• Nenhum resultado encontrado

O CONTEXTO NACIONAL: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE EXPERIÊNCIAS E

2. Escola Indígena: conquistas e desafios

2.1 O CONTEXTO NACIONAL: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE EXPERIÊNCIAS E

Conforme mencionado anteriormente, neste trabalho, nos últimos anos, vêm sendo desenvolvidas no Brasil diversas experiências na modalidade Educação Escolar Indígena. Essas experiências têm sido questionadas em diversos trabalhos que tratam dessa modalidade de ensino. Trazemos à baila, como exemplo, alguns questionamentos realizados no contexto da Educação Escolar Indígena no Amazonas e em Mato Grosso (SECCHI, 2002; ALBUQUERQUE, 2007; CAMARGO e ALBUQUERQUE, 2006; GIRALDIN, 2007). Essas preocupações podem ser agrupadas em dois focos. O primeiro diz respeito aos aspectos mais amplos, ao sistema, às políticas públicas, à gestão dessas escolas.

O movimento indígena no Amazonas considera que o reconhecimento da Educação Escolar Indígena diferenciada não está consolidado dentro do sistema de educação estadual e municipal. O discurso pró-indigenista de respeito aos povos indígenas, veiculado pelo poder público estadual, demonstra a intenção de que, na definição do conceito da escola diferenciada e o seu emprego na prática, não basta apenas adequar ao sistema. É necessário que o projeto educacional das (e não para as) comunidades indígenas, ao ser elaborado pelos próprios índios, corresponda ao projeto de vida de cada etnia (ALBUQUERQUE, 2007).

Outra situação demonstrada por este movimento é que o poder público estadual e o municipal enfrentam dificuldades para implantação, organização e funcionamento das escolas indígenas. Portanto, é necessário avançar em direção à construção de uma escola indígena pautada nos princípios de autonomia dos povos indígenas e suas diversidades, na cooperação interinstitucional, na efetiva qualidade do ensino (ALBUQUERQUE, 2007).

Dessa forma, as políticas públicas de educação escolar indígena do Estado do Amazonas indicam avanços na definição de princípios, de diretrizes e de planos de ação, visando a responder ao modelo de educação intercultural e diferenciada. Esses avanços são

produtos da luta e das conquistas dos povos indígenas por uma escola indígena intercultural, diferenciada e autônoma, na qual os próprios índios sejam agentes do processo escolar. Nessa perspectiva, é urgente a implementação, por parte do Estado, de políticas que saiam do papel para a execução na prática. Isso dependerá de articulação, de compromisso entre órgãos responsáveis, de participação efetiva das comunidades indígenas e de investimentos financeiros (ALBUQUERQUE, 2007).

Outros trabalhos também têm denunciado o distanciamento entre o que está posto na lei e sua aplicabilidade (SECCHI, 2002; CAMARGO e ALBUQUERQUE, 2006). Secchi (2002), ao analisar a realidade de Mato Grosso, já destacava que a escola indígena deveria atender a algumas condições disponibilizando para a sociedade indígena o seu potencial e, ao mesmo tempo, o controle da sociedade a fim de garantir a autonomia. Para Secchi (2009 p. 126, grifos do autor), essa autonomia-dependência “[...] estará fundada sobre a tripla correlação: controle sobre recursos da escola, controle sobre o ‘formato’ da escola e controle sobre os saberes confiados à escola [...]” . Dessa forma, consoante Secchi (2002 e 2009),é evidente que a efetivação da educação escolar indígena precisa sair das políticas colocadas no papel para serem colocadas na prática. Tal fato, por seu turno, só ocorrerá à medida que os povos indígenas possam assumir o controle dessa situação. Tomando como exemplo a implantação da escola e verificando o seu processo instituinte no interior de uma determinada sociedade, esse autor procede a várias afirmações. A seguir uma síntese delas (SECHI, 2002):

a) a escola é um elemento cultural externo que foi ou está sendo incorporado ao sistema;

