• Nenhum resultado encontrado

EM CONTEXTOS DE POBREZA

5 VIVÊNCIAS DE HUMILHAÇÃO

A humilhação gera constrangimento e vergonha. O falar sobre esses fatos vem carregado de emoção ao relembrar situações dolorosas de humilhação que ao longo da vida vão constituindo sua identidade. Como no relato de participante do GF, que expressa como se sentiu pela humilhação sofrida em lojas e supermercados, pelo olhar vigilante, suspeitando de seu comportamento:

Acho que é a questão de achar que a pessoa vai roubar, né? Porque não pode entrar ali só pra ir comprar alguma coisa, ou pesquisar al- guma coisa, eles imagina que você vai roubar. Você tem que deixar o que você tiver lá no balcão, até o guarda-chuva você tem que deixar lá no balcão, você não pode entrar com ele... (GF AU 1).

De fato, a abordagem do tema é de certa complexidade porque en- volve afetos, sofrimento individual ou coletivo, direitos, regras e expec- tativas morais. Harkot-de-la-Taille (1999) defende que o mais espe- cífi co da humilhação é que, além do rebaixamento, existe a busca para anular os aspectos simbólicos e de reconhecimento da boa imagem que o sujeito tem de si mesmo, de sua identidade de sujeito. A humilhação é uma ação violenta, porque visa a “deslegitimação de grande parte, senão da totalidade, do universo simbólico subjacente a esse objeto-valor para o sujeito” (Harkot-de-la-Taille, 1999, p. 37).

No relato de um participante de GF, observa-se a não aceitação da humilhação que o outro pode lhe impor, não aceitando o rebaixamento moral e mantendo sua dignidade e honra. Sobre essa exigência do res- peito à dignidade, Lopreato (2005, p. 248) diz que “signifi ca recusar-se em pactuar com o rebaixamento provocado por um acontecimento de humilhação. Quando a dignidade é afrontada, a honra é afetada”.

E, aquele que tinha poder mais do que a gente, a gente fazia um jeito de não ocupar muito que era pra não ser discriminado por ele, porque podia discriminar, se ele desconfi asse que a gente pode achar que me- rece, né? pode ser discriminado, não é? Por que aí o pobre, é o quê? O pobre pode ser discriminado, aí vai ver a razão, mas vai ver não tem. Porque, ele acha que o outro é mais poderoso do que ele e fi ca humi- lhado [...]. Não, pra mim, eu nunca passei por essa não (GF AR 1).

Nessa perspectiva, é importante lembrar que a capacidade de se contrapor a uma humilhação pode ser aprendida. Segundo Lopreato (2005),

[...] honra é o respeito de si, afi rmação de si, e interessa ao ser, mas também ao querer e ao agir. Resistir à submissão, dizer não às formas

de opressão, revoltar-se: é fazer triunfar a identidade pessoal [...]. É a arte de se fazer respeitar (p. 250).

Na pesquisa, procurou-se saber sobre as vivências discriminatórias no dia a dia das pessoas, a partir da aplicação da Escala de Experiência Externa de Humilhação (Zavaleta, 2007), pedindo que apontassem a frequência em que se sentiram humilhadas em determinados locais. Os resultados indicam (Tabela 1) que foi nos serviços de saúde que se apre- sentou o maior percentual (48%) de pessoas que apontaram sentir-se humilhadas quando procuraram ou foram atendidas por esses serviços. Tal realidade pode estar relacionada à precariedade nos atendimentos dos serviços de saúde, assistência social e transporte. Moura Jr. (2015) explicita como as pessoas pobres se sentem humilhadas pelas instituições públicas, em vários espaços de convivência e por diversos motivos, o que pode levar a uma internalização da dominação e uma sensação geral de inferioridade e incapacidade. Ademais, essa impotência gerada pela hu- milhação e vergonha pode comprometer o potencial de funcionamento da pessoa em pobreza. De forma que essas “características psicológicas são instrumentos de manutenção de uma realidade social de dominação, funcionando como bases para as condições sociais de degradação e de esvaziamento de espaços de exercícios de poder” (Moura Jr., 2015, p. 155). Em segundo lugar, foi na família que 42% dos entrevistados se sentiu humilhado, seguido de trabalho (35%), escola (32,3%), transpor- te (31%), espaço público (25,1%), Banco (18,3%), Shopping, comércio, supermercado (17,1%), polícia/sistema judiciário (14,1%), Igreja/espaço religioso (11,2%), Serviços Sociais (10,5%) e Restaurantes (9,6%). O alto percentual em locais de convivência mais frequentes, como a fa- mília, o trabalho e a escola, confi rma que nas relações mais próximas podem estar presentes, de forma signifi cativa, as humilhações domesti- cadas (La Taille, 2004).

