• Nenhum resultado encontrado

É imprescindível, para a deflagração de um sentido erótico minimamente sensível nos discursos, que se vincule, em alguma instância do enunciado, uma subjetividade a outra. Em outros termos, a circunstância basilar do surgimento do desejo é aquela instituída na co-presença. Contudo, não porque esta paridade torne operacional um jogo de sedução tipo ação-reação, em que um actante tome a iniciativa voluntária de investir insinuantemente sobre seu parceiro, que em seguida, despertado de sua inércia refratária, reagiria exibindo um comportamento libidinoso. Na verdade, anterior a qualquer estratégia desta natureza, o mecanismo aqui referido é o da reciprocidade imediata.

A apresentação de corpos desejantes nos textos visuais publicitários atende este pressuposto ao midiatizar, de uma forma mais explícita ou de outra mais sorrateira, o “espetáculo da intimidade” de actantes “exemplarmente desejáveis” 52. Nestes termos, invariavelmente, ao elegermos um objeto de estudo pautando-nos na construção sintática de isotopias sexuais, buscamos, em última análise, traçar um mapa destas estratégias articuladoras da intersubjetividade. Como observado por Landowski, a astúcia por trás de tais estratégias parece residir no inviabilizar da identificação dos papéis e das responsabilidades dos actantes construídos pelo discurso publicitário, o que implica que esta dialética fundadora do desejo é resultado tanto da manifestação de certos traços legíveis por parte do objeto apreendido quanto do reconhecimento “empreendido” destes traços por um sujeito- leitor. A responsabilidade por este jogo de sedução não pode ser atribuída arbitrariamente a um dos actantes; pressuposta no galanteio do sedutor, está a libido do seduzido.

52

A reciprocidade do desejo

Alguns anúncios publicitários figurativizam ambos os actantes desta dialética do desejo. A representação do erotismo (figura 1), encerrado num enunciado sincrético (visual e verbal) pode traduzir sinteticamente a promessa ao enunciatário de um gozo possível. A lubricidade dos actantes, os espasmos musculares, a tensão das fisionomias e o contorcer dos corpos dão a dimensão do arrebatamento dos sujeitos do enunciado pelo produto anunciado. É prática prosaica da publicidade apresentar ao seu destinatário a encenação da experiência que acompanha a aquisição dos produtos. Neste sentido, os anúncios mostram-se atentos à suscetibilidade de seus interlocutores às demonstrações do êxtase alheio. Por identificação com os simulacros construídos, somos levados a antecipar tais estados de êxtase encenados como se fossem já experimentados, o que de fato depende, em última análise, da posse do produto.

Figura 1 – Erotismo e reciprocidade

Dolce & Gabbana, Vo gue, 2004

No anúncio da figura 1, podemos observar uma transitoriedade dos estados sensíveis dos corpos figurativizados. Sensibilizando-se reciprocamente em ato, ambos

os actantes encontram no contato de seus corpos o “não-vetor” de que depende o desejo. Eles se entregam sensualmente um ao outro, indiferentes (ou mesmo cientes) aos olhares indiscretos de um terceiro actante, o sujeito da enunciação, a quem oferecem o espetáculo de suas intimidades. A hipótese plausível de se saberem olhados revela suas pulsões exibicionistas na exata medida em que surpreende o enunciatário no exercício de um voyeurismo enunciativo. Contudo, este triângulo virtual, implícito no arranjo dos actantes, não é deflagrado no próprio enunciado por um simulacro de embreagem entre o sujeito da enunciação e os sujeitos do enunciado, e tampouco convoca de maneira categórica a presença do enunciatário.

O enunciatário surpreendido

No exemplo a seguir, da figura 2, observamos uma mudança significativa no arranjo plástico dos actantes. A jovem em primeiro plano, que se entrega passiva aos carinhos de seu parceiro, já não se contenta com a demonstração de interesse deste. Ela encara o enunciatário, presentificando-o ao romper a surdina da enunciação, que no exemplo anterior estava somente pressuposta. Ela está certamente ciente de ser observada, e aceita este interessado olhar. Apática aos encantos de seu parceiro sem face no enunciado, mas autorizando suas investidas, a alva coquete acena para este pretendente revelado pelo seu olhar com um torturante convite que não pode ser atendido. Nesta configuração, os três actantes se posicionam sobre uma mesma linha perpendicular ao plano da fotografia, como se objetivassem – por julgarem possível – cruzar as imposições actanciais do enunciado formalizado na página impressa. Tanto o enunciatário quanto o parceiro sem rosto concorrem pela jovem. Mas sobre o enunciatário, circunscrito em seu papel actancial, incide a provocação mais frustrante. Sussurra- lhe a jovem: “este poderia ser você...”