b) como tal, traz ao interior do sistema um potencial energético, organizativo e informativo que o dinamiza;

c) a utilização (exercício) desse potencial enseja sucessivos movimentos de ordem, desordem e reorganização do sistema;

d) esses movimentos podem adquirir diferentes dinâmicas que variam desde um grau excessivamente “quente” a ponto de romper o sistema, até um potencial mínimo de entropia a ponto de torná-lo metaforicamente inerte (L-Strauss);

e) a relação autonomia-dependência (ou, possibilidade e limites) da escola será expressa pelo grau de controle de cada sistema sobre aquele elemento cultural. A escola indígena adequada, então, segundo Secchi (2002), será aquela que, “[...] incorporada ao sistema, propiciará um potencial energético, organizativo e informativo cujo

exercício ensejará o controle crescente sobre si e sobre outros elementos culturais daquele sistema [...]”.Desse modo, OBSERVE AS DATAS. A QUAL OBRA ESSA CITAÇÃO SE REFERE? E CADÊ A PÁGINA. ACHO QUE ESTÁ CONFUSO.

[...] a escola indígena caracteriza-se como um dos elementos culturais externos com grandes possibilidades tanto para promover a autonomia societária quanto para engendrar a sua dependência, uma vez que carrega consigo relevantes conteúdos energéticos [recursos, salários, equipamentos, etc.], organizativos [novas funções, instalações] e informativos [novos conhecimentos] até então indisponíveis [...] (SECCHI, 2009, p. 123).

Outros estudos consideram ainda que a implantação de uma educação escolar indígena diferenciada constitui um projeto, de certo modo, amadurecido, quanto a seus princípios e fundamentos. Estes já dispõem de amparo legal e institucional. Porém, pouco se sabe sobre a relação dessas escolas com a comunidade em que estão inseridas, sobretudo, sobre o tratamento dado aos diversos conhecimentos a serem trabalhados nelas, aos impactos dessa escolarização nas transformações sociais desses povos (GIRALDIN, 2008; TASSINARI, 2001).

Destarte, o segundo foco de preocupação reflete a relação entre as escolas indígenas e as comunidades em que estão inseridas. Nessa direção, apresentamos dois olhares: um sobre os impactos dessa escolarização nas transformações sociais de um povo de tradição oral (GIRALDIN, 2008); o outro, sobre o tratamento dado aos conhecimentos indígenas nessas escolas (TASSINARI, 2001 e 2008).

Giraldin (2007), por sua vez, chama a atenção para o fato de as ações de educação e de saúde não serem precedidas de estudos antropológicos de impacto. Sobre os impactos da escolarização nas transformações sociais de um povo de tradição oral, Giraldin (2007) apresenta uma reflexão polêmica do processo de escolarização e suas implicações para as formas de sociabilidade do povo Krahô. O autor considera que a implantação crescente de escolas nas aldeias não levou em consideração alguns pontos fundamentais:

1. não questionar o papel político da escola nas aldeias e do processo de escolarização, e;

2. não refletir que a escolarização na aldeia lida com dois universos diferentes: uma sociedade individualista e outra holista, os quais possuem universos culturais diferentes

escrita; não há consenso sobre qual a influência da escolarização nas transformações sociais de um povo de tradição oral. Além disso, a escola se dedica também a construir socialmente a individualidade e, como decorrência da individualização, a escola, mesmo em áreas indígenas (e mesmo que tenha um discurso da especificidade e da diferença), pode tornar-se a porta de saída de indígenas de suas comunidades (GIRALDIN, 2007).

