada de imagens eróticas que lançam mão de corpos autênticos, fez-se necessária esta busca transversal entre diferentes publicações, o que poderia caracterizar um arrefecimento do rigor metodológico. Entretanto, são as recorrências identificadas entre os anúncios analisados que ratificam a metodolo gia empregada e apontam para uma sintaxe do erotismo comum ao heterogêneo grupo de publicações adotado.

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A AUSÊNCIA SIGNIFICANTE

Todo parecer é imperfeito: oculta o ser; é a partir dele que se constroem um querer-ser e um dever-ser, o que já é um desvio do sentido. Somente o parecer, enquanto o que pode ser – a possibilidade –, é, vivível.

Dito isso, o parecer constitui, apesar de tudo, nossa condição humana. É ele então manejável, perfectível? E, no final das contas, esta veladura de fumaça pode dissipar-se um pouco e entreabrir-se sobre a vida ou a morte – que importa?

(A. J. Greimas)

2.1 A semiótica como episteme para a visualidade

Estudar a visualidade, sob a perspectiva de um olhar semiotizante, é, para todos os efeitos, buscar dar conta da experiência sensorial despertada pelos textos visuais, em todas as suas dimensões. Contudo, quando se aplica o termo visualidade, fazendo referência a um campo de estudo propriamente dito – que comporte todo tipo de texto visual – pressupõe-se uma homogeneidade transversal intrínseca que é referente a todo tipo de objeto imagético. Uma perspectiva como essa pode soar demasiadamente constritora, ao propor sistematização a objetos tão díspares, na contramão de suas especificidades singularizantes. Contudo, ainda assim, nos colocamos a examinar a visualidade a partir de tal olhar semiotizante, por assumirmos o partido de uma sintaxe fundamental. Uma perspectiva que rompesse com este pressuposto sintático tangenciaria levianamente as imposições da cognição humana. Todo o “produzir sentido” tem um compromisso fundamental com a linguagem. Em outras palavras, as especificidades da linguagem utilizada são sobredeterminantes do alcance da manifestação criativa, seja ela visual, verbal ou sincrética. A linguagem é imperativa e irrefutável. Os sistemas lingüísticos, as categorias semânticas, os arranjos estruturais, os princípios estilísticos, bem como as combinações sintagmáticas possíveis, dão medida à dimensão sintática que nenhuma linguagem pode preterir. Do pressuposto saussereano da sintaxe lingüística, tomado no contexto dos enunciados publicitários, parte o arrazoado geral desta pesquisa.

Contudo, a dimensão sintática da linguagem visual do objeto aqui estudado é o alicerce metodológico desta análise, não sua finalidade propriamente dita. Fosse esse

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o escopo adotado, certamente não se daria conta das emanações do objeto, no caso, a fotografia publicitária, enquanto um todo de sentido. Estaríamos, ao contrário, propondo um ponto de vista torto e mambembe, cujos apontamentos tergiversariam reticentemente aquém de tantos outros efeitos de sentido deixados de lado.

Para concatenar, ao longo dos meandros peculiares da fotografia publicitária, as reiterações que dão significado a cada imagem, o modelo de análise que o presente estudo utiliza é o da semiótica discursiva.

Existem diversas correntes semióticas com aplicabilidade no estudo do universo imagético da publicidade. A rigor, ao tratar de semiótica, devem-se ter em vista as diferentes abordagens metodológicas implicadas, desdobramentos diversos que não necessariamente apontam para a mesma origem. Contudo, em traços gerais, a teoria semiótica não se coloca epistemologicamente como ciência em si, mas como uma disciplina com rigor científico. E esta diretriz geral é característica da semiótica discursiva, de origem francesa, desenvolvida a partir dos estudos de Algirdas Julien Greimas e de seu grupo de colaboradores.

A semiótica discursiva utiliza um modelo metodológico de análise que se fundamenta na fenomenologia, na antropologia cultural e na lingüística estrutural. Desta última, e este aspecto é assaz determinante, a semiótica empresta noções fundamentais que balizam as análises dos diferentes tipos de “texto”. Segundo argumenta Barros, texto é um todo de sentido obtido através da articulação dos elementos constituintes mínimos, segundo regras combinatórias que os põem em relação. Portanto, o sentido de um texto é dado pelo resultado das “relações” que estes elementos mínimos estabelecem entre si, e não somente pelo seu “somatório”. São estes arranjos combinatórios, estes procedimentos relacionais que articulam e organizam a sua manifestação. Em outras palavras, o todo é mais que a soma das partes10. Nos textos visuais, como é o caso específico da fotografia publicitária, esta dimensão da expressão é um fértil terreno para a investigação da semiótica. De fato, as pesquisas no campo da visualidade tensionaram a disciplina no caminho de um fazer semiótico sobre os enunciados visuais e, sobretudo através dos esforços valiosos de Jean-Marie Floch e Felix Thulermann, propiciaram a edificação de uma semiótica plástica. Sobre o assunto, esclarece Oliveira

