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2. Escola Indígena: conquistas e desafios

2.2 O CONTEXTO BAKAIRI: A APROPRIAÇÃO DA IDEIA DE ‘CULTURA’ E A

2.2.1 A apropriação da ‘cultura’ pelos Bakairi

A partir de 1970, intensificam-se as discussões acerca da defesa dos territórios e o respeito à diversidade. Nesse período, inicia-se, por parte da FUNAI, uma preocupação com a realidade cultural dos índios. Com isso antropólogos e indigenistas participaram de equipes responsáveis pelo planejamento, execução e acompanhamento dos projetos (FERREIRA, 2001; COLLET, 2006; ALBUQUERQUE, 2007).

Nesse período, residia entre os Bakairi a antropóloga e socióloga21 Edir Pina de Barros, esposa do Chefe de Posto. Foi deles que os Bakairi ouviram pela primeira vez o assunto sobre ‘cultura’. Em um extenso período de convivência e de pesquisa, Edir Pina de Barros produz sua dissertação de mestrado “Kurâ Bakairi/Kurâ Karaiwa: dois mundos em confronto” e sua tese de doutorado “História e cosmologia na organização social de um povo karib: os Bakairi”. Uma versão revista e atualizada de sua tese, defendida em 1992, é publicada no livro “Os filhos do Sol” (BARROS, 2003). Melatti (2003), ao fazer a apresentação deste livro, faz a seguinte afirmação:

[...] Somente nos anos de 1970 os Bakairi começaram a reverter a situação, libertando-se da intensa interferência dos empresários, funcionários e missionários. E Edir, que testemunhou, quando não assessorou, todo esse movimento de reconquista da direção de suas vidas e do controle de suas terras, pôde nos brindar com este magnífico retrato, não do retorno dos Bakairi às suas antigas tradições, que afinal nunca abandonaram, mas de revitalização daqueles aspectos culturais que se mantinham reprimidos ou latentes e de sal reformulação em moldes condizentes com os novos desafios que se vislumbram no século que se inicia. (MELATTI, 2003, p... ).

Collet (2006) considera que a ideia sobre cultura foi introduzida como um ‘ensinamento’ vindo dos pesquisadores e como uma necessidade e condição fundamental de ‘serem índios’ e poderem ‘ser respeitados’ enquanto tais. A ‘cultura’ foi introduzida como um “[...] instrumento a ser dominado a fim de que pudessem levar adiante o processo pela garantia de seus direitos, principalmente à terra e à ‘ajuda’ do governo.” (COLLET, 2006, p. 239). Se a categoria ‘índio’, inicialmente, na época do SPI tinha uma conotação negativa, de necessária extinção; passou, após a introdução do conceito de ‘cultura’, a ser um sinal positivo, pois através dela poderia se esperar benefícios necessários a sua sobrevivência.

Assim apropriação do conceito de ‘cultura’ e a consequente identificação dos Bakairi como ‘índios verdadeiros’ ocorreram através dos rituais, danças e cantos. Assim, nesse período, não apenas foi valorizada a identificação com sua ‘indianidade’, mas, sob pena de sofrerem perdas, eram forçados a assumi-la.

[...] ‘Cultura’, então, surge entre os Bakairi como parte de um movimento político de conquista de seus direitos enquanto povo diferenciado, que pressupõe o ‘branco’ como expectador e interlocutor. Desta forma, os rituais que anteriormente tinham um determinado significado sociocosmológico passaram a agregar outra dimensão: a afirmação da indianidade. (COLLET, 2006, p. 241).

Nesse contexto, aprenderam que, para terem vantagens nos projetos de valorização da

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Essa antropóloga e socióloga foi professora da Área Ciências Sociais e consultora no Polo IV Bakairi e Xavante - no Projeto Tucum.

diversidade, deveriam aprender os critérios que os karaiwas estabelecem para classificar índios e não índios. Aprenderam, então, que era indispensável ter uma ‘cultura’ própria e que isso significava fundamentalmente ter ‘rituais originais’ (COLLET, 2006, p. 241). Desta maneira, vários rituais foram ‘revitalizados’ e passaram a divulgar sua cultura para toda a região.

