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O melhor momento do amor é quando o amante está indo embora de táxi.

(Michel Foucault)

O corpo objeto

Nas relações intersubjetivas que vivenciamos no seio da sociedade de consumo (alvo derradeiro e canhestro da crítica contemporânea ao capitalismo de mercado), o estatuto que opera – no que diz respeito à construção da noção do que é ou não desejável – é, de certa forma e parcialmente, o da adequação a preceitos culturais de ordem estética. Regras, tendências, modelos e princípios são cunhados no desenrolar da estética sobre a cultura. O ambiente é fértil e ávido por tais referências, porém movediço. Em tempos de turbo-capitalismo, de acirramento da concorrência, de necessidade de fluxo de caixa e de novidade, a única constante estética é a certeza da efemeridade. E quanto mais inalcançável o padrão vigente, menor o número de indivíduos em adequação a ele. Neste panorama, destacam-se os que efetuam a melhor (re)construção do simulacro de si mesmos, com base nas referências em voga. Todos os louros aos que, de uma forma ou de outra, acompanham tais mudanças.

Estes preceitos ou valores, de toda sorte e nem sempre tangíveis, podem ser verificados tanto nas expressões artísticas contemporâneas47 quanto em manifestações mais pragmáticas da verve humana, como a publicidade e a moda. O que parece certo é que tais referências são indicadores indeléveis de um código estético imperativo e

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E. Landowski. Op. cit. p. 161. 46

A. C. de Oliveira, “As interações na Arte Contemporânea” in Galáxia, São Paulo, v. 4, p. 33-65, 2002. 47

O que, a rigor, não perfaz uma especificidade da sociedade capitalista, e sim um fenômeno e xtemporâneo, verificável na antiguidade, no renascimento, e mesmo nas experimentações menos prosaicas da modernidade, épocas em que algumas partes do corpo, certas medidas, ou mesmo certa atitude consideradas “atraentes” eram representadas.

articulador da intersubjetividade. Curioso que, isto posto, possamos reconhecer uma dimensão cultural na sintaxe do belo, do sedutor e do que é considerado atraente, aquilo que, em última análise e de forma inextricável condiciona, narrativamente falando, as estratégias de manipulação de que se valem os sujeitos. Reconhecida tal “gramática do belo ”, as estratégias de adequação e de “transformação programada do corpo próprio em imagem para o outro, em ‘corpo-objeto’” 48 podem ser subsumidas em estratégias de “sedução” do outro, o que parece bastante razoável. Mas, como colocado acima, é um estatuto que opera parcialmente.

Este universo imagético rege, ao menos de maneira parcial, os comportamentos dos corpos em seus percursos narrativos em busca da conjunção com seus objetos de desejo. Além disso, nos termos de suas implicações intersubjetivas, é o que dá origem ao modelo cultural do “desejável”. Ou seja, um padrão sintático visual de natureza cognitiva que condiciona o desejo e a atração sexual, que pode ser objetivamente examinado nos termos das estratégias de sedução da sintaxe narrativa, cujo objeto de valor posto em jogo parece ser a atratividade ela mesma. Entretanto, parcial como é, este viés cognitivo das relações interactanciais da ordem do desejo guarda um distanciamento perigosamente determinista daquilo que de fato a pouco apontávamos como o aspecto mais decisivo do erotismo: a intersubjetividade. Apontar um anúncio, uma imagem, um discurso como da ordem do erótico corresponde a identificar na figuratividade dada um arranjo mínimo de dois actantes sujeitos, que é a hipótese sustentada por esta dissertação.

O corpo sujeito

Para caracterizar aquilo que definíramos como da ordem do erótico, fez-se necessário anteriormente recorrer ao regime da união, buscando dar conta da dimensão estésica da interação entre dois sujeitos, ou seja, dos efeitos de sentido captados por sujeitos desejantes, emanações somente percebidas no sentir junto, não no fazer manipulador do sujeito sobre o corpo objeto49.

Admitir que todo anúncio, oferecido como texto ao nosso descomprometido fazer interpretativo, nos faz sentir antes mesmo que venha a nos fazer processá- lo, tal

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E. Landowski, Op. cit., p. 15. 49

qual mostra Oliveira, no ato do leitor, que tem diante de si, de seu corpo, e não somente diante dos olhos, o jornal50, é assentar o princípio fundamental para uma semiotização do erotismo na publicidade. Isto porque, a partir do próximo capítulo, investir emos justamente na procura das formas com as quais estes corpos instrumentalizam um simulacro erótico. Entretanto, mais do que examinar a maneira como os simulacros do enunciador e do enunciatário, por exemplo, são construídos, ou mesmo que estratégias enunciativas estão colocadas em jogo no texto, o presente estudo, diante dos anúncios publicitários aqui selecionados, volta-se à semiotização de como somos levados a interagir com estes simulacros e como nos posicionamos ao significá-los. Em outras palavras, que efeitos de sentido são despertados numa encenação erótica em que o corpo propriamente dito não é dado a ver.

Ao lidar com os simulacros publicitários, lidamos, sobretudo e inicialmente, com as presenças significantes que estes nos trazem. O corpo no anúncio é, irredutivelmente, uma manifestação significante em si, e a manutenção deste corpo, deste efeito de subjetividade (da qual depende o sentido erótico) garante um simulacro de presença. É nesta astuciosa premissa que os anúncios parecem se apoiar. Segundo Merleau-Ponty

Um espetáculo tem para mim uma significação sexual não quando me represento, mesmo confusamente, sua relação possível aos órgãos sexuais ou aos estados de prazer, mas quando ele existe para meu corpo, para essa potência sempre prestes a armar os estímulos dados em uma situação erótica, e a ajustar a ela uma conduta sexual.51

Objetivamos, na fotografia publicitária, tratar dessa situação erótica criada no ato relacional com o destinatário, resultante da mesma série de eventos estésicos. Os corpos figurativizados são para ser vistos porque vêem, ou deixam a entender que o fazem: convocam o enunciatário, presentificando ele mesmo enquanto corpo desejante.

O programa narrativo de um anúncio publicitário em que o corpo sujeito, presente e significante, se coloca como corpo-desejante, pode ser erigido através de

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A. C. de Oliveira, “A dupla expressão da identidade do jornal”. In Caderno de textos do GT Produção

de sentido nas mídias, Curitiba, v. 1, n. 1, 2006.

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inúmeras estratégias enunciativas. Uma delas, bastante recorrente, diz respeito às combinações sintáticas no plano da expressão que convocam as ordens sensoriais figurativizando o simulacro daquilo a que o enunciador é suscetível. Nos anúncios analisados no capítulo três, observamos corpos invariavelmente adequados a padrões estéticos rígidos e exemplares. Entretanto, na ausência desta figuratividade autêntica, simulacros de toda sorte são construídos, e o que parece garantir a manutenção do erotismo é justamente o sentido de intersubjetividade que é despertado no e pelo texto. Tal investigação requer tanto uma abordagem narrativa do regime da junção como do regime da união, e é esta complexidade da publicidade que nos faz pôr a prova a eficácia da ampliação da gramática narrativa de Landowski.

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DE SIMULACROS DE PRESENÇA À ASÊNCIA ERÓTICA

Pessoalmente, nada tenho a confessar sobre sexo, além do fato de que o pratico quando tenho vontade, quase sempre com outra pessoa.

(Fernando Gabeira)

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