10

(22)

Considerando que um texto visual, qualquer que esse seja: arquitetura, escultura, paisagem natural ou pintada, desenhada, gravada, fotografia, é construído por um arranjo específico de sua plástica, organizada por mecanismos estruturais particulares de seu sistema com as suas regras, resultando em uma dada sintagmatização das unidades mínimas; optamos por denominar plástica a semiótica que se ocupa da descrição do arranjo da expressão de todo e qualquer texto visual. Trata-se, portanto, de uma semiótica de caráter geral do ponto de vista de seus fundamentos teóricos e de seus procedimentos metodológicos.11

A dimensão plástica dos textos visuais erige-se a partir da articulação dos

formantes, as menores unidades da expressão12, por meio de procedimentos relacionais. O formante pode ser de várias ordens, e sua participação na constituição do plano da expressão deve ser examinada na articulação com o plano do conteúdo. Tal dicotomia estabelecida por Ferdinand Saussurre é fundamental na análise de todo e qualquer texto. Cada um destes dois planos designa “separadamente os dois termos da dicotomia

significante/significado ou expressão/conteúdo que a função semiótica reúne”13, e guardam entre si relação de pressuposição recíproca. Não existe expressão sem conteúdo, nem conteúdo sem expressão.

No trajeto da análise, em busca dos efeitos de sentido a apreender, são verificados traços, elementos, manifestações visuais que são recorrentes e se articulam no plano da expressão. Estas recorrências ao longo do texto são indicativas das seleções adotadas pelo enunciador, revelando os procedimentos de concretização do conteúdo pela matéria significante. As recorrências da expressão, que são também recorrências do conteúdo, sugerem as isotopias que organizam os eixos semânticos do discurso. Em um dado texto, isotopias são as reiterações de “quaisquer unidades semânticas (repetição de temas ou recorrência de figuras) no discurso, o que assegura sua linha sintagmática e sua coerência semântica” 14. As isotopias garantem a homogeneidade semântica dos

11

A. C. de Oliveira, Semiótica Plástica. São Paulo, Hacker Editores, 2004, p. 12. 14

A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”. in Significação: revista brasileira de

semiótica, n.4, junho de 1984, p.18-46.

13

A. J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de Semiótica. Trad. A. D. Lima. São Paulo, Cultrix, s.d., p. 336. 14

(23)

textos enunciados, pelas operações que deixam no seu traçado o percurso da significação15 até o desvelar de seu conteúdo.

2.2 Percepção e Sintaxe da Linguagem Visual

Empreender um estudo acerca da produção de sentidos na fotografia publicitária é, em primeiro lugar, buscar dar conta de sua sintaxe própria. Os estudos sobre a linguagem visual fornecem fundamentos teóricos indispensáveis para tal tarefa. No vórtice deste empreendimento teórico da visualidade, Arnheim, atribuindo ao fazer perceptivo uma determinante fenomenológica bastante pungente, opõe-se à idéia de percepção enquanto uma operação intelectiva. Em seus estudos sobre a linguagem visual, sustenta um ponto de vista menos determinista do “ver”. Segundo o autor:

(...) somos forçados a admitir que a percepção consiste na formação de “conceitos perceptivos”. Conforme os padrões tradicionais esta terminologia é incômoda, porque se supõe que os sentidos se limitam ao concreto enquanto os conceitos tratam do abstrato. (...) A visão atua no material bruto da experiência criando um esquema correlato de formas gerais, que são aplicáveis não somente a um caso individual concreto, mas a um número indeterminado de outros casos semelhantes também. 16

Essa noção do fenômeno da visão leva a abordar a visualidade a partir de uma gramática do ver, a qual todo texto imagético está atrelado. Segundo Arnheim, o ver está ligado inextricavelmente a uma busca por sentidos naquilo que é visto:

O pensamento psicológico recente nos encoraja então a considerar a visão uma atividade criadora da mente humana. A percepção realiza ao nível sensório o que no domínio do raciocínio se conhece como entendimento. O ato de ver de todo homem antecipa de um modo modesto a capacidade, tão

15

C. Regina Garcia, Estudos semióticos das lingeries na construção dos regimes de visibilidade da

mulher brasileira. Dissertação de mestrado. Orientação Prof. Drª. Ana Claudia de Oliveira. Comunicação

e Semiótica, PUC-SP, 2005. 16

R. Arnheim. Arte e Percepção Visual: Uma Psicologia da Visão Criadora. Trad. de Ivonne Terezinha de Faria. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli, 1994, p. 39.