Nesse pensamento, a noção de ‘cultura baikairi’ corresponde a tudo aquilo que vem da ‘origem’ da sociedade bakaiki’, num período imutável vivido por seus antepassados. Assim, o marco divisor usado para definir o que é a ‘cultura bakairi’ é o contato com os ‘brancos’. Qualquer transformação pela qual os Bakairi tenham passado quando ainda não conheciam os ‘brancos’ não é levada em conta quando se fala em ‘origem’. O que se fazia antes do branco “[...] é considerado ‘cultura’, o que foi assimilado depois não mais seria [...]” (COLLET, 2006, p. 241 e 242).

Ao final de 1970, a mesma antropóloga inicia um movimento que se pretendia uma “[...] experiência educacional ‘realmente’ indígena em contraste com a educação escolar moldada sob a influência ‘externa’ [...]” (COLLET, 2006, p. 242). Nesse movimento, em vez “de salas de aulas, construíram na tasera (...) uma ‘casa tradicional bakairi’ [...]” (COLLET, 2006, p. 242). Em vez de conteúdos escolares do currículo nacional, propunha-se ensinar os chamados ‘saberes tradicionais’ que seriam repassados dos mais velhos aos mais jovens e, no lugar da escrita, a pintura corporal (COLLET, 2006). Essa noção de “cultura” foi progressivamente passando a ter lugar na vida bakairi e, em prosseguimento, também foram criadas as associações que tratavam do resgate cultural. A primeira, Associação Kurâ-Bakairi de Resgate Cultural (AKURAB), foi criada em 1992 e atualmente existem em torno22 de cinco associações na área indígena.

Novamente, repetindo o que havia ocorrido nos fins da década de 70, os Bakairi usaram aquilo que aprenderam a chamar de ‘cultura’ para mostrar para os ‘brancos’ que eles eram ‘índios’, e, assim, poderem desfrutar dos direitos previstos para a população indígena no Brasil. Mais uma vez aparecem a imprensa e as ‘apresentações culturais’ como instrumentos que levariam ao conhecimento do ‘branco’ o fato de que os índios bakairi não estão extintos, que continuam existindo ‘como índios’, isto é, preservando danças, cantos e outras características designadas por esses ‘brancos’ como definidoras do pertencimento à categoria ‘indígena’, englobadas pelo nome ‘cultura’. (COLLET, 2006, p. 243).

Tivemos a oportunidade de participar da assembleia de uma associação que estava em vias de institucionalização, a saber: Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Terra

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Indígena Bakairi. Na ocasião, fomos informados também de que as atividades da Associação das Mulheres Bakairi também estava iniciando.

Percebe-se com esse histórico que, inicialmente, as associações estavam mais voltadas ao resgate cultural. A partir desse resgate, tiveram acesso a benefícios proporcionados pelos órgãos oficiais. Todavia, mais atualmente, as associações trazem, por meio do discurso do ‘pequeno produtor’, o objetivo de produção, de angariar recursos por meio da agricultura para sustento da comunidade (ou família23) e aquisição dos bens desejados. Interessante observar a contradição entre o discurso e a prática, no que diz respeito às denominações de “pequeno produtor”. Na prática, tem sido instalada, atualmente, na Terra Indígena Bakairi (com apoio e/ou omissão do governo estadual, inicialmente Blairo Maggi e, atualmente, com seu sucessor Sinval Barboza) a pecuária em grande extensão e a lavoura mecanizada, com plantações de arroz e de soja. Em alguns casos, são desenvolvidas pelo arrendamento da terra ao grandes fazendeiros da região. Com efeito, não observamos a existência do “pequeno produtor” efetivamente. Aparentemente, na atualidade, os Bakairi estão se apropriando também do discurso do “pequeno produtor” e transformando-o conforme sua realidade e necessidade.

Retomando a discussão, a ‘cultura bakari’ é algo que existe apenas em relação ao ‘branco’. Sua existência, mesmo que pautada pela definição de algo ‘original’, ‘exclusivo’ do Bakairi, está vinculada à sua ‘apresentação’ ao ‘branco’ (COLLET, 2006). Contudo, não há contradição pois “[...] se olharmos do ponto de vista do seu ‘funcionamento’ não haveria contradição alguma, pois eles estão perfeitamente adaptados ao contexto [nacional e internacional] em que, também a incorporação é feita pelo viés da diversidade” (COLLET, 2006, p. 244). Assim, a autora relaciona a apropriação da ‘cultura’ como uma ‘transformação’ na forma de obter recursos, que cumprem a função de manter ou melhorar as condições propícias à manutenção e reprodução de suas família, semelhantes às cerimônias do Kado (COLLET, 2006).

A seguir apresentamos, na visão de Collet (2006), como os Bakairi se apropriaram da escola.