Ainda para Giraldin (2007), a escola diferenciada e específica está ocorrendo, principalmente, com o ensino da língua materna, da arte e cultura, mas no restante (organização, edificação, administração, calendário e conteúdo) segue toda a lógica disciplinadora de formação do habitus da escola não indígena que se estende para as escolas indígenas. Nesse caminho faz a seguinte ressalva:

[...] uma hipótese forte que o processo crescente de oferta de educação escolar indígena aos povos que vivem no Tocantins, da maneira com vem sendo oferecido, assume mais o papel de uma pedagogia da conversão antes exercido pelos missionários religiosos. Antes a catequização; agora a escolarização. Com meios diferentes, atingindo-se os fins semelhantes [...] (GIRALDIN, 2007, p. 21).

A partir de tal ressalva, Giraldin (2007) argumenta que uma etnografia dessa situação de escolarização permite de fato empreender reflexões em torno de aspectos importantes da teoria antropológica e da etnológica. Parte, então, da noção de habitus de Bourdieu (1996) para pensar a relação da escola (levando em consideração tanto os conhecimentos que ela veicula quanto os valores que inculca) e o pátio (enquanto arena de formação social da pessoa Krahô pelos conhecimentos e valores que expressa). Neste sentido, remete à noção de campo, pois a escola é composta por atores sociais (professores índios e não índios) que são formados em tradições culturais e profissionais diferentes, seguindo lógicas distintas. Essa situação etnográfica é que leva à necessidade de introduzir o fator político como elemento importante para pensar essas relações.

Concordamos com Giraldin (2007) ao afirmar a necessidade de aprofundamento das reflexões sobre a implantação da escola indígena, que, por um lado, tem em sua essência o discurso do diferenciado e, por outro, em sua efetivação, encontra-se o desafio de trabalhar com outras lógicas, outra forma de ver, explicar e de se relacionar com o mundo que não seja apenas a baseada no conhecimento científico. Essa preocupação tem sido recorrente no discurso do movimento indígena, principalmente, no movimento do professores indígenas.

Entretanto, como afirmado, nossa preocupação perpassa pela compreensão de que existem diferentes lógicas de explicar o mundo e interagir com ele. Entendemos ainda que o processo de ensino e aprendizagem dos conhecimentos científicos escolares pode estar

ocorrendo semelhante às demais escolas brasileiras, no interior das quais a compreensão do conhecimento científico escolar está distante daquela aceita pela Ciência (MORTIMER, 1995 e 2000). Daí não contribuir com a formação do estudante para a cidadania. Assim, semelhante à defesa de que há necessidade de mais estudos acerca da inserção e apropriação da escola indígena, postulamos que são necessários mais estudos acerca da apropriação dos conhecimentos científicos pela escola e, sobretudo, acerca da relação que estabelecem com os conhecimentos cotidianos indígenas, sem colocá-los em condição de disputa, mas como formas diferentes de explicar o mundo.

Tassinari (2001), por seu turno, foca seu olhar no tratamento dado aos conhecimentos indígenas nessas escolas. Utiliza a noção de “fronteira” para pensar a escola em áreas indígenas, pois essa noção permite compreender a escola como local “[...] de trânsito, da articulação e troca de conhecimentos, assim como espaços de incompreensões e de redefinições [...]” (TASSINARI, 2001, p. 50). Silva (2001, p. 12), por sua vez, instaura a seguinte reflexão:

Uma série inequívoca de recorrências entre várias das situações analisadas indica que, na prática e por ora, o defendido ‘direito à diferença’ ainda não corresponde, na maior parte dos casos, à implantação de projetos alternativos de escola indígena que garantam a elaboração, o desenvolvimento e o acesso ao conhecimento.

Apesar de a legislação reconhecer que os indígenas possuem “processos próprios de aprendizagem” que precisam ser levados em conta pela escola, “[...] o principal desafio das políticas públicas voltadas para a educação indígena se refere à dificuldade de reconhecer a legitimidade dessas pedagogias nativas” (TASSINARI, 2008, p. 9). Desse modo, cada escola indígena tem procurado adequar as especificidades de seus conhecimentos e processos nativos de ensino e de aprendizagem às normas gerais propostas pelo Estado. Depreende-se, a partir de tais reflexões, que a grande dificuldade em elaborar políticas públicas que respeitem “[...] os processos próprios de aprendizagem [...]” decorre da “[...] recusa em reconhecer a legitimidade de conhecimentos que não são transmitidos pela linguagem oral e, principalmente, por intermédio da escrita” (TASSINARI, 2008, p. 9).