(24)

admirada no artista, de produzir padrões que validamente interpretam a experiência por meio da forma organizada. O ver é compreender. 17

A partir desta descrição cognitiva do ver como processo subjetivo e espontâneo, podemos elencar os desdobramentos teóricos de Dondis sobre o alfabetismo visual18, além das contribuições de Aumont19 acerca dos mecanismos do ver, no intuito de cristalizar aquilo que definimos como sintaxe da linguagem visual.

Para Dondis, os elementos básicos da comunicação visual são as unidades morfológicas de um texto imagético, pois

Sempre que alguma coisa é projetada e feita, esboçada e pintada, desenhada, rabiscada, construída, esculpida ou gesticulada, a substância visual da obra é composta a partir de uma lista básica de elementos. Não se devem confundir os elementos visuais com os materiais ou o meio de expressão, a madeira ou a argila, a tinta ou o filme. Os elementos visuais constituem a substância básica daquilo que vemos, e seu número é reduzido: o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a dimensão, a escala e o movimento. Por poucos que sejam, são a matéria-prima de toda informação visual em termos de opção e combinações s eletivas.20

Em última análise, o emprego de técnicas combinatórias é o que possibilita a expressão visual do conteúdo. A técnica fundamental é o contraste, por ser a “força que torna as estratégias compositivas mais visíveis” 21. Elas podem ser organizadas em pares opostos, de acordo com suas complementaridades num eixo semântico, por exemplo, equilíbrio e instabilidade. Segundo Dondis, o contraste é a técnica visual mais dinâmica, que se manifestaria numa relação de polaridade com a técnica oposta, a harmonia. O equilíbrio seria, depois do contraste, o princípio mais importante das técnicas visuais. Essa importância está relacionada ao mecanismo de funcionamento da percepção humana, e na grande necessidade de sua presença. Pode ser definido como uma estratégia em que existe um centro de suspensão num ponto eqüidistante de dois pesos.

17 Ibidem, p. 39. 18

D. Dondis A. Sintaxe da linguagem visual. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

19

J. Aumont. A Imagem. Trad. de Estela dos Santos Abreu e Cláudio César Santoro. Campinas: Papirus, 1993

20

D. Dondis. Op cit.p. 51. 21

(25)

A instabilidade manifesta o oposto da idéia de equilíbrio. Podem ser apontadas também como técnicas compositivas de grande importância: simetria e assimetria, regularidade e irregularidade, simplicidade e complexidade, unidade e fragmentação, economia e profusão, previsibilidade e espontaneidade, atividade e estase, sutileza e ousadia, anulação e destaque, transparência e opacidade, repetição e episodicidade, entre outras.

a b

Figura 1 – Técnicas compositivas: (a) contraste e (b) simetria

Yves Saint Laurent,Vogue, 2003; Afreudite, Vizoo, 2002.

Na fotografia publicitária, assim como em outros textos visuais em que se apliquem tais procedimentos sintáticos, a análise da dimensão plástica parte da identificação destes princípios e de sua homologação a um conteúdo pressuposto, pois como há pouco foi ratificado, não existe expressão sem conteúdo. Um exemplo preciso de tal aplicação metodológica pode ser encontrado nas análises meticulosas dos anúncios impressos do cigarro News, desenvolvidas por Jean-Marie Floch. Com pronunciado rigor científico, seu estudo percorre detidamente os aspectos figurativos da página do anúncio, recuperando-os sistematicamente na homologação dos efeitos de sentido implicados no plano do conteúdo.

2.3 Anúncios, enunciados e enunciação

Toda análise semiótica do visual, como a que se pretende aqui desenvolver, deve manter-se atenta a esta dimensão plástica através da qual vemos articulações entre expressão e conteúdo, no sentido de dar conta da produção de significado nos textos.

(26)

Entretanto, outro aspecto irrefreável dos estudos semióticos (não especificamente do campo da visualidade) diz respeito ao conjunto das marcas deixadas no discurso que se constrói: as estratégias enunciativas. Segundo Fiorin, enunciação é o “ato de produção do discurso”22, e seu produto, aquilo que chamamos enunciado. Para descrever o que diz um enunciado, a semiótica preconiza observar “como ele faz pra dizer o que diz”23, o que implica considerar todo texto estudado como o produto de um fazer competente, de um conjunto de escolhas conscientes que se revelam nas reiterações. Em outras palavras, isto implica considerar que cada discurso é um todo de sentido resultante de um processo enunciativo em que nenhuma opção é inocente.