Tabela 1: Frequência da Humilhação

Locais/Espaços da Humilhação Frequência (%)

Serviços de saúde 48 Família 42 Trabalho 35 Escola 32,3 Transporte 31 Espaço público 25,1 Banco 18,3

Shopping, comércio, supermercado 17,1

Polícia/sistema judiciário 14,1

Igreja/espaço religioso 11,2

Serviços sociais 10

Restaurantes 9,6

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Além disso, seguindo o raciocínio de Feitosa, Rivera, Camboim e Santos (2012), todas as relações sociais são relações de dominação, cujos elementos simbólicos são tão importantes quanto os elementos econô- micos e “estão relacionadas com as experiências com pares de iguais, patrões, parceiros, ou seja, as mais diversas formas de relacionamento que se fundamentam em subordinação e dominação” (p. 206). Nesse sentido, as humilhações externas provavelmente acontecem de forma velada e sistemática nos espaços e nas relações cotidianas. O reconheci- mento dessa relação cotidiana atravessada pela prática de humilhação, talvez seja a mais difícil de reconhecer e expressar.

Várias situações de humilhações foram relatadas pelos participantes em locais como lojas e supermercados, como na fala de um participante do GF:

É, o olhar, assim o gerente, sabe... o fi scal. Aí teve um dia que eu tava na Americanas, né, aí comprei um, um cartãozinho, né, de namorada, né, aí botei aqui no bolso, né, porque não queria fi car segurando na mão, né. Aí pensou que eu queria roubar, né. Eu me sinto mal, né... (GF AU 1)

A sensação de a pessoa se sentir exposta pode gerar um senso de rebaixamento, por se sentir olhado, vigiado, invadido em sua privacida- de. Também por se sentir inadequado em um espaço que não costuma frequentar, ou que, acredita, não está vestido de forma apropriada, o que gera a vergonha. As ocorrências negativas anteriores, como ser vítima de desconfi ança por parte dos “seguranças” em lojas e ser vigiado, dentre outras, se constituem violências que podem alterar a relação daquela pessoa com o local, podendo também infl uenciar a percepção em even- tos futuros. Os episódios negativos de humilhação nesses locais foram os mais relatadas pelos participantes, demonstrando que é menos dolo- roso falar de humilhações sofridas por parte de pessoas com as quais não se tem vínculo, provavelmente pela reação de revolta e não aceitação da ação de rebaixamento, do que expressar humilhações da parte de pessoas signifi cativas, como familiares.

Na Escala de Experiência Externa de Humilhação (Zavaleta, 2007), relacionada aos motivos para a humilhação (Tabela 2), temos que 22,8% indicaram que foram humilhados por sua renda e 22,3% se sentiram humilhados em função do seu bairro/comunidade. Em con- sonância, nos GF, foram relatadas situações de humilhação devido ao bairro/comunidade, por ser considerado pela opinião pública em geral como violento, o que chega até mesmo a prejudicar os moradores em entrevistas de emprego.

Tabela 2: Motivos da Humilhação

Motivo da Humilhação Frequência (%)

Cor ou etnia 12,30

Comunidade 22,30

Gênero 13,40

Orientação sexual 4,50

Idade 11,20

Alguma defi ciência 8,50

Alguma doença 12,70

Religião 17,50

Renda 22,80

Escolaridade 18,60

Outro 25,70

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Sawaia (2013, p. 75) também relata que as pessoas pobres, quando moram em determinadas comunidades, “preferem dissimular o nome do seu bairro porque se sentem humilhadas ao serem igualadas a pessoas cujo descrédito é do conhecimento de todos”. Essa discriminação foi expressa por uma participante do GF:

A gente sente, né, é discriminado, é discriminado! Né? As vez, a pes- soa: – “Não, você mora aonde?” –No BJ. – “Vixe”, aquele bairro! [...]. Aí né? Mais, você tem fé. – É lá mermo que eu moro, quem tiver, né, as suas pessoas que agride, as violência né? Mais é lá mesmo que eu moro. Quer dizer, é aqui mermo que eu moro (GF AU 2).

Na Escala de Experiência Externa de Humilhação procurou-se identifi car os prejuízos advindos da renda. A frequência nos mostra que 77,5% indicaram que a renda prejudicou em ser atendido nos serviços públicos; 66,7 % que a sua renda prejudicou em conseguir emprego;

49,9% em entrar na escola; e 76,7% prejudicou em entrar na universida- de. Vale salientar que, além desses prejuízos, é possível também que os eventos de humilhação possam interferir na permanência dos sujeitos no sistema formal de ensino ou em empregos. Moura Jr. (2015) de- monstra como a posição de submissão proveniente da pobreza e da hu- milhação gera o sentimento de vergonha e de uma avaliação pessoal de fracasso que podem levar ao distanciamento de relações que, justamente, poderiam se constituir em práticas e aprendizados emancipatórios.

A humilhação que ocorre no âmbito da realidade de pobreza, se- gundo Góis (2012), afeta a saúde e pode ser importante componente em problemas sociais como analfabetismo, desemprego, diminuição da expectativa de vida dos jovens, abandono, trabalho infantil, prostituição, violência social e doméstica, e alcoolismo. E é desse lugar que se origina o que Góis (2012) designa de distresse da pobreza, um estresse crônico da população pobre que está na condição de oprimido, ordem essa que pode socialmente ser geradora de vergonha.