Figura 2 – O triângulo amoroso

Jean Paul Gaultier, Vogue, 2004

A reciprocidade entre os actantes, enunciada de maneira bastante sofisticada num intrincado jogo cênico e de olhares nas figuras 1 e 2, e que é condição para o arranjo da relação no plano do desejo, pode ser figurativizada através de estratégias enunciativas menos sutis e, na mesma medida, mais explícitas do que concordamos chamar de manifestações da sexualidade. Na figura 3, a sutileza de um erotismo insinuado e o jogo delicado dos olhares dão lugar a uma expressão mais incisiva da isotopia sexual.

O ato consumado

No nível discursivo da figura 3, observamos um homem e três mulheres entretidos numa simulação bastante detalhada de uma prática sexual grupal. Porém, a tematização do comportamento sexual grupal não é necessariamente o elemento mais

perturbador53 desta curiosa imagem. O aspecto que parece torná-la tão incomum situa-se em seu nível narrativo, e se refere ao objeto de valor “virilidade”.

Figura 3 – O “super-amante”

Diesel, Elle, 2006

Ao contrário de outras imagens eminentemente eróticas, esta traz figurativizada de forma quase explícita a sanção ao sujeito do enunciado (o intercurso sexual obtido) que está em conjunção com o objeto de valor (o grupo de mulheres) através do objeto modal (o “poder ser” pelo uso da calça da marca Diesel). A conjunção carnal dos actantes efetiva seu estatuto de sujeitos desejantes através do ato sexual em

53

Segundo Landowski, “(...) não é por acaso que as estratégias de persuasão, ou melhor, de sedução publicitária privilegiam com tanta freqüência o espetáculo da intimidade: trata-se de presentificar estados de “possessão”, ou, ao menos, se a expressão parecer exagerada, de atrair nosso olhar e de tocar nossa sensibilidade recorrendo ao que talvez seja, intersubjetivamente, o mais “perturbador”, isto é, precisamente mediante a evidenciação da perturbação reconhecível no outro quando ele se sente como puro e simples corpo, inteiramente absorvido pela natureza imediata, efetiva ou fantasmática, do objeto, qualquer que seja a natureza deste”.

si, não na eminência dele. Esta forma de erotismo, inexoravelmente consumada, situa-se além (ou aquém) daquelas estratégias discursivas que operam através de um desejo recíproco e em ato. A imagem do conquistador viril consumando o ato sexual com suas parceiras não é necessariamente da ordem da sugestão de um comportamento lascivo, o que compromete aquele caráter dúbio da reciprocidade anteriormente observada, justamente a astuciosa indistinção entre provocador e provocado. Em certo sentido, é como se a imagem prescindisse, para a instauração de uma gramática do sexual, da libido até agora fundamental manifestada pelo enunciatário: ela se resolve em si. É curioso observar que tal “isolamento” se manifeste justamente na imagem onde a temática sexual é mais evidente, aquela que há pouco apontamos como da ordem do perturbador.

Essa ruptura sintática daquele erotismo que havíamos identificado nos casos anteriores indica uma mudança no programa narrativo das imagens que, a priori, diz respeito ao grau de erotização das imagens, seu caráter mais ou menos explícito e sua “responsabilidade” no sexualizar da interação. Contudo, é um indicativo ainda mais patente da existência de um estatuto actancial do desejo, regido pela noção das presenças convocadas no ato da significação dos enunciados, ou seja, pela forma como enunciatário e demais actantes são presentificados semioticamente. Invariavelmente, estes simulacros se constroem na encenação remissiva ao êxtase, guardando diferenças entre si que variam pela forma como os actantes são presentificados.

Documentos relacionados