O enunciado publicitário – enquanto texto – é o produto de um fazer discursivo contingentemente comprometido com a obtenção de um objetivo mercadológico, institucional, político, etc. Toda esta intencionalidade por trás de um anúncio encontra-se registrada em documentos que as agências convencionaram chamar “briefing”. Nele, constam informações sobre o público alvo, sobre o produto e sobre o próprio anunciante. São feitos apontamentos estratégicos e metodológicos no sentido de garantir que os anúncios sejam bem sucedidos, que a mensagem passada seja inteligível e que, em última análise, o consumidor seja sensibilizado. Estas medidas antecedem aquilo exatamente de que se ocupa a semiótica: os enunciados. Podem acabar se manifestando na figuratividade e na temática adotadas, porém investigar a publicidade a partir da instância da enunciação equivale a buscar nos enunciados publicitários as reiterações que revelam como estas medidas, estas escolhas e operações sintáticas se manifestam nos discursos, bem como o que elas dizem daquele que as adotou. Não se trata de descobrir a verdadeira intenção do destinador do texto, ou seja, aquilo que ele

quis dizer, mas aquilo que ele diz de fato. Nestes termos, segundo a teoria semiótica, o

anúncio publicitário traz projetado em sua estrutura discursiva um eu – que diz – e um

tu – a quem é dito – pressupostos na enunciação: um enunciador e um enunciatário. A

estratégia de manipulação se manifesta entre estes sujeitos, e o enunciado só se torna operativo através deste par pressuposto. Anúncios que apresentam as vantagens da aquisição de um determinado produto (figura 2) ilustram de maneira bastante eficiente este vínculo: verificamos a construção de um enunciador que detém o conhecimento dos atributos do produto, e de um enunciatário que os desconhece. Este desequilíbrio de competências possibilita ao enunciador levar o enunciatário a desempenhar o papel

22

J. L. Fiorin, Elementos de análise do discurso . São Paulo: Contexto, 2004, p. 39. 23

(27)

narrativo que aquele espera deste. A figura a seguir traz um anúncio originalmente apresentado em dois momentos que se completam no virar de uma página. No primeiro, uma sensual jovem parece caminhar manifestando certa surpresa. Na página seguinte, revelam-se seus curiosos observadores, enfeitiçados pela generosa conformação criada pelo produto anunciado (sutiãs “maravilha”).

Figura 2 – Vantagens prometidas

Wonderbra, Vogue, 2005

As análises dos anúncios selecionados para o corpus partem deste arrazoado temático da enunciação. Os anúncios foram tomados enquanto discursos, em cuja dimensão cognitiva identificamos um conjunto de valores investidos. Para identificar as estratégias enunciativas empregadas, o fazer persuasivo do enunciador e o fazer interpretativo do enunciatário, faz-se imperativa a investigação do percurso gerativo do

sentido, modelo metodológico que traz um simulacro operacional do modo de produção

e de interpretação do sentido24.

O modelo de percurso gerativo, tal como postulado por Greimas, é constituído por três patamares sucessivos: o fundamental, o narrativo e o discursivo, cada qual com um componente sintático e outro semântico. Sobre estes componentes, complementa Fiorin:

24

(28)

A distinção entre sintaxe e semântica não decorre do fato de que uma seja significativa e a outra não, mas de que a sintaxe é mais autônoma do que a semântica, na medida em que uma mesma relação sintática pode receber uma variedade imensa de investimentos semânticos25.

No elemento mínimo e em seu arranjo relacional, no caminho entre a parte e o todo, entre expressão e conteúdo, sintaxe e semântica revelam-se e dão sentido aos textos. Através do percurso gerativo do sentido, sobretudo no patamar das estruturas discursivas, onde a figuratividade reveste os textos visuais, podemos semiotizar os anúncios analisados em busca das estratégias enunc iativas empregadas.

Entretanto, não somente ao nível das estruturas semio-narrativas e discursivas se limitam os estudos semióticos. A abordagem dos textos visuais, assim como dos demais campos estudados à luz da semiótica estruturalista, acompanha a evolução na trajetória histórica da disciplina. Segundo Landowski, de uma semiótica dos discursos enunciados, observou-se uma transição a um modelo analítico vinculado a uma semiótica das situações. Hoje, os estudos parecem indicar uma nova reconfiguração da abordagem estrutural, orientada já a uma semiótica da experiência

sensível, e tal tendência, agudamente relevante no estudo da publicidade, objetiva dar

conta da sintaxe e da semântica dos novos fenômenos de que nos ocupamos.

