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APRESENTAÇÃO E AUTOAPRESENTAÇÃO DOS PESQUISADOS: – “POBRE, EU? ”

EM CONTEXTOS DE POBREZA

4 APRESENTAÇÃO E AUTOAPRESENTAÇÃO DOS PESQUISADOS: – “POBRE, EU? ”

Dos 417 questionários aplicados, 50,4% foram em área urbana e os demais em área rural. Do total, 54,7% eram adultos, sendo predomi- nantemente mulheres (71,7%), e casados(as) (48,2%). No tocante a ter alguém na família como benefi ciário de programa de transferência de renda do governo, sobretudo do Programa Bolsa Família (BF), obser- vou-se que, dos 415 questionários respondidos neste item, 61,4% ates- taram receber algum tipo de benefício e 38,1% informaram não serem benefi ciários de nenhuma assistência. Programas como Bolsa Família são as únicas fontes de renda para muitas famílias, como se depreende da fala de um participante quando diz: “Eu escuto muita gente dizer as- sim: amanhã eu faço o meu último quilo de arroz e ainda “falta” dois dias pro Bolsa Família, e só depende mesmo do Bolsa Família” (GF AR 3).

3 Para ampliar a compreensão a respeito da Análise do Discurso ler: Caragnato, R. C. A. & Mutti, R. (2006) Pesquisa Qualitativa: Análise do Discurso versus Análise de Conteúdo.

No tocante ao trabalho e renda, quando perguntados sobre traba- lho remunerado, 416 respostas foram consideradas válidas. Destas, 232 (55,6%) sustentaram não ter nenhum tipo de trabalho remunerado e 184 (44,1%) afi rmaram possuir trabalho remunerado. De um universo de 412 respostas válidas, referentes à renda pessoal: 104 (24,9%) infor- maram possuir uma renda inferior a R$ 85,00 naquele último ano, en- contrando-se, assim, na faixa de extrema pobreza. 225 (54,6%) possuíam uma renda pessoal superior a R$ 85,00 e inferior a um Salário Mínimo (SM). Quanto à renda familiar, foram validadas 407 respostas, sendo que, destas, cinco (1,2%) admitiram não ter rendimentos e 93 (22,3%) informaram ter um rendimento familiar inferior a um SM. 216 (51,8%) possuíam uma renda familiar entre um e dois SM. O desemprego, a falta de renda e a carência alimentar podem ser expressos na fala da partici- pante de um GF:

[...] e ela disse que sentia muito, que quando chegava em casa ao meio dia e a fi lha dela queria almoçar e ela não tinha nada pra dar, não tinha nada; o marido dela tinha coragem pra sair pra trabalhar, mas lá não tem, assim [...] hoje, uma pessoa pode pagar um dia de serviço, e não tinha [...] e ela disse que não tinha nada, nada (GF AU 3).

Sobre os aspectos subjetivos da pobreza, de 416 respostas válidas, 155 (37,2%) se reconheceram como pobres; 15 (3,6%) se consideraram ricas; e 246 (59%) se declararam nem ricas e nem pobres, como se vê na Figura 1. Alguns chegaram mesmo a afi rmar que são ricas da graça de Deus ou que não são pobres, já que possuíam uma casa e tinham alimentação.

Quanto à percepção das pessoas a respeito da pobreza, identifi ca-se o caráter polissêmico do conceito, ao se atribuir à pobreza conceitos mo- rais ou subjetivos, o que pode levar a uma valorização do ser pobre. Da mesma forma, a riqueza enquanto capacidade mínima de ter um teto ou a alimentação básica. Em algumas falas, os entrevistados expressavam que eram ricos em algum sentido, ao mesmo tempo em que também

reconheciam a pobreza como uma forma de negação de atributos, ou de valores morais, como se pode depreender da fala de um participante de um GF: “quando não é pobre de dinheiro, é pobre de pensamento, é pobre de atitude, né?” (GF AR 1).