Tassinari (2008), utilizando o alerta de Mauss, afirma que há muitos aspectos da tradição que nem sequer imaginamos, porque os incorporamos inconscientemente, já que são transmitidos de outras maneiras, cristalizam-se, por exemplo, em posturas corporais. Utiliza ainda o trabalho de Carlos Severi (2004), em que o autor questiona a dicotomia geralmente postulada entre “tradições orais” e “tradições escritas”. Afirma que entre a oralidade e a escrita há um grande número de situações intermediárias nas quais não prevalecem nem a

palavra dita nem os signos linguísticos, mas uma articulação entre ambos, de cunho estético, nestes casos, chamado por Severi (2004) de “tradições iconográficas”. A memória social é elaborada e transmitida por intermédio de imagens e enunciações rituais. Focalizando o poder da imagem e da gestualidade para a produção de uma memória coletiva, podemos mais facilmente compreender como as tradições indígenas podem ser transmitidas quase sem recurso à palavra (TASSINARI, 2008).

Tassinari (2008) elenca ainda alguns aspectos que podem ser destacados como características de tradições nativas de ensino e aprendizagem e que são diferentes dos pressupostos que embasam a educação escolar. Resumimos abaixo os aspectos apontados por Tassinari (2008):

a) aprendizagem por meio dos sonhos e descrições de situações em que os novatos são treinados para sonhar, sendo o sonho uma forma legítima e importante de saber; b) aprendizagem por meio da embriaguez ou do uso de alucinógenos, reconhecendo que

certos saberes dependem de estados alterados de consciência;

c) ritos de iniciação que incluem reclusão que indicam a noção de que a aprendizagem é “incorporada”, ou seja, reconhece-se que certos saberes só são adquiridos em condições corporais específicas, notando-se um investimento na produção dos corpos para a formação de pessoas éticas e morais;

d) a transmissão de certos saberes apoia-se em gestos e imagens, sendo, também, o silêncio fonte de conhecimento;

e) saberes transmitidos dos adultos às crianças e, também, das crianças mais velhas às mais novas.

Apesar das dificuldades em incluir esses processos de aprendizagem - alguns praticamente impossíveis, como é o caso de sugerir o uso de alucinógenos em contextos escolares -, “[...] a escola deve reconhecer e respeitar esses diversos processos de transmissão de conhecimentos, evitando que as rotinas escolares venham a prejudicar a sua realização” (TASSINARI, 2008, p. 12).

Importante ressaltar ainda que destacamos nesse texto algumas reflexões que permeiam o debate acerca da escola indígena. No entanto, práticas diferenciadas, que articulam e reconhecem as características da escola intercultural, bilíngue e diferenciada têm sido desenvolvidas em algumas escolas indígenas. São essas que, necessariamente, devem ser estendidas às demais escolas indígenas, e arriscamos em dizer e sonhar, também às outras escolas da rede.

desde a garantia de recursos para seu funcionamento autônomo, a reflexão sobre as consequências de sua presença em áreas indígenas até a reflexão dos tipos e formas de trabalhar os conhecimentos nessa modalidade de ensino. Por um lado, constitui-se, atualmente, como instrumento de luta; por outro, coloca novos desafios a essas comunidades e sua (re) afirmação identitária. Nesse sentido, também a Educação em Ciências demanda mais estudos para sua efetivação para não reproduzir a realidade encontrada nas demais escolas brasileiras. Nesses aspectos, abordamos a seguir como a educação escolar foi apropriada pelos Bakairi.

2.2 O CONTEXTO BAKAIRI: A APROPRIAÇÃO DA IDEIA DE