A teoria semiótica discursiva (greimasiana ou estrutural) parte de uma prerrogativa cognitivista para delimitar os papéis semióticos dos sujeitos em relação. Como coloca Landowski, é fato conhecido há tempos que a construção dos significados não emana de relações imediatas entre a linguagem e o mundo natural, mas que ela se realiza somente na cooperação entre co-enunciadores26. Ao atentar para esta premissa – a presença de sujeitos – a análise já é, por assim dizer, levada a orientar-se por uma semiótica da experiência sensível. Sobre estes sujeitos do perceber, imprescindíveis à comunicação enquanto fenômeno, Aumont comenta:

Ao passar do visível ao visual, já começamos a considerar o sujeito que olha. (...) falar de informação visual ou de algoritmos é interessante, mas

25

Ibidem, p. 18. 26

(29)

deixa em suspenso a questão de saber quem constrói esses algoritmos, quem aproveita essa informação, e porque.27

Esta tomada de consciência a respeito dos sujeitos do perceber é mais que da ordem de uma orientação sistemática; assume a condição de um dado semiótico irredutível em nossas pesquisas no campo da visualidade, e seria absolutamente pífio e rasteiro qualquer estudo desatento a tais especificidades que caracterizam a comunicação, inclusive a publicitária. De certo modo, isto já equivale a assumir uma postura diferenciada frente aos objetos estudados. Os anos 90 trouxeram um novo paradigma metodológico, tanto em razão da publicação do último livro de Greimas, Da

imperfeição, quanto das significativas expressões recuperadas da fenomenologia

francesa do pós- guerra. É a partir deste momento, através de uma visão menos cognitivista dos processos comunicacionais, que a semiótica estrutural desvia-se, pelo menos em certo sentido, da tendência ao modelo mediatizado de interação. Em certo sentido, pois este novo paradigma não representa a ruptura total com a gramática canônica; busca, na verdade, dar conta de outro regime de sentido, justamente aquele que se estabelece na co-presença sensível dos actantes. Nos termos propostos por Landowski, a análise de um sentido que se constrói “em ato”. Em outras palavras, afastamo-nos metodologicamente neste instante do modelo da junção, pois a maneira de fazer sentido que caracteriza as interações tidas como não mediatizadas são da ordem do contato direto entre instâncias definíveis essencialmente em termos estésicos.

Tendo em vista tal dimensão estésica dos objetos estudados, a semiótica desloca agora seu foco sobre aqueles efeitos de sentido produzidos pelo contato dinâmico, pela presença interativa apta a fazer sentido em si. Esta nova abordagem – estaríamos, então, sob a égide de uma nova disciplina? – se distingue das anteriores por considerar que uma transformação de estado sofrida por um sujeito (resultado de uma troca comunicacional) pode ser simplesmente, o resultado de sua “exposição” a um outro presentificado. Este regime de interação dispensaria um vetor, um significante ou mesmo um objeto de valor a determinar os papéis narrativos, e que seria colocado em jogo entre actantes: dar-se-ia por contágio.

Na ausência de um agente transmissor que justifique tal contágio, Landowski propõe que é a própria presença contagiante do outro que precipitaria tal transformação.

27

(30)

É isso que reconhecemos ao dizer que o tipo de contágio que nos interessa pressupõe, na falta de causas ou razões, a presença de um sujeito para o outro. No simples estar-lá de dois atores enquanto corpos-sujeitos, cada um já oferece a seu parceiro, e percebe dele, uma espécie de texto minimal. 28

O exemplo inicial apresentado pelo autor é o do riso. Em sua opinião, a hilaridade que arrebata um sujeito pode se dar em razão da decodificação e da interpretação de um evento, ou mesmo de uma piada, o que seria da ordem de uma comicidade planejada, adulta e racional. Em outras palavras, segundo um modelo cognitivo de processamento e mediação. Por outro lado, o mesmo estado de hilaridade pode nos atingir simplesmente pela presença, diante de nós, de um segundo sujeito já vitimado pelo cômico: alguém que ri. É o mecanismo estésico, que também podemos observar operando na euforia do lactante, possuído pelo riso contagiante do outro, da mãe, ou de outra criança; este estado imanente do outro que possui e contagia aqueles ao seu redor.

Estendendo-se este regime de interação por contágio a outras formas intersubjetivas de articulação da experiência estésica, pode-se problematizar a questão do desejo segundo a mesma perspectiva.

2.4 Semiotizando o desejo

E se o sentir não conviesse ao sujeito? Não se coadunasse com uma subjetividade que diz “eu”? Caso esta não conseguisse captar o sentir enquanto tal exceto com a condição de

transformá-lo num pensar? Se o sentir fosse inacessível ao eu? Se todo esforço realizado pelo eu para apropriar-se do sentir conduzisse inevitavelmente a um pensar? Se no sentir estivesse implícita e fosse essencial uma dimensão neutra que nos obriga a dizer: “se sente”, mas nos impede de dizer: “eu sinto”? Se toda tentativa de dizer: “eu sinto” se resolvesse fatalmente num “eu penso”?

(M. Perniola)

28

(31)

Quando buscamos, através de um estudo deveras limitado como este, identificar as formas através das quais se tornam operantes os recursos discursivos de erotização na publicidade onde não estão figurados corpos autênticos, corremos o risco de precipitar-nos a projetar juízos demasiadamente abstratos acerca daquilo que aqui chamamos de erótico, ou mesmo, em termos mais específicos, desejante29. Tentando contornar tal inconveniente, percebemos a necessidade de sedimentar algumas noções relacionadas ao que pode ser considerado como da ordem do erótico, o que autorizaria, por fim, uma sintaxe adequadamente formalizada. É ponto pacífico e consensual que não é adequado restringir o conceito de erotismo às cercanias de um código estético cultural ocidental, buscando dar conta, da forma mais abrangente, das diferentes noções de erotismo existentes. No mínimo, pelo risco da inconsistência30.

No dicionário de língua portuguesa, a definição do substantivo abstrato

erotismo aponta para recortes lexicais obtidos por uma valorização fórica da

sexualidade31 (distinta da valorização disfórica pressuposta em pornográfico). O termo é derivado do radical grego Eros, que na mitologia era o nome do deus do amor. Primitivamente, o substantivo também descrevia o desejo amoroso, e que em seguida é aplicado a qualquer tipo de desejo vivo, qualquer paixão, qualquer ardente impulso de qualquer coisa32. Para Freud, assim como para certos psicólogos que nele se inspiram, o termo erotismo abrange, num sentido muito amplo e variável, a acepção propriamente sexual além do sentido do desejo em geral.

Deus grego do amor e do desejo, Eros apresentava-se, na tradição mais antiga dos estudos da mitologia, como a força ordenadora e unificadora do cosmos. Assim ele aparece na versão de Hesíodo e em Empédocles, pensador pré-socrático. Seu poder unia os elementos para fazê- los passar do caos ao cosmos, ou seja, ao mundo organizado. Em tradições posteriores, era tido como filho de Afrodite com Zeus, Hermes ou Ares, de acordo com diferentes versões. Contudo, Platão o descreveu como filho de Poro (Expediente) e Pínia (Pobreza); era o deus do instinto básico da vida,

29 O termo “sedução” (bem como os desdobramentos “sedutor” e “seduzido”), que no senso comum ocupa o lugar das expressões aqui empregadas, é evitado pelas especificidades da terminologia própria da gramática narrativa.

30

A priori, a sintaxe erótica dos objetos estudados é autorizada pela dimensão sexual que está presente. Contudo, em função do panorama ambíguo que poderia ser desenhado em torno do referente sexual, faz-se necessária a adoção de alguns conceitos sistematizantes, no faz-sentido de garantir o rigor científico da pesquisa.

31

A. Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa . São Paulo: Objetiva, 2001. 32

(32)

responsável pela atração entre os corpos, e pela força vital que impulsionava a vida (Freud referiu-se a esse mesmo deus Eros de Platão como a Libido, força vital de amor). Para Platão, a essência do amor e do desejo era "sentir falta de", estar em busca constante, em perpétua insatisfação33. Semioticamente, o trajeto que leva a conjunção com o objeto desejado (ou com o sujeito amado), capaz de romper a disforia peremptória da disjunção que abate o insatisfeito, reque r que este adquira competência para, em seguida, realizar uma performance. Na publicidade, a promessa de tal conjunção (a obtenção deste objeto modal ou de valor) viabiliza a adoção de um procedimento de manipulação de um sujeito sobre outro. Para Landowski:

(...) essa falta estruturalmente programada, não podemos esperar supri-la, a não ser imaginariamente, por meio do consumo de outros simulacros da mesma natureza, seguindo sempre os mesmos percursos de leitura propostos como promessas de um gozo que eventualmente será real e que, por essa mesma razão, é sempre adiado.34