Alguns participantes dos GF primeiramente se reconhecem como ricos, depois expressam no discurso o conceito que têm de pobreza e, reconhecendo sua posição, buscam compensar com um atributo positi- vo, ou com a reprodução de um discurso fatalista, como na fala a seguir:

Eu me considero rica de espírito (certo!) mas, humanamente falando, acho que eu... tem pessoas mais pobre do que eu, tem pessoas que num tem nem o que visti. Porque eu, eu, tem pessoas pobres que às vezes almoçam, mais num janta, tem gente que janta mais num merenda. E nós temos que agradecer a Deus, por todos os dias, não é muito bom. Tem dia, tem dia na minha casa, eu num vou mentir porque Deus tá veno, que eu não tenho o café da manhã e às vezes não tem o pão, mas às vezes tem o café, tem uma farinhazinha, boto

Figura 1: Dados quantitativos da pobreza

um pouquinho ali, apesar de eu num puder nem comer farinha, né! Mais eu boto uma coisinha ali. Aí, minha neta reclama: – Ai, que casa pobre, eu tumara já arranjar um emprego, pra mim ter... comer bem, morar bem. Eu digo: minha fi lha mais confi e no Senhor, confi e em Deus, que tudo tá nas mãos dele. Deus está no comando de tudo, minha gente. Num cai uma folha se ele num permitir, tá no comando dele, então agradeça a Deus se você tiver um feijão, bote no fogo e agradeça que a mais tarde, pode vim um arroz, pode vim, ter um ovo, agradeça você ter um ovo, amanhã tá mior. Pense em dias melhores, samos pobres sim mas temos..., eu tenho esperança de viver melhor (GF AU 2).

Ademais, o discurso da participante do GF traz um paradoxo. Ele diz uma coisa, ao mesmo tempo que fala de outra, numa linguagem coloquial, pois quando diz que é rica de espírito, está implicitamente falando que é pobre no âmbito de uma realidade material. Podemos questionar o lugar de onde discursa essa pessoa e qual a posição social dela. Podemos inferir que se trata da fala que representa o não poder. A fala de uma pessoa que não detém nenhum tipo de poder, de auto- ridade, baseando tudo em um poder divino, a partir de uma visão fa- talista. Considerando a perspectiva fatalista, como em Cidade (2012), enquanto processo psicossocial que contribui para uma deturpação da realidade, fazendo com que o sujeito em condições de pobreza acate a sua condição como algo previamente defi nido, mas que, complemen- tarmente, no plano individual, a compreensão se dá “deformando o fato e o restringindo a unidades de análise suportáveis para o indivíduo” (p. 113). E ainda: que essa consciência da privação não passa despercebida e que pode ser expressa de forma silenciosa ou não (Cidade, 2012). Nesse sentido, o fatalismo talvez justifi que porque 59% dos respondentes se defi nam como nem ricos nem pobres. Na fala a seguir, uma participante do GF relata: “Eu me considero uma pessoa média. Não sou pobre nem sou rica. Eu me considero razoável. O que é razoável? É um médio” (GF AU 1); ou ainda: “Nem sou rica, nem sou muito pobre também. Mas sou rica da graça de Deus. Porque quando você existe, Deus deu um coração, você resiste tudo” (GF AU 1).

Salientamos que 3,6% dos respondentes se consideraram ricos, o que nos leva a refl etir a respeito da natureza da riqueza à qual essas pessoas estão se referindo, como se pode ver expresso na fala de um participante do GF: “A gente pode dizer que é rico também da graça de Deus, porque a gente, tendo Deus na nossa vida, a gente consegue passar por tudo” (GF AU 1).

Entendemos, em suplemento, que o não reconhecimento de sua posição social se apresenta como resultado de um processo ideológico de “uso de formas simbólicas de criar ou reproduzir relações de domi- nação, isto é, relações assimétricas, desiguais, injustas” (Guareschi, 2013, p. 156), que legitimam e reproduzem a exclusão, própria do capitalismo. A exclusão do conhecimento de sua condição de explorado, por parte de uma grande maioria pobre, é uma determinação que impede de ques- tionar a ordem estabelecida. A negação se apresenta, em parte, como processo compensatório, ao mesmo tempo alienado e fatalista. Frente ao sofrimento, a negação pode estar aquebrantada pela culpa, pois, ideolo- gicamente, é enfatizada a responsabilidade do indivíduo por seu fracas- so. Como explicitado por Guareschi (2013), a nossa sociedade, ao mes- mo tempo em que legitima quem vence, degrada o vencido, o excluído. A partir dessa concepção de pobreza, enquanto processo social e econômico de exclusão inerente à sociedade capitalista, passamos à análise das categorias de humilhação e de vergonha, enquanto ações e sentimentos vivenciados cotidianamente pelas pessoas nessa condição.