Mas o que é, em termos semióticos, o desejo? Para Rauh e Revault D’Allones, o desejo é a “tendência para se obter uma emoção já experimentada ou imaginada” 35. Entretanto, tal simplificação exclui a primazia de certas tendências em relação às emoções correspondentes posteriores. Neste sentido, parece-nos mais adequado interpretar o desejo (de um objeto, de um ser humano, de um ato ou de um estado) sem que nele haja necessariamente a representação dos estados afetivos de seu fim. Em outros termos, poderíamos então dizer que o desejo é uma tendência espontânea e consciente em direção a um fim conhecido ou imaginado. Para Lalande, o desejo difere da vontade, por tornar inviável a coordenação (pelo menos momentânea) das tendências, e por suspender a oposição entre o sujeito e o objeto – o desejo se dá entre sujeitos. Além disso, também não considera os meios pelos quais se realizará o fim pretendido, enquanto que a vontade envolve a consciência de sua própria eficácia. O contrário do desejo é a aversão, termo que também implica uma tendência imperativa debelada pela representação de um estado afetivo. Entretanto, a idéia de representação – aplicada aqui tanto ao deflagrar do desejo quanto ao da aversão – sugere uma lógica

33

P. Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. 34

E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 141. 35

Rauh e Revault D’Allones, in A. Lallende, Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 241.

(33)

cognitivista nos mecanismos descritos, sustentando a improfícua idéia de um erotismo em conformidade com o regime da junção (o que excluiria a dimensão sensível anteriormente colocada). Em termos de uma semiótica da dimensão estésica, o desejo independe de “objetivo estratégico” e de “cálculo ” 36, o que implicaria um desejo unidirecional, intelectivo e distanciado. O que o regime da união sugere é justamente um “desejo com”, em que a relação sujeito/objeto dá lugar a uma relação intersubjetiva, entre corpos-desejantes. Como teoriza Landowski:

Independentemente de todos os atrativos específicos que se queira (ou junto com eles), esse quê do qual depende o nascimento do desejo é, como no caso do riso, o próprio estado do corpo do outro, apreendido como um todo, face à nossa própria capacidade de senti-lo em seu estado (hipotético) de

corpo desejante.37

Tal regime de interação parece depender inexoravelmente de uma postura distinta dos actantes envolvidos. Eis a razão: experimentar o estado somático do corpo do outro presentificado, ele mesmo agora na condição de sujeito de um sentir próprio, demanda que o sujeito primeiro desta interação aproxime-se daquele o suficiente para que a relação estabelecida seja da ordem da troca bi- lateral. Ou seja, que sua condição, seu estado, suas próprias manifestações somáticas sejam colocadas em jogo, articulando uma transformação dinâmica e recíproca. É a imediaticidade propriamente dita que funda tal relação estésica. Não consideramos mais, como única leitura possível, a apreensão estética de um sujeito cognitivo em contato (distanciado) com um objeto e seus efeitos de sentido. Para Landowski “não há mais, nesse caso, um observador que julga e finalmente decide, mas um corpo que experimenta a qualidade sensível da presença do outro corpo” 38. O corpo-objeto, distante, imagético, estético, dá lugar ao

corpo-sujeito, somatizado, experimentado como a si mesmo, num movimento

proprioceptivo que tem o outro como extensão, que tem no outro referência. Um corpo-sujeito é, na nossa medida, um corpo que nos aciona como corpos-corpo-sujeitos, que nos interpela ao ser interpelado, e que ao desejar convoca as ordens sensitivas de seu parceiro a fazê- lo também. Nesse desejar junto, não há lugar, ao menos a priori, para

36

E. Landowski, “En deça ou au-delà des stratégies, la présende contagieuse”. In E.Landowski, Passion

son nom. Essais de sócio-sémiotique III, Paris, Presses Universitaires de France, 2004.

37

Ibidem, p. 9 38

(34)

julgamentos estéticos ou avaliações comparativas. É algo imperativo, irremediável e absolutamente imediato. Como na Teogonia de Hesíodo, que descreve Eros como o mais belo dos imortais, capaz de subjugar corações triunfando sobre o “bom senso” (grifo nosso)39.

Desta feita, no presente estudo, o termo desejo aponta uma modalidade de tendência (ou de querer) manifestada entre dois corpos-sujeitos que assim se fazem presentes um ao outro, associada à fruição de um estado afetivo da ordem do gozo, do prazer sexual40, que, por essas características tem sido bastante explorada nas várias mídias com seus distintos formatos. Esse gozo, esse prazer é a intencionalidade almejada pelos construtores de linguagens, como mostra Yvana Fechine em suas análises da produção de sent ido na televisão41 e Ana Claudia de Oliveira nas análises da mídia impressa.42 Tal noção implica intersubjetividade, e este é o ponto central das análises dos anúncios selecionados.

2.4.1 Olhar e ser olhado

It's not the pale moon that excites me, That thrills and delights me, oh, no… It's just the nearness of you.

It isn't your sweet conversation That brings this sensation, oh, no… It's just the nearness of you

(Hoagy Carmichael)

Através do discurso publicitário, o consumidor é convidado a entrar em contato com os produtos anunciados e a assumir uma postura comprometida com os simulacros encenados. Um anúncio que traz a imagem de uma jovem olhando um produto qualquer, por exemplo uma jóia, ou um perfume, figurativiza tanto o simulacro do usuário do produto quanto o sujeito do enunciado que, ao desejar o produto, presentifica-se. Sendo o que for que o produto apresente de sedutor, o consumidor

39 P. Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993.

40 A noção aqui adotada para o termo desejo deve-se, em grande parte, à contribuição da Profa. Dra. Yvana Fechine na banca de qualificação.

41

Y. Fechine. O sensível expandido: pressuposto para uma abordagem nas mídias. Caderno de Discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, São Paulo, 2005.

42

A. C. de Oliveira, O sabor de “O Sabor Pão de Açucar”, in Mídia Br. Livro da XII COMPOS. Porto Alegre, 2003, pp. 145-179.in André Lemos, Ângela Pryston, Juremir Machado da Silva e Simone Pereira de Sá (orgs.).

(35)

vislumbra na encenação a possibilidade de participar deste jogo, de fazer-se presente, de ser olhado e, de fato, isso acontece43. O insinuante flerte visual da modelo que encara seu espectador, possuída pelas sensações despertadas pelo produto, também presentifica o sujeito da enunciação, colocando-o na condição de objeto. Tal qual o produto no exemplo anterior, agora o sujeito objetivado é desejado. O foco não incide na determinação do simulacro construído, os reforços e as insinuações sexistas das representações caricatas que a publicidade promove. Na verdade, os esforços analíticos aqui subentendidos traduzem-se no processo que leva o sujeito a se reconhecer e a interagir com o simulacro.

Deve ficar claro que, na enunciação publicitária, o sujeito da enunciação é externo ao enunciado, ou seja, àquilo que se encerra na esfera do anúncio. Ele pode ser tanto o anunciante quanto o consumidor. No plano do anúncio propriamente dito, aparece a figura do sujeito do enunciado: uma modelo, um garoto propaganda, ou mesmo uma personalidade reconhecida, uma figura pública com certa notoriedade. O

sujeito da enunciação, uma vez confrontado com o sujeito do enunciado, é

compulsoriamente levado a presentificar-se, a reconhecer sua própria presença. Assume o papel de objeto do sujeito do enunciado. Logo, aquilo que o sujeito do enunciado olha é simulacro do sujeito da enunciação (objetivação do sujeito da enunciação).

Segundo Landowski, é recorrente nos anúncios publicitários a figurativização de corpos em estado de “possessão”. Esta mediatização dos sujeitos enquanto corpos possuídos, “comovidos”, é o simulacro mesmo da apreensão do objeto pelo destinatário. No núcleo de tal estratégia sexualizante, onde o estado do corpo que nos colocamos a observar é o do corpo desejante, insinuante, possuído uma vez que sensibilizado, opera a reciprocidade da condição estésica. Esta concupiscência mediatizada (figura 3), este prazer manifesto, é o gozo que os corpos-sujeitos nos enunciados publicitários conosco dividem, e no qual temos participação no momento em que somos interpelados. Conforme explica Landowski: “é a nós que todos esses corpos comovidos se ‘dão’, pois é diante de nós que eles se abandonam dessa maneira”

44 . 43 E. Landowski. Op.cit.. 44 Ibidem, p. 149.

(36)

Figura 3 – Corpo possuído

Chanel, Vogue 2004

Eis aqui, portanto, o fechamento de um circuito. A configuração mínima para deflagrar um impulso de natureza sexual entre sujeitos postos em relação está relacionada aos próprios estados de tais sujeitos, reconhecíveis enquanto corpos desejantes. Sua presença, e muito pouco mais. Contudo, como observa o próprio Landowski, algumas operações sintáticas do discurso publicitário envolvendo a presença de corpos levam às estruturas plásticas exauridas em sua dimensão erótica, meros corpos objetos, estetizados e que nos colocam em presença de não-sujeitos (figura 4). Estes corpos dissociados de seu estatuto erótico podem oferecer indícios da maneira através da qual a publicidade engendra um erotismo efetivo, justamente pela desarticulação entre presença e subjetividade que operam.

Esta visão objetivante, que parte de uma premissa mais sistemática, no sentido de acolher uma condição além do estatuto sexual daqueles corpos a que somos apresentados, pressupõe um regime de interação distinto do apontado acima. O anterior, observado instaurando-se entre corpos desejantes, confia, à volição libidinosa dos actantes, a operacionalidade da enunciação. Es te outro, suscitado por textos como o da figura 4, cuja encenação parece abrandar a temática sexual – que, de maneira